Opinião

Tema 1.389: pejotização e impactos silenciosos nas contratações públicas

Autores

  • é procuradora do trabalho especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade Trabalhista na istração Pública (CONAP/MPT).

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  • é procurador do Trabalho doutor em Direito (Unifor) MBA em Direito Empresarial (FGV-Rio) pós-graduado em Controle na istração Pública (ESMPU) e professor universitário.

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16 de maio de 2025, 19h33

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema de Repercussão Geral nº 1.389 (ARE 1.532.603), que suspendeu nacionalmente todos os processos que discutem a licitude de certas formas alternativas de contratação de pessoas físicas e jurídicas para prestação de serviços, tem gerado amplo debate sobre seus impactos nos direitos sociais e previdenciários. Entretanto, há uma outra face desse fenômeno que permanece oculta no debate público: os efeitos nocivos da pejotização para as contratações públicas e, consequentemente, para os serviços essenciais prestados à população.

Na atuação funcional do Ministério Público do Trabalho, tem-se observado com preocupação que essa decisão que, para além de flexibilizar relações trabalhistas no setor privado, poderá abrir uma verdadeira caixa de Pandora na istração pública, caso não se posicione firmemente pela incompatibilidade com seu sistema de contratação, com efeitos potencialmente devastadores para o erário e para a qualidade dos serviços públicos essenciais.

Paradoxo fiscal: erário pagará mais e receberá menos

As contratações públicas são planejadas, licitadas e precificadas usualmente com base em postos de trabalho celetistas. Com efeito, seja através das atualizações históricas dos valores de contratação, seja através das plataformas de consulta de preços, o dimensionamento de itens de contrato que envolvem trabalho humano é feito considerando uma contratação celetista normal, tanto para fins e encargos, tanto para verificação de custos indiretos. A rigor, os tribunais de contas possuem julgados e disposições expressas de que estes custos devem ser considerados em todas as fases de contratação pública – planejamento, licitação, contratação e execução.

O custo de um trabalhador com carteira assinada serve como parâmetro para o estabelecimento do valor contratual em inúmeras licitações. Ocorre que, com a chancela da pejotização, as empresas contratadas migrarão rapidamente para esse modelo, sem que haja, no entanto, a correspondente redução nos valores pagos pela istração pública.

As investigações conduzidas pelo Ministério Público do Trabalho, pelo menos da pesquisa realizada por estes subscritores, não identificaram, até o momento, iniciativas consistentes de reequilíbrio econômico-financeiro que reduzam os valores contratuais quando empresas substituem empregados por “PJs”, “sócios em conta de participação” ou “autônomos”. Na prática, o ente público contratante continua pagando como se fossem trabalhadores formais, mas as empresas, às custas do erário, economizam em encargos trabalhistas e previdenciários. Trata-se de uma transferência indevida de recursos públicos para o setor privado, sem contrapartida para a sociedade.

Risco invisível na saúde pública: profissionais sem controle sanitário

Particularmente alarmante é a situação observada nos serviços de saúde. O MPT tem identificado, com frequência crescente, a contratação por empresas terceirizadas ou organizações sociais de trabalhadores da área de saúde – desde maqueiros até médicos especialistas – como autônomos, sócios em conta de participação ou cooperados.

Essas modalidades de contratação eliminam a obrigatoriedade dos exames médicos periódicos e dos programas de saúde e segurança previstos na NR-32, específica para o setor de saúde. Na prática, isso significa que profissionais potencialmente acometidos por doenças, inclusive infecciosas, podem estar atendendo a população sem qualquer controle ou responsabilidade da empresa contratada pelo poder público.

Spacca

Imagine-se o cenário absurdo: um técnico de enfermagem atuando em um hospital público, sem carteira assinada, sem exames periódicos, atendendo pacientes vulneráveis. A rigor, esse trabalhador imaginário pode estar com tuberculose e atendendo diretamente a população e, como é muito recorrente, sem os EPIs mínimos. Quem responderá por eventuais contaminações ou falhas decorrentes de um quadro de saúde que deveria ter sido monitorado?

Há de se considerar o possível ivo decorrente da responsabilidade objetiva do Estado por falha dos serviços essenciais.

‘Pedágio corporativo’: terceirizadas como meros intermediários

Outro fenômeno preocupante é a proliferação das “sociedades em conta de participação” nos contratos públicos. Nessa modalidade, os profissionais que deveriam ser empregados são transformados em “sócios ocultos”, enquanto executam materialmente os serviços que a empresa terceirizada foi contratada para realizar.

