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Network state e cidades privadas: paraíso controlado ao preço do devido processo legal

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16 de maio de 2025, 9h19

Quando o futuro parece um enclave

Spacca

Considere um futuro em que cidades inteiras não são criadas por governos, mas por empresas privadas, planejadas e controladas por investidores e algoritmos, onde a democracia é substituída por contratos e a polícia por vigilância digital e mecanismos duvidosos de sancionamento imediato. Este futuro já existe e está se ampliando. Diversas iniciativas pelo mundo buscam reinventar os contornos das relações sociais sob a lógica do mercado, com base em tecnologia, dados e contratos inteligente.

O conceito de Network State proposto por Balaji Srinivasan propõe a criação de comunidades digitais soberanas, que se expandem até alcançar reconhecimento internacional como ‘entes’ autônomos. A promessa de inovação, liberdade e autonomia fomenta e manipula, no seu oposto, formas de exclusão social, controle tecnológico e privatização de funções essenciais do Estado. Este pequeno artigo analisa criticamente o impacto dessas iniciativas sobre a soberania estatal, o modelo democrático e as garantias penais e processuais penais.

Conceito de Network State de Balaji Srinivasan

Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da Coinbase e investidor de tecnologia, propôs em 2022 a ideia do “Network State” como uma forma de “fundar um novo país” a partir da internet. Em vez de um Estado definido por território contíguo, um Network State começaria como uma comunidade online de milhões de pessoas com identidade nacional compartilhada, usando criptomoedas próprias, que “crowdfunda” territórios dispersos pelo mundo e os costura digitalmente numa nova forma de ente político, buscando eventual reconhecimento diplomático como Estado.

Em síntese, Srinivasan visualiza “sociedades startup” formadas por redes online capazes de evoluir em “network states”, argumentando que as tecnologias digitais estão tornando o Estado-Nação territorial algo obsoleto, assim como canais de irrigação tornaram obsoletos antigos impérios hidráulicos. Os Network States seriam “polidades” transnacionais baseadas na nuvem, organizadas por ideais comuns em vez de geografia, e capacitadas por blockchain, contratos inteligentes e governança algorítmica.

Em seu livro The Network State: How to Start a New Country, Balaji defende que, com protocolos criptográficos e ferramentas online, seria possível proteger direitos individuais (como liberdade de expressão e associação) e implementar uma “governança por código” em substituição às instituições estatais tradicionais. A perspectiva de Srinivasan, apoiada por investidores conservadores e antiestatais como Peter Thiel (cético da democracia liberal), carrega um tom marcadamente tecnoutópico e libertário: defende que as comunidades online poderiam eventualmente negociar independência ou certo tipo soberania junto a Estados existentes, inaugurando um novo paradigma político orientado pelo mercado e pela tecnologia.

Sob o mote de inovação radical, o Network State de Balaji é uma reciclagem .tech de antigas utopias libertárias de escapar do estado-nação, criando bolhas de poder privado, na linha de iniciativas como seasteading (cidades flutuantes autônomas em águas internacionais) ou charter cities em países em desenvolvimento — ou seja, tentativas fracassadas de criar enclaves privados livres de regulações estatais e controle democrático, com o diferencial das novas oportunidades decorrentes do avanço tecnológico. Ainda assim, o poder de sedução captura por indicar um “escape” para os descontentamentos atuais, reorganizando as relações de propriedade e governança de modo a transferir a autoridade dos Estados para entidades privadas transnacionais.

Balaji Srinivasan propõe que comunidades online, fortemente alinhadas ideologicamente, possam evoluir para “nações digitais”, com governança baseada em smart-contracts, criptomoedas e um censo verificável na blockchain, sob a promessa de segurança, sustentabilidade e outras miríades. O Network State extrapola a noção de cidade inteligente: é uma estrutura política paralela, com regras próprias e território financiado coletivamente, livre de Estado, a partir dos seguintes fundamentos: 1) um líder carismático (Weber manda abraços); 2) uma visão moral ou ideológica compartilhada ou manipulada; 3) governança algorítmica; e, 4) territórios não contíguos interligados digitalmente.

Iniciativas de cidades do zero pelo mundo

Alguns enclaves espalhados pelo mundo:

California Forever: Liderado por Jan Sramek, o projeto pretende erguer uma cidade do zero no condado de Solano, Califórnia. Com promessa de sustentabilidade e habitação ível, o projeto enfrenta resistência da população local, preocupações com soberania e temor de criação de um enclave privado sem controle democrático.

