No dia 13 de fevereiro de 2025, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça concluiu o julgamento do REsp nº 2.072.206/SP, oportunidade em que, por maioria, adotou o entendimento externado pelo relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, segundo o qual “o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo ivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo” (REsp nº 2.072.206/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Corte Especial, julgado em 13/2/2025, Djen de 12/3/2025).
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Na sequência, a parte sucumbente naquele feito opôs embargos de declaração, também para requerer que o colegiado se pronunciasse acerca da possibilidade de modulação dos efeitos sobre o posicionamento adotado (C, artigo 927, § 3º). A propósito, no momento do envio deste articulado ao Conselho Editorial, os declaratórios pendem de julgamento.
É flagrante a incomensurável repercussão lograda pelo entendimento adotado pelo STJ em fevereiro último. E a conclusão por se lhe aplicar, ou não, os efeitos prospectivos, claro, vinculará o resultado do julgamento de milhares de demandas atualmente em trâmite em todo o país, emergindo daí a imprescindibilidade de se discutir a matéria com distinta cautela. Até o momento, reconheça-se, a grande maioria dos estudiosos do processo civil, principalmente o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) — que funciona como amicus curiae naquele expediente —, tem se posicionado pelo cabimento da modulação dos efeitos. Neste escrito, contudo, trazemos opinião, ao menos em parte, diversa, com o propósito de prestar modesta colaboração para a ampliação do debate.
Diretamente ao ponto, prescreve o artigo 927 do C, em seu parágrafo terceiro, que, “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”. Portanto, a modulação dos efeitos do novo precedente tem lugar apenas quando este se prestar a substituir “jurisprudência dominante”. Mas, afinal, qual é o significado dessa locução? Urge se identificá-lo precisamente, sob pena de desvirtuamento de uma ferramenta tão essencial para o nosso sistema de precedentes.
Divergência jurisprudencial pela Fazenda Nacional
A par dessa necessidade, salienta-se, inicialmente, que o próprio STJ ainda não sedimentou entendimento acerca do tema. Inclusive, identificamos que a existência de divergência jurisprudencial a esse respeito foi suscitada pela Fazenda Nacional no EREsp 1.898.532/CE, oportunidade em que se destacou que as turmas daquele tribunal de cúpula têm emprestado interpretações diversas a tal conceito, quadro que levou o ministro Og Fernandes, na condição de integrante da Corte Especial e relator do feito, a proferir decisão monocrática em 18 de dezembro de 2024 no sentido de receber os embargos de divergência (EREsp nº 1.898.532/CE, relator ministro Og Fernandes, Corte Especial, p. 3373/3377), os quais atualmente também aguardam por solução, de maneira que, atentando-se novamente à relevância do que ainda será decidido no contexto do REsp nº 2.072.206/SP, em homenagem principalmente à segurança jurídica, afigura-se recomendável aguardar-se o deslinde dessa outra controvérsia em definitivo.
Mas é muito provável que se adotará caminho diverso — e temerário. Afinal, os embargos de declaração que trazem o pleito de modulação dos efeitos sobre a questão dos honorários no IDPJ já foram inseridos em pauta de julgamento, e o pior, da sessão virtual prevista para iniciar-se em 21 de maio de 2025 — na qual permanecerão salvo pedido de destaque —, ambiente nada fecundo para debates dinâmicos e aprofundados.
Considerando-se, então, o cenário em que o julgamento provavelmente se dará, apontamos aqui a diretriz mais confiável e segura para dirimência da questão levantada, qual seja, a jurisprudência já edificada pelo STJ sobre tema semelhante. Referimo-nos ao posicionamento firmado pela Primeira Seção quando do julgamento do PUIL nº 825/RS, relator o ministro Sérgio Kukina. Na fração de interesse, assim concluiu aquele colegiado:
(…)
4. À falta de baliza normativo-conceitual específica, tem-se que a locução “jurisprudência dominante”, para fins do manejo de pedido de uniformização de interpretação de lei federal (PUIL), deve abranger não apenas as hipóteses previstas no art. 927, III, do C, mas também os acórdãos do STJ proferidos em embargos de divergência e nos próprios pedidos de uniformização de lei federal por ele decididos, como proposto no alentado voto-vista da Ministra Regina Helena Costa, unanimemente acatado por este Colegiado.
(…)
(PUIL n. 825/RS, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 24/5/2023, DJe de 5/6/2023.)
É certo que, naquela ocasião, examinou-se a expressão contida no artigo 14, § 2º, da Lei Federal nº 10.259/01. Mas, claro, o conceito é um só. Atribuir-se significados diversos a essa locução dentro de uma mesma conjuntura temporal caracterizaria afronta ao artigo 926 do C, notadamente sob o ponto de vista da coerência jurisprudencial.
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Jurisprudência dominante
Pertinentes essas ponderações porque não há nenhum julgado do STJ — pelo descabimento da condenação ao pagamento dos honorários — que tenha sido edificado no contexto de quaisquer dos ritos especiais dispostos nos incisos do caput do artigo 927 do C ou em julgamento de embargos de divergência. Tem-se, na realidade, precedentes persuasivos nesse sentido, os quais, à luz da jurisprudência invocada, não podem ser classificados como “jurisprudência dominante”, o que, de per si, escancara a inviabilidade de se modular os efeitos do precedente qualificado recém-engendrado.