O resultado é a completa subversão da lógica contratual: a empresa vencedora da licitação torna-se um mero “pedágio” que se apropria de parte da remuneração dos trabalhadores, sem agregar valor real ao serviço. Esse modelo transforma contratos istrativos em mecanismos de intermediação de mão de obra, algo expressamente vedado pela legislação que rege as contratações públicas.

Com efeito, a subcontratação que deve ser exceção e sempre autorizada em contrato, a se tornar uma regra absoluta com os sócios em conta de participação, MEIs contratados ou PJs contratadas executando diretamente o objeto contratual – e sem a vinculação contratual direta com a istração para que essa possa fiscalizar adequadamente.

Desequilíbrio atuarial e burla à Lei de Responsabilidade Fiscal

A terceirização já é frequentemente utilizada como instrumento para contornar o limite prudencial estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, especialmente em áreas essenciais como saúde e educação, onde as atividades deveriam ser exercidas por servidores concursados.

Com a pejotização, esse problema se agrava exponencialmente. A substituição de empregados formais por “PJs” ou outras modalidades de contratação civil criará um vácuo nas projeções atuariais das contas públicas. Como planejar adequadamente o custeio de serviços públicos essenciais quando os mecanismos de contratação se tornam cada vez mais precários e imprevisíveis?

Fiscalização ativa como imperativo constitucional

Chama atenção que a decisão do STF aparentemente não abordou um aspecto crucial: o dever de autotutela istrativa quando órgãos de consultoria jurídica identificarem fraudes nas contratações. O próprio Supremo, ao julgar o Tema de Repercussão Geral nº 1.118, reconheceu o dever de fiscalização ativa nos contratos públicos.

É fundamental que a istração pública atente, de per si,  que a contratação pública, em cumprimento aos princípios istrativos da moralidade, legalidade ou jurisdicidade, transparência e eficiência, e disciplinada por normas istrativas específicas, não se compatibiliza com a prática de pejotização pelas empresas ou organizações sociais contratadas, permanecendo claro o dever de fiscalização ativa pelo poder público quanto à legitimidade dessas subcontratações alternativas, especialmente considerando os graves riscos que representam para a sustentabilidade social dos contratos istrativos.

Por uma istração pública responsável

A pejotização generalizada, longe de representar apenas uma flexibilização nas relações de trabalho, ameaça comprometer a própria qualidade dos serviços públicos essenciais e a responsabilidade fiscal do Estado. É imperativo que o debate sobre esse tema ultrae a dicotomia entre proteção trabalhista e liberdade contratual, alcançando a dimensão do interesse público e da eficiência istrativa.

Se não houver uma reavaliação cuidadosa desse fenômeno e um posicionamento firme da gestão pública, corremos o risco de transformar a istração pública em refém de um modelo que compromete a qualidade dos serviços, eleva custos sem contrapartidas e foge à transparência exigida no trato com os recursos públicos. A conta, como sempre, será paga pelo cidadão – tanto em impostos quanto em serviços de qualidade duvidosa.

O certo é que por missão constitucional expressa, o Ministério Público do Trabalho seguirá atento, defendendo não apenas os direitos dos trabalhadores, mas também o interesse público e a probidade na istração.

Contribuição ao debate jurídico e respeito institucional

É imperioso ressaltar que as reflexões apresentadas neste artigo são elaboradas com o propósito exclusivo de contribuir para o avanço do debate jurídico sobre questão de extrema relevância para toda a sociedade brasileira. Como instituição que integra o sistema de justiça, o Ministério Público do Trabalho manifesta sua plena confiança e integral acatamento institucional a qualquer entendimento que venha a ser definitivamente consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, é justamente por reconhecer a importância e o impacto das decisões da Corte Excelsa que consideramos fundamental antecipar riscos e cenários possíveis, permitindo assim o ajuste tempestivo das condutas de prevenção, mitigação e repressão a eventuais distorções.

Este exercício de prospecção jurídica representa nosso compromisso com a efetividade das decisões judiciais e com a construção coletiva de soluções para os desafios que inevitavelmente surgirão, independentemente do cenário normativo e do conteúdo da decisão constitucional que venha a prevalecer.

Autores

  • é especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade do Trabalho na istração Pública do Ministério Público do Trabalho

  • é doutor em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade do Trabalho na istração Pública do Ministério Público do Trabalho.

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