Fraude à legítima com chancela do Judiciário: crítica à decisão do STJ no REsp 2.080.842/SP
20 de maio de 2025, 7h06
A legítima dos herdeiros necessários constitui limitação legal à liberdade testamentária. Sua função transcende a esfera patrimonial individual, operando como mecanismo de proteção da solidariedade familiar e da justiça distributiva pós-morte.

A proteção da legítima pode ser lida como desdobramento dos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, CF). Ao garantir um mínimo patrimonial aos herdeiros necessários, o ordenamento jurídico protege não apenas o patrimônio individual, mas também a base econômica da entidade familiar e o princípio da solidariedade intergeracional.
Trata-se de um instituto de ordem pública que prevalece mesmo diante de estratégias de planejamento patrimonial que busquem sua limitação ou exclusão, e não pode ser afastada nem por vontade das partes nem por convenções privadas, sendo um limite material ao exercício da autonomia da vontade no testamento.
Há, porém, um forte ruído no tratamento da legítima no Brasil, quando se permite a fraude e o indivíduo fraudador tem posses e condições técnicas de promover a remessa de quantias para países em que não há proteção incisiva aos herdeiros necessários — em especial os Estados Unidos, usado aqui como um exemplo conveniente.
Como regra geral, nos estados americanos, não há uma proteção contundente aos herdeiros necessários tal como no Brasil, havendo ampla liberdade de testar. Tal fato, conjugado com a interpretação dada pelo STJ no REsp 2.080.842/SP, configura autorização pretoriana à fraude à legítima para todo aquele que tenha posses e interesse suficiente em remeter valores para aquele país.
Tal decisão reafirma a orientação de que os bens localizados no exterior devem ser submetidos à jurisdição e legislação do país onde se situam, com base na regra da lex rei sitae. Esse entendimento se ancora na doutrina clássica do direito internacional privado, que busca preservar a soberania dos estados sobre os bens situados em seus respectivos territórios. Contudo, a aplicação automática desse princípio gera graves distorções quando se verifica a utilização de jurisdições estrangeiras para fraudar normas de ordem pública do direito sucessório brasileiro.
Imagine-se o seguinte exemplo. Assumamos que estados americanos (como a Flórida por exemplo, destino recorrente de brasileiros) não preveem proteção à legítima e o indivíduo tem relativa liberdade para realizar testamento sobre a totalidade do seu patrimônio; um indivíduo tem qualquer tipo de antipatia por um herdeiro necessário e pretende preteri-lo sem precisar se valer dos rigores e formalidades da deserdação; o indivíduo tem condições suficientes para abertura de conta em nome próprio ou em nome de offshores (e.g. em Estados como Delaware) em razão de benefícios tributários, de privacidade e facilidades operacionais.

Em tais hipóteses, bastaria ao indivíduo transferir bens aos Estados Unidos, dispor 100% de seu patrimônio em testamento em favor de um herdeiro necessário em detrimento de outro, preterido, e escorar-se em um entendimento inflexível de lex rei sitae para levar a efeito a fraude à legítima.
Essa literalidade, contudo, deve ser relativizada diante da existência de abuso de direito e de fraude à lei.
O próprio C reconhece, em seu artigo 21, parágrafo único, a possibilidade de o juiz brasileiro conhecer de ações que envolvam bens no exterior se o réu for domiciliado no Brasil ou se houver conexão relevante com o ordenamento jurídico nacional. Tal dispositivo pode e deve ser interpretado como abertura para o controle judicial de atos que, embora formalmente regulares, tenham por objetivo final a burla de normas cogentes nacionais.
A jurisprudência nacional também apresenta sinais de flexibilidade. Em decisões pontuais, os tribunais têm itido o controle da legalidade de atos praticados no exterior quando configurada simulação, fraude ou abuso de forma. [1]
Além disso, o princípio da cooperação jurídica internacional permite que o Brasil solicite e preste auxílio a outros países na coleta de provas, bloqueio de bens e efetivação de decisões judiciais. Essa via tem sido pouco utilizada em matéria sucessória, mas representa importante instrumento para a superação da fragmentação jurisdicional em contextos transnacionais.
A jurisprudência brasileira, embora ainda tímida, já reconheceu que a licitude da forma jurídica adotada não afasta a possibilidade de análise do propósito negocial e da substância econômica dos atos. O princípio da função social do contrato (artigo 421 do CC) e da boa-fé objetiva (artigo 422 do CC) impõe a necessidade de interpretar os negócios jurídicos de maneira a coibir abusos.
A aparência de legalidade não pode servir de escudo para a prática de atos que violam normas cogentes de direito material sobre tutela de interesses indisponíveis, como os direitos dos herdeiros necessários. A caracterização da fraude à legítima pode se dar tanto sob o aspecto objetivo, quando há ocultação ou simulação na transferência patrimonial, quanto sob o aspecto subjetivo, quando se identifica o propósito doloso de suprimir direitos hereditários por meio de estruturas artificiais.
É indispensável, portanto, que os tribunais brasileiros se atentem para os indícios de artificialidade, ausência de propósito negocial lícito e desproporcionalidade na destinação de ativos.
