Opinião

Avaliação de ativos intangíveis: é preciso rever conceitos incompatíveis com a economia pós-industrial

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  • é sócio de BMA – Barbosa Mussnich e Aragão advogado em São Paulo e no Rio de Janeiro ex-superintendente jurídico da Comissão de Valores Mobiliários membro da Capital Markets Advisory Committee do International ing Standards Board (Iasb) membro do Conselho Consultivo e ex-vice-presidente da Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3 S.A. – Brasil Bolsa Balcão.

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15 de maio de 2025, 18h27

Um sinal do momento que estamos vivendo é que menos se discutem, no ambiente jurídico e acadêmico, questões relativas a novos investimentos do que problemas decorrentes de desavenças entre os sócios e de como apurar o valor justo para o pagamento dos haveres (i.e., do quinhão) do sócio falecido, dissidente ou, quiçá, excluído da sociedade.

No caso das sociedades anônimas, a solução é dada pela Lei nº 6.404, um monumento legislativo que brevemente completará meio século mostrando a sua capacidade de atravessar o tempo, nesse país incerto, malgrado algumas emendas que só fizeram desestruturar o seu arcabouço. No entanto, as estatísticas oficiais mostram que a participação desse tipo de sociedade é bem pouco significativa: segundo os números do Departamento Nacional de Registro Empresarial (Drei), as sociedades anônimas representam cerca de 2% do total das mais de 7 milhões de sociedades limitadas.

A regulamentação do cálculo do valor do sócio falecido, dissidente ou excluído das sociedades limitadas não é um ponto feliz do Código Civil (CC), a ponto de o Código de Processo Civil (C) ter tentado, com sucesso relativo, melhorar a disciplina da matéria, ainda que em um texto não exatamente adequado para tanto.

Na mesma ordem de ideias, sendo as sociedades limitadas o melhor exemplo das chamadas “sociedades de pessoas”, é exatamente nestas que ocorrem com mais frequências as disputas sobre o valor do quinhão do sócio. Certamente estas disputas ocorrem também nas sociedades anônimas, notadamente as ditas sociedades anônimas “fechadas”, onde o contato pessoal entre acionistas/es é mais próximo, e as disputas mais prováveis, mas ficam ainda muito longe do que ocorre com as sociedades limitadas.

Há uma razão óbvia para que essa desproporção entre as disputas seja tão grande, mesmo tomando-se em conta o número diverso de sociedades de cada tipo: tanto o CC, quanto o C, definem – ainda que de forma algo distinta — que a chamada apuração de haveres do sócio das sociedades limitadas toma por base os termos do contrato social e um balanço “especialmente levantado”, cujos critérios o C buscou tornar mais claros, ao falar em valor de saída.

Ocorre que, na prática, quase nenhuma sociedade limitada começa com os sócios conscientes de que deveriam desde logo disciplinar o que fazer quando morrerem ou brigarem. Soa como algo de mau agouro, e tão raro quanto os pactos antinupciais. Quando ocorre a divergência ou o falecimento dos sócios, começa a disputa para definir os termos do balanço “especialmente levantado” ou, dito de outra forma, o que caracteriza a sua especialidade.

Spacca

O C refere-se a valores de saída quando, para a contabilidade, o custo de aquisição (entrada) de um ativo é a base do seu registro, e assim, na saída, deveriam os valores “de entrada” ser atualizados para o valor de mercado. Parece simples numa economia feita à base de tijolos, máquinas e chaminés, relevante até o século ado.

Hoje, tomemos o exemplo de uma companhia aérea, supondo que fosse eventualmente autorizada a constituir-se sob a forma de sociedade limitada. Seus aviões são usualmente dos arrendadores; o indispensável espaço no balcão do aeroporto, da concessionária; e o direito de explorar rotas aéreas (os chamados slots), do governo federal. Nada disto, ou quase nada, está registrado nas demonstrações financeiras (no caso dos arrendamentos, ativos e ivos se contrapõem conforme as normas atuais). Na mesma linha, o valor de uma marca de refrigerante, cerveja ou calçados, criada internamente, não tem registro contábil. Como valorizar isto em caso de saída do sócio?

Ou seja, como definir o ‘valor de saída’, se não há valor de entrada?

Tomando como exemplo o valor das marcas, talvez um dos ativos mais relevantes hoje em dia, tem se sustentado que, no caso, não caberia a avaliação econômica das marcas, baseada no usual método do desconto a valor presente dos fluxos futuros de lucro (o chamado discount cash flow ou DCF), sob o fundamento de que isto dá, ao sócio que se retira ou que foi excluído, o direito ao lucro futuro sem participar do risco (raciocínio que não parece tão lógico do caso de falecimento).

