Divórcio em Buda, de Sándor Márai
18 de maio de 2025, 8h00
Divórcio em Buda, do escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989) é livro imprescindível para quem nos interessamos pelo selo Direito e literatura. Certamente, no entanto, o livro não fora concebido com esse propósito, no sentido de ilustrar as relações entre a ficção e o jurídico. Porém, é livro que explora questões éticas da magistratura. Pode ser lido como um texto radical que aprofunda problemas deontológicos.
O fio condutor do enredo refere-se a um magistrado húngaro que atuava em sessão especializada em divórcios. Tem em mesa o caso de um antigo colega do ensino médio, que se casara com uma mulher com quem o juiz tivera um brevíssimo caso romântico, ainda que muito menos do que um namoro.
Com referência a esse esquema narrativo o autor explora, separadamente, um conjunto de personagens com histórias conexas. O autor trata do pai do magistrado, que também fora magistrado. A família contava com sete gerações de juízes. O pai do magistrado fora abandonado pela esposa, mãe do personagem central. São páginas líricas sobre o complexo tema do abandono. O menino foi afetado pela angústia do pai e pela desintegração da família. Buscou refúgio e apoio em um colégio de padres, para onde fora mandado pelo pai.
O narrador (onisciente) fala também da esposa que saiu de casa. Disserta sobre o tema do casamento. O livro poderia, por essa razão, alternativamente, levar o título de “Três Casamentos”, ainda que um deles sob duas óticas distintas. Uma técnica que Sándor Márai explorou em outro livro (Da Verdade), já resenhado nessa coluna. A verdade, enquanto tema também bíblico (ver João 18:38) era uma obsessão no escritor húngaro.
Divórcio em Buda é um romance sobre o esfacelamento de lares. Casais que não conseguiram seguir com alguma alternativa para a falência do amor romântico. Por isso, é também um livro sofre o tema recorrente do fracasso conjugal, no contexto cultural húngaro, na primeira metade do século 20. Tem-se a impressão de que a dissolução do Império Austro-Húngaro reverberou no esfacelamento de muitas famílias, apontando-se que entre política e intimidade haveria uma relação quase simétrica.

Nesse contexto, é um livro sobre famílias fraturadas, nas quais já não havia mais calor humano. Quem já viveu isso? O autor explora a complexidade das relações entre pais e filhos. Corta o coração a agem que descreve uma ida à missa, o que ocorria anualmente. O velho juiz conduzia os filhos; um ambiente pesadíssimo. O velho magistrado jamais se libertou do estigma do marido traído e abandonado.
O colégio externo (de padres) era uma atmosfera tranquila que sugeria um lar não quebrado. O livro alavanca, nesse o, uma discussão provocante relativa aos fundamentos espirituais de uma estrutura familiar equilibrada.
Do ponto de vista deontológico há uma crítica pesada a uma magistratura que recrutava servidores de acordo com a hereditariedade. A curul (cadeira na qual se senta o juiz) era atributo de uma minoria que controla os cargos, que foram de seus pais e avós, e que o faziam em troca de uma remuneração muito limitada. Um típico caso de pobreza com renda fixa.
O autor também explorou o tema da juventude de um juiz, que entre nós tem sido muito debatido. Há quem se incomode com juízes muito jovens que ao ingressarem na magistratura alcançam seu segundo emprego: o primeiro deles foi a mesada do pai…
O livro tensiona a clássica oposição entre direito natural e direito positivo. Indaga sobre a perfeição de leis divinas. O ofício do julgador, na percepção do autor, é uma luta recorrente entre imposições de leis positivas em confronto com leis naturais. O imanente das leis positivas antagoniza-se com o transcendente das leis naturais. É o embate entre o significado fiel da lei e o conteúdo (ainda que imaginário) da verdade. De outra forma, o conflito entre os fatos da vida e o formalismo do Judiciário.
Conjugalidade e cidadania
“Divórcio em Buda” não se esgota nos dilemas do matrimônio. O ciúme (enquanto patologia) segundo o narrador, sustenta forma imperfeitas de felicidade. Há muitos mistérios nas separações. Talvez porque, no fundo, ninguém se separa apenas do outro; separa-se também de si mesmo, da imagem idealizada do que jamais chegou a ser. É o gasto tema do amor platônico, irreal, ainda que inquestionável na palpitação de corações teimosos. Haja teimosia nesse departamento.
É sentir a agem: “Quem poderia fotografar, registrar, tatear o instante em que algo rompe entre duas pessoas? Quando aconteceu? De noite, enquanto dormíamos? (…) Enquanto comíamos? Agora (…)? Ou muito tempo atrás (…)”. A agem expõe a impossibilidade de localizar com precisão o momento em que uma relação se desfaz.
O rompimento não é súbito. É um processo que se dissolve silenciosamente na banalidade dos eventos cotidianos. Ao perguntar “quando?”, o narrador expõe a fragilidade dos marcos objetivos diante da erosão subjetiva dos vínculos. O texto desconstrói a ideia de ruptura como evento, tratando-a como um fenômeno difuso e irreversível. Há uma inquietação investigativa, mas também a aceitação de que a resposta não está disponível, apenas seus vestígios.
No contexto de uma Hungria burocratizada e saudosista os deveres do cônjuge se confundiam com os deveres da cidadania. A narrativa eleva o autor a uma instância inapelável. Difícil é separar o autor, o narrador, os personagens e a maior criação de qualquer autor, isto é, o próprio leitor.
A tradução do húngaro para o português é de Ladislao Sbazo (1958-2007). O tradutor nasceu na Argentina, formou-se em Arquitetura no Brasil (Mackenzie-São Paulo). A edição é da Companhia das Letras. Esse belíssimo livro também foi discutido no programa Direito e Literatura, conduzido por Lenio Streck, com a participação de André Karam Trindade e Carlos André Moreira. A trama toda se a em Buda, que foi unidade à cidade de Peste. Formavam o centro cultural do Império Austro-Húngaro.
Na moldura conceitual de “Divórcio em Buda” o leitor acompanha o declínio de um marco cultural da história do ocidente, também projetado no distanciamento das famílias. A dissolução do vínculo conjugal, no romance, espelha a fragmentação de valores e afetos que sustentaram comunidade e tradição, tornando Buda não apenas cenário: é também o símbolo da ruína silenciosa de um mundo que se foi.
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