Praxis: Apresentada como a primeira “network state” em formação, a cidade digital pretende adquirir território e estabelecer uma comunidade focada em produtividade, heroísmo e liberdade econômica, com financiamento de investidores conservadores, vinculada a discursos de civilização ocidental e valores tradicionais.

Próspera: É uma cidade privada localizada na ilha de Roatán, em Honduras, concebida como uma “cidade startup” ou “cidade carta” (charter city). Ela opera como uma Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zede), com autonomia legal, fiscal e istrativa distinta do restante do país. O projeto é liderado pela empresa Honduras Próspera Inc., financiada por investidores de capital de risco, atualmente com oposição local, incluindo uma decisão da Suprema Corte de Honduras que declarou inconstitucional seu regime. A empresa processa o Estado hondurenho por perdas estimadas em mais de US$ 10 bilhões.

Culdesac: É um bairro planejado no Arizona para mil habitantes, sem carros, promovendo mobilidade a pé e valores de sustentabilidade. Embora não seja declarado como “network state”, incorpora elementos de governança privada, contratos de adesão e monitoramento de comportamento dos residentes que são monitorados ‘just in time’.

Cabin e Nomad: Ambos operam como redes de vilas conectadas para nômades digitais, com governança descentralizada e visão cosmopolita. Cabin promove o co-living rural de trabalhadores remotos, enquanto Nomad aposta em estruturação global de cidades temporárias com contratos flexíveis.

The Neighbourhood SF: Projeto de co-living em São Francisco voltado para criatividade e tecnologia, com e no lema de comunidade intencional em ambiente urbano de alta densidade e regulação interna.

Dominação carismática e lógica de seita

As semelhanças entre essas iniciativas e o conceito de seita são visíveis: 1) líderes carismáticos; 2) forte alinhamento ideológico; 3) controle comportamental e censos internos; e, 4) regulação autônoma da vida em comunidade.

A partir de Max Weber, essas formas de dominação se afastam dos mecanismos racionais-legais do Estado de Direito, favorecendo contratos privados, exclusão econômica e seleção de residentes, permitindo a ‘legalização’ de privilégios, em verdadeira ‘zona excluída de inclusão’.

Configuram-se na estrutura de “seita”, entendida como uma coletividade, grupo social ou religioso criado em torno de uma crença, doutrina ou prática específica, em geral, com identidade de propósitos e conduzidas por um personagem central que ocupa o lugar de líder, a partir da dominação carismática, com o estabelecimento de normas e modelos de vida destoantes do ambiente democrático.

Exemplos de Seitas: a) Jonestown [1955–1978]: Templo dos Povos, liderado por Jim Jones, culminou em um massacre em 1978 quando mais de 900 membros se suicidaram em massa por ingestão de cianeto na Guiana; b} Ramo Davidiano [1993]: Liderados por David Koresh, membros do grupo em Waco, Texas, foram alvo de um cerco de 51 dias pelo FBI, com a morte de 76 pessoas devido a um incêndio; e, c] Heaven’s Gate [1974–1997]: Marshall Applewhite liderou o grupo que acreditava em uma nave espacial acompanhando o cometa Hale-Bopp, com o suicídio de 39 membros.

Vigilância, dados e controle social: sem garantias penais e processuais

Projetos como o da Sidewalk Labs mostraram o risco da vigilância corporativa em cidades privadas, com a transposição do exercício do poder a empresas privadas, perdendo-se a capacidade institucional de proteger direitos fundamentais (ausência de privacidade, falta de transparência, governança e mecanismos de controle públicos contra abusos etc.). Embora descontinuada, significa a aplicação da lógica do capitalismo de vigilância aplicada ao espaço urbano (Zuboff, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. São Paulo: Intrínseca, 2019}.

No contexto das transformações contemporâneas do direito penal, em que se discute a expansão de mecanismos consensuais, os Network States levam o paradigma negocial ao extremo. Tudo vira barganha, pois não há um “Estado-juiz” imparcial impondo coercitivamente a ordem pública – há partes contratuais ajustando contas conforme seus respectivos pesos econômicos que aceitam árbitros privados, controlados por quem domina o poder econômico.