Não ignoramos, de mais a mais, a existência da corrente partidária de que determinado entendimento se convola em jurisprudência dominante a partir do momento em que a a ser adotado na maior parte dos julgados, não se exigindo a seu respeito a unanimidade. Cuida-se, inobstante, de posicionamento equivocado, posto que marcado pela imprecisão ao dispensar elementos objetivos — v.g., quantitativos — como parâmetro para classificação dos posicionamentos, o que abre flanco para subjetivismos e, por conseguinte, para a insegurança jurídica. De todo modo, abstraída essa constatação, cumpre rememorar que até agosto de 2023, ambas as turmas integrantes da 2ª Seção reafirmaram o posicionamento pelo descabimento da condenação aos honorários sucumbenciais no IDPJ.
Mas, como se sabe, em setembro daquele mesmo ano, a 3ª Turma evoluiu seu entendimento (REsp n. 1.925.959/SP, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 22/9/2023) e, doravante, ou a replicar a conclusão de que cabe sim tal condenação naquelas circunstâncias. Concomitantemente, a 4ª Turma manteve seu posicionamento. Gerava-se, então, uma conjuntura de divergência jurisprudencial manifesta, a toda evidência afrontosa à segurança jurídica. Aliás, caso a 3ª Turma houvesse deliberado pela remessa daquele feito à 2ª Seção ou à Corte Especial (RISTJ, artigo 14, II, e 16, IV) ainda no longínquo ano de 2023, essa situação de incerteza provavelmente não emergiria. De qualquer maneira, por razões sobre as quais não cabem especulações neste momento, acertadamente ou não, assim não se procedeu.
Caos jurisprudencial
O caos jurisprudencial então se instalou e foi justamente nesse ambiente em que se deu o julgamento do REsp nº 2.072.206/SP. Ou seja, o posicionamento recentemente adotado pela Corte Especial, na realidade, neutralizou uma grave dissonância jurisprudencial. Ora, se as duas turmas que concentram praticamente a totalidade dos feitos que cuidam do tema em debate mantiveram entendimentos diametralmente diversos por considerável tempo até que o deslinde se desse, carece de lógica a afirmação de que se promoveu a superação de jurisprudência dominante — considerando-se a acepção que lhe empresta a corrente há pouco mencionada —, não havendo espaço, assim, para a aplicação dos efeitos prospectivos.
Noutro giro, a Lei Processual Civil não determina marco específico para fins de modulação dos efeitos. Significa dizer que o termo inicial de incidência do precedente que substitui jurisprudência dominante não necessariamente será a data do julgamento que o produziu, podendo o tribunal adotar outro marco fático/temporal. É o que se colhe da lição de Fernando da Fonseca Gajardoni e colaboradores, senão confira-se:
(…) Em tal contexto, o art. 927 permite e calibração da eficácia da decisão, para que as alterações de jurisprudência sejam realizadas sem aplicação retroativa (prospective overruling), limitando sua aplicação (limited prospectivity). (…) Tangencialmente, interesse social que se contrapõe ao interesse individual na manutenção/alteração do status quo (segurança jurídica), para que no exame da modulação se verifique se a alteração no padrão decisório, desde o ado, não importa em mais desajustes do que benefícios diretos. Assim, a paleta de cores é rica: além da projeção para o futuro, pode ocorrer de se aplicar o precedente de forma retroativa (retrospective overruling), de forma plena ou limitada (full retroaction ou limited retroaction). (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil, 5 ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 1340)
Não por acaso, atento à relevância desse instrumento e, principalmente, ciente dos desdobramentos nefastos da sua eventual má gestão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda “que o tribunal leve em consideração preferencialmente o momento da conduta da parte e a orientação jurisprudencial firme existente à época, para fixar parâmetros da eficácia temporal do novo precedente” (artigo 47 da Recomendação nº 135/22), ou seja, que a modulação dos efeitos se dê de acordo com as particularidades do caso concreto, identificando-se precisamente o lapso temporal em que a incidência do novo posicionamento se afigure imprópria à luz da segurança jurídica e do princípio da confiança.
Relevantes essas ponderações porque, reiterando-se, instalou-se acentuada crise jurisprudencial a partir de 12 de setembro de 2023 por ocasião da evolução do entendimento da 3ª Turma acerca do tema de fundo, contexto em que não havia mínima previsibilidade acerca do resultado que se colheria no âmbito desses feitos, não se podendo cogitar, pois, que aqueles que moveram tal incidente a partir de então tenham sido surpreendidos pela conclusão a que chegou a Corte Especial em sede de desate da controvérsia. Logo, se é que havia jurisprudência dominante acerca da matéria, sua preponderância restou aniquilada naquele específico momento, de maneira que, forte nos normativos referidos, se o caso, a eficácia do precedente qualificado produzido há pouco deverá retroagir ao menos até referida data.
Em conclusão, defendemos que esse julgamento, que envolve matéria de envergadura singular — prerrogativas da advocacia — e cujo resultado repercutirá em dezenas de milhares de feitos, seja guiado pelo debate democratizado e, principalmente, pelo império da lei e do bom senso. Que não se macule a segurança jurídica sob a justificativa de se protegê-la.
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