Não se considera que também não é razoável que o sócio que se afasta, é afastado ou vem a falecer, deixe na mesa, por assim dizer, aquilo que é o verdadeiro valor da empresa e todos os lucros que poderá gerar, não se tomando em conta o esforço que ele também terá feito para construir o valor da marca, ativo intangível. Esta conclusão é defendida sob o fundamento (equivocado) de que o fundo de comércio (goodwill) não deveria ser levado em consideração no balanço especial, mas não é disto que se trata.

Com efeito, aceita-se até, na usual omissão do contrato, que o balanço de determinação apure o valor “de saída” das marcas criadas internamente (i.e., o valor de mercado, pelo qual poderiam ser negociadas), mas não o valor da empresa pelo DCF, e aí fica clara a famosa distinction without a difference: tecnicamente, o método mais frequentemente usado nestes casos é considerar o valor presente dos royalties que a empresa não paga por ter criado internamente suas marcas (o chamado royalty-free approach) em vez de ter de licenciá-las onerosamente de terceiros.

Ora, se não adotarmos a solução totalmente injusta de simplesmente desprezar o valor real de todas essas marcas geradas internamente, apenas para não incluir o goodwill (o que seria, na informal expressão já clássica, fazer o rabo abanar o cachorro), e fizermos a soma do valor presente dos royalties não-pagos por cada uma das marcas ou cada um dos ativos gerados internamente, chegaremos a algo muito próximo do DCF tão exorcizado.

Nada impede, para que não se chegue a uma desconsideração radical de todos os valores intangíveis, que se despreze a diferença entre o somatório do valor presente das marcas e o valor da empresa apurado pelo DCF, diferença essa que termina correspondendo ao dito goodwill ou fundo de comércio, ou seja, aquilo que a exploração conjunta das marcas agrega a cada uma delas e às futuramente criadas. O que não faz sentido é que, para não reconhecer o valor do goodwill, se despreze o valor de saída, como diz a lei, de cada um dos ativos intangíveis gerados internamente.

Interessante, a tal respeito, que essa distinção é conhecida e praticada nas chamadas combinações de negócio e na determinação do ágio amortizável fiscalmente. Qualquer avaliação feita nesse contexto, inclusive para fins fiscais, consegue separar com clareza o que representa o valor de saída, ou de mercado, de cada ativo, inclusive intangível, definindo residualmente o goodwill ou ágio amortizável, ou seja, apenas o valor excedente do dito valor de saída de cada ativo.

As sociedades, anônimas ou limitadas, seus contadores e auditores, e o próprio fisco federal, usam tradicionalmente, na combinação de empresas, esse método distintivo entre valor de saída dos ativos, tangíveis ou intangíveis, e goodwill, mas a jurisprudência, que não o desconhece, rejeita-o na saída de um sócio, o que é inexplicável.

Dirão alguns que, na verdade, o critério correto seria efetivamente não valorizar essas marcas criadas internamente, o que nos deixa com uma pergunta óbvia: tomando o caso de qualquer uma das grandes empresas internacionais de calçados esportivos, que criaram e exploram suas próprias marcas, não fabricam calçados, comprando-os de terceiros, tendo assim um estoque mínimo e não tendo planta fabril, como explicar que, por esse método defendido pela jurisprudência, elas valham praticamente zero, supondo que fossem sociedades limitadas e algum sócio delas se retirasse?

Sem querer levar a discussão a um plano mais abstrato, é impossível não lembrar da regra do artigo 8º, 20 da Constituição, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a permanecer associado. Se o custo de deixar de sê-lo é um brutal confisco da parcela do valor construído em comum pelo sócio falecido, retirante, ou mesmo excluído, que ultraa de muito o registro contábil dos ativos adquiridos, excluindo aqueles criados internamente, que podem constituir o real valor da empresa, o conteúdo prático da norma constitucional fica totalmente esvaziado.

É preciso, enfim, que a análise doutrinária e jurisprudência dessa questão tome em conta as características da economia de serviços e das empresas típicas do século 21, em que ativos tangíveis e ativos adquiridos externamente perdem progressivamente o valor, em busca de uma solução mais justa, já adotada para fins contábeis e fiscais, mas inexplicavelmente rejeitada em disputas societárias.

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  • é sócio de BMA – Barbosa, Mussnich e Aragão, advogado em São Paulo e no Rio de Janeiro, ex-superintendente jurídico da Comissão de Valores Mobiliários, membro da Capital Markets Advisory Committee do International ing Standards Board (Iasb), membro do Conselho Consultivo e ex-vice-presidente da Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3 S.A. – Brasil, Bolsa, Balcão.

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