Ambiente Jurídico

As limitações do uso de bens culturais tombados

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17 de maio de 2025, 8h00

A palavra tombo, com o sentido de inventário ou registro, foi usada por Dom Fernando, em 1375, designando o Arquivo Nacional de Portugal, instalado em uma das torres que amuralhavam a cidade de Lisboa, local que ficou conhecido com o nome de Torre do Tombo. Os registros da istração portuguesa eram feitos nos Livros de Tombo, daí a sua denominação.

Tombar significava, pois, inscrever as coisas importantes nos arquivos do Reino, inventariar, arrolar, deixar registrado.

Em nosso ordenamento, o regime jurídico do instituto do tombamento surgiu com a edição do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que é, ainda hoje, a lei nacional sobre a temática. O legislador da época entendeu por conservar os antigos vocábulos reinícolas no aludido diploma legal, acabando por preservar, com tal iniciativa, o nosso próprio patrimônio linguístico.

Destaca-se que a palavra tombamento hoje está presente até mesmo no texto da Constituição da República (artigo 216, § 1º), o que demonstra a sua total incorporação ao nosso ordenamento jurídico, conquanto a ferramenta de proteção não exista, com tal denominação, em outros lugares do mundo, nem mesmo em Portugal, onde o instituto homólogo ao tombamento recebe o nome de “classificação” [1].

O tombamento, em nosso país, é um processo istrativo do qual decorre restrição concreta, sui generis, ao direito de propriedade, que impõe à coisa protegida a qualidade de bem de interesse público, sujeitando-a a um especial regime jurídico quanto à disponibilidade, à conservação e à fruição [2].

A finalidade do tombamento é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais, ou seja, objetiva a perpetuidade material da coisa tombada.

No que tange ao objeto, o tombamento pode ser aplicado aos bens móveis e imóveis, públicos ou privados, de interesse cultural ou ambiental, quais sejam: fotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, monumentos, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas etc.

Um dos principais núcleos do regime jurídico do tombamento reside no artigo 17 do DL nº 25/37, que dispõe que as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do órgão responsável pela proteção, ser reparadas, pintadas ou restauradas.

Esse dispositivo limita, de forma relevante, uma das faculdades que compõem o direito de propriedade, qual seja, o direito de dispor (jus abutendi), que confere ao proprietário a possibilidade de — entre outras coisas — transformar, alterar ou destruir a estrutura física da coisa.

A propósito, Pontes de Miranda já pontificava sobre a matéria:

“PODERES CONTIDOS NO DIREITO DE PROPRIEDADE. –  O titular do direito pode, em princípio, utilizar a coisa, ou destruí-a, aliená-la, gravá-la ou praticar outros atos de disposição. Não ilimitadamente: pode o Estado considerar certos  móveis, ou imóveis, de valor histórico e artístico, sob a tutela do Estado (Constituição de 1946, art. 175)” [3].

Tombamento e uso compatível com a natureza do bem

Com efeito, a partir do tombamento, a prática das condutas descritas no artigo 17 da Lei do Tombamento implicará grave responsabilidade nos âmbitos istrativo, cível e criminal.

Spacca

Contudo, aspecto pouco explorado diz respeito à repercussão do instituto do tombamento na faculdade do proprietário usar o bem  protegido (jus utendi), que diz respeito à utilização física da coisa, sem a alteração de sua substância.

Tal lacuna doutrinária nos impõe reflexões sobre o assunto.

Primeiramente, devemos ressaltar que não se mostra juridicamente possível o tombamento do uso específico de determinado bem (tombamento de uso), uma vez que a destinação não constitui coisa móvel ou imóvel ível da submissão ao instrumento aqui estudado.

Desta forma, o tombamento do prédio onde funciona um antigo cinema, por exemplo, não pode implicar a obrigatoriedade de o proprietário do imóvel manter, ad aeternum, a mesma destinação dada ao bem.

A propósito, o STF já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que: o tombamento, pela Municipalidade, de imóvel particular, visando preservar o patrimônio artístico-cultural da cidade, não lhe possibilita predeterminar a modalidade de uso da coisa tombada, pois inviável o tombamento daquilo que não seja bem móvel ou imóvel suscetível de apropriação e conservação [4].