Análise crítica da decisão do STJ no REsp 2.080.842/SP
A decisão no REsp 2.080.842/SP revela uma preocupação insuficiente com os efeitos materiais de sua aplicação e com a finalidade protetiva do direito sucessório nacional. O acórdão não enfrentou, com a devida profundidade, os indícios de que a estruturação patrimonial feita pelo de cujus visava à exclusão de seus filhos da herança.
Houve ali evidências de que os ativos foram transferidos a uma pessoa jurídica sediada em jurisdição estrangeira com o claro intuito de excluir herdeiros necessários da herança. Essa operação acaba por receber, ainda que indiretamente, uma chancela institucional. Em termos doutrinários, configura-se uma decisão que aplica corretamente a norma errada, falhando em observar o princípio maior da ordem pública sucessória.
Ademais, a decisão permitiu a antecipação da meação à viúva sem a devida apuração do total do patrimônio do falecido. Tal medida gera desequilíbrio entre os herdeiros necessários não apenas por privilegiar um dos interessados, mas por inviabilizar eventual colacionamento ou pedido de redução de disposições testamentárias excessivas.
Uma proposta
Para a situação acima descrita, numa primeira proposta de reflexão, bastaria que o direito brasileiro reconhecesse a existência dos bens situados no exterior para fins de cômputo do monte mor. Não haveria propriamente uma invasão da jurisdição brasileira sobre qualquer outra, nem mesmo uma projeção concreta de efeitos de comandos brasileiros para jurisdições aliunde. Tal providência não retiraria do Poder Judiciário brasileiro a capacidade de simplesmente reconhecer a existência de um fato e outorgar-lhe eficácia jurídica tão somente no Brasil.
Tal reconhecimento limita-se a valorar um fato havido no exterior, sem qualquer ingerência sobre ele; outorga-lhe valor jurídico no Brasil ao reconhecê-lo no cômputo do monte mor, permitindo, por exemplo, que bens residuais localizados no Brasil possam ser distribuídos respeitando-se a regra da legítima, já consideradas as transferências realizadas no exterior.
Para facilitar a visualização, imagine-se que o de cujus, com dois herdeiros necessários (o “preferido” e o “preterido”), era titular de R$ 1 milhão no Brasil e R$ 1 milhão no exterior. Os valores no exterior foram transferidos ao “preferido” por antecipação de legítima.
Pelo critério fixado pelo precedente do STJ, o preferido teria direito à integralidade dos valores objeto de testamento no exterior, potencialmente mais R$ 500 mil derivados de ato de livre disposição brasileira em testamento, acrescido de R$ 250 mil de sua legítima, totalizando R$ 1,75 milhã, enquanto o “preterido” receberia apenas R$ 250 mil.
Ao se itir que os valores do de cujus no exterior possa ser contabilizados para fins de monte mor, o Poder Judiciário poderia reconhecer o monte mor de R$ 2 milhões, a livre disposição de 50% no total de R$ 1 milhão, e a divisão do restante respeitando-se a regra do artigo 1.846 do CC, permitindo-se que o preterido recebesse os R$ 500 mil a que faria jus se a totalidade do patrimônio fosse localizada no Brasil. Esse efeito neutralizador dependeria da existência de bens no Brasil e fora, permitindo a conta de fechamento mencionada.
A situação, contudo, ganha maior complexidade quando o “planejamento sucessório” envolve a transferência da totalidade de bens ao exterior para que o indivíduo possa fazer a livre gestão mediante testamento sem atentar para a legítima. Nesse caso, seria necessário vindicar o caminho da cooperação entre as jurisdições.
A solução para os desafios impostos pela fraude à legítima exige uma abordagem que reconheça que normas de direito internacional privado, como a lex rei sitae, não podem ser interpretadas de forma dissociada dos princípios constitucionais e da ordem pública brasileira.
A hermenêutica constitucional impõe ao Judiciário o dever de interpretar normas infraconstitucionais à luz dos direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CRFB), a solidariedade familiar (artigo 226, CRFB) e a igualdade entre os herdeiros (artigo 227, 6º da CRFB).
A cláusula da ordem pública internacional, prevista no artigo 17 da Lindb, permite ao Judiciário afastar a aplicação de lei estrangeira que contrarie valores fundamentais do ordenamento brasileiro. Essa ferramenta deve ser usada com critério, mas com firmeza, especialmente quando o ordenamento alienígena for invocado para legitimar a exclusão dos herdeiros necessários.
Do ponto de vista legislativo, poder-se-ia cogitar a criação de normas específicas sobre planejamento sucessório internacional, inspiradas em modelos como o “Regulamento Sucessões” da União Europeia (Regulamento UE nº 650/2012), que estabelece regras claras sobre competência e lei aplicável em matéria de sucessão, incluindo a prevalência de normas imperativas.
Conclusões
A decisão do STJ no Recurso Especial 2.080.842/SP representa um preocupante precedente na evolução jurisprudencial do direito sucessório brasileiro. Ao negar até mesmo a consciência da jurisdição brasileira sobre bens situados no exterior, mesmo diante de indícios de fraude, o tribunal fragiliza a proteção conferida pela legítima e contribui para legitimar estratégias de evasão patrimonial com roupagem de legalidade. Propõe-se aqui a revisitação do tema a partir de premissas razoáveis.
[1] Por todos: TJSP; Agravo de Instrumento 2012466-60.2021.8.26.0000; Relator: Theodureto Camargo; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 5ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 01/09/2021; Data de Registro: 02/09/2021
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