A segurança jurídica torna-se fluida: contratos podem predefinir multas para todo tipo de infração (de estacionar em local proibido até poluir o meio ambiente), mas se ocorrer algo fora do previsto, quem arbitrará? Talvez uma jurisdição voluntária escolhida pelas partes — que, como apontado, tende a favorecer investidores e es. Em síntese, a resposta penal dentro dessas comunidades corre o risco de ser negociada caso a caso com base no poder de barganha, em vez de aplicada de forma impessoal e igualitária, comprometendo os princípios basilares como a igualdade perante a lei e o monopólio estatal da punição legítima.

Por fim, levanta-se o problema do eventual conflito de jurisdição penal. Se um crime grave ocorrer em um enclave privado (digamos, um homicídio em Próspera), as autoridades nacionais teriam o direito e dever de atuar. Mas e se a istração local dificultar o o, invocando autonomia? Temos exemplos históricos de “company towns” ou bases estrangeiras onde crimes ficaram impunes devido a lacunas de jurisdição.

Para evitar isso, leis criadoras de zonas especiais costumam deixar claro que crimes continuam sob jurisdição nacional (como Honduras fez). Porém, se um Network State se tornar realidade e for reconhecido como entidade política parcial, pode-se imaginar disputas complexas sobre quem julga um crime — especialmente se envolve membros da comunidade vs. terceiros de fora.

Até lá, o que se vê é mais uma minimização dos conflitos penais via exclusão social: pessoas consideradas problemáticas serão filtradas na entrada (seletividade dos residentes) ou removidas preventivamente (expulsão) em vez de se permitir que violem regras e tenham que ser processadas.

Em última análise, significa a materialização da mentalidade de gestão de riscos penais típica do neoliberalismo, demonstraram Rubens Casara, Augusto Jobim do Amaral e José Bolzan de Morais em vez de enfrentar o crime como fenômeno social a ser gerido pelo bem comum, simplesmente isola-se a bolha dos “cidadãos de bem” em ambientes controlados, terceirizando o problema para o lado de fora dos muros (ejetam-se os supostos desconformes, ver Keith Hayward).

No campo do direito penal e da segurança pública, a possível proliferação dessas comunidades demanda reflexão sobre acordos de cooperação e limites à privatização da segurança. Por exemplo, legislações poderiam proibir expressamente que enclaves privados impeçam a atuação policial em seu interior ou que criem forças armadas próprias.

Ademais, como sugerem alguns especialistas, os Estados devem recusar qualquer pretensão de imunidade penal para residentes ou dirigentes de tais projetos — evitando que se criem “bolsões de impunidade” protegidos por arbitragens ou acordos especiais. A transparência é fundamental: se uma empresa-cidade estabelece vigilância massiva, as autoridades de proteção de dados nacionais precisam poder fiscalizá-la como fariam com qualquer corporação.

Chegando ao fim

Em síntese, “network states” e cidades privadas expõem a tensão latente entre a globalização tecnológica e a estrutura política herdada da Modernidade. Podem ser vistos como experimentos de governança que colocam à prova nossos arranjos legais, sob a promessa de paraísos.tech. Porém, a crítica jurídica sólida sugere cautela: sem controles democráticos, tais comunidades arriscam virar distopias de vigilância e exclusão, visões distópicas incompatíveis com a tradição democrática.

Cabe discutir até que ponto se permitirá o avanço desses “novos enclaves” privados, espécies de “monarquias.tech”, porque o interesse público e os direitos fundamentais não podem ser simplesmente relegados a segundo plano em nome de utopias de mercado. Do contrário, arrisca-se trocar as imperfeições da democracia pelas sombras de um neofeudalismo tecnológico, onde senhores do capital governam feudos digitais e físicos a seu bel-prazer, sem que se tenha a quem recorrer. Se os defensores do “network states” vencerem, depois desse artigo, devidamente indexado, constarei na lista de “persona non grata”. Você também.

Pepe Mujica, que fará falta, disse algo que se aplica aqui: “A democracia está cheia de defeitos porque são nossos defeitos humanos, mas não encontramos nada melhor até hoje. Por isso, é fácil perdê-la e difícil voltar a ganhar. É preciso cuidar dela.“. Ou: “Habrá patria para todos o no habrá patria para nadie”.

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