Tal assertiva, contudo, não significa que o proprietário do bem tombado possa dar à coisa protegida qualquer destinação, a seu exclusivo alvedrio, pois a Lei do Tombamento classifica os bens tombados como de interesse público, funcionalizando-os à satisfação do interesse coletivo relacionado à fruição de um patrimônio cultural hígido.

É preciso lembrar que, em nosso ordenamento jurídico, a propriedade deve cumprir sua finalidade social (artigo 5º, XXIII, CF) e o artigo 1228, § 1º, do Código Civil, estabelece que  o exercício de tal direito deve se conformar com  as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados, de acordo com o estabelecido em lei especial, entre outros interesses, o patrimônio histórico e artístico.

Sobre o referido dispositivo do Código Civil (artigo 1.228, § 1º), Sílvio de Salvo Venosa leciona que:

Presentes estão nessas dicções princípios afastados do individualismo histórico que não somente buscam coibir o uso abusivo da propriedade, como também procuram inseri-la no contexto de utilização para o bem comum. Utilizar a propriedade adequadamente possui no mundo contemporâneo amplo espectro que desborda para aspectos como a proteção da fauna e da flora e para sublimação do patrimônio artístico e histórico [5].

Assim, o proprietário de um importante imóvel tombado em razão de seu valor artístico e histórico não poderá utilizá-lo, por exemplo, como local para depósito de cargas de material explosivo; assim como a municipalidade, proprietária e responsável pela istração de um centro histórico colonial, com ruas calçadas artesanalmente com pedras seculares, não deverá possibilitar o tráfego de veículos pesados, de grande porte, como carretas e máquinas industriais, pelas vias protegidas (logradouros públicos) pelo tombamento.

Segundo leciona Sônia Rabello de Castro:

“É insuscetível de tombamento o uso específico de determinado bem. Ainda que se tombe o imóvel, não poderá a autoridade tombar o seu uso, uma vez que o uso não é objeto móvel ou imóvel. Com relação ao aspecto do uso, o que pode acontecer é que, em função da conservação do bem, ele possa ser adequado ou inadequado. Assim, se determinado imóvel acha-se tombado, sua conservação se impõe; em função disso é que se pode coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causem dano, gerando sua descaracterização. Nesse caso, poder-se-ia impedir o uso danoso ao bem tombado, não para determinar um uso específico, mas para impedir o uso inadequado” [6].

Na mesma linha de intelecção, Ana Maria Moreira Marchesan, ao tratar do princípio do uso compatível com a natureza do bem, defende que a todo bem cultural há de ser dado um uso (nada melhor do que o não uso para provocar a deterioração de um bem cultural). Mas é preciso que esse uso se harmonize com as características essenciais do bem cultural, compatibilizando-se com os fins de preservação [7].

A inobservância, pelo proprietário, de tais comandos, constitui ato ilícito caracterizador do denominado abuso do direito de propriedade,  expressamente vedado pelo art. 187 do Código Civil [8].

Ante o exposto,  é possível concluir que o tombamento limita a faculdade do uso das coisas protegidas (jus abutendi), não para obrigar qualquer uso específico ao bem, mas, sim, para vedar que lhe seja dado uso incompatível  com as suas características e natureza, que possa colocar em risco a conservação material do bem tombado, finalidade última do instituto protetivo disciplinado pelo Decreto-Lei nº 25/37.

 


[1] Art. 16.º, 1,  da Lei de Bases do Património Cultural Português (Lei nº 107/2001).

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i editora. 2023. p. 176.

[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de.  Tratado de Direito Privado.  Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. Parte Especial Tomo XI. Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária. p. 10-11.

[4] STF – RE 219292 – 1ª T. – Rel. Min. Octavio Gallotti – DJU 23.06.2000 – p. 31.

[5] VENOSA, Sílvio de Salvo Direito civil: direitos reais. – 10. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. Coleção direito civil; v. 5. p. 171-172.

[6] CASTRO, Sônia Rabello de.  O Estado na preservação de bens culturais.  Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 113.

[7] MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Os princípios específicos da tutela do meio ambiente cultural. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, jan. 2013 – abr. 2013.  p. 105.

[8] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

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