Opinião

Exigência de prova concreta para desconsideração da PJ: segurança jurídica reafirmada pelo STJ

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21 de maio de 2025, 17h17

A desconsideração da personalidade jurídica é instituto de aplicação excepcional, voltado à repressão de fraudes e abusos cometidos sob o manto da autonomia patrimonial das sociedades empresárias. A legislação brasileira, por meio do artigo 50 do Código Civil, adota a chamada Teoria Maior, exigindo para sua incidência a demonstração objetiva de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, vejamos:

“Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de es ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

Recentemente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.139.331, reafirmou com vigor a exigência de prova efetiva do abuso da personalidade jurídica para a sua desconsideração. O acórdão afastou fundamentos genéricos, como a inexistência de bens penhoráveis ou o encerramento irregular da empresa, e reiterou que apenas elementos concretos e robustos podem justificar a superação da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Trata-se de manifestação judicial que preserva o rigor técnico da Teoria Maior e fortalece a segurança jurídica nas relações empresariais.

No caso em análise, o STJ enfrentou pedido de desconsideração fundado na alegação de que a empresa executada não possuía bens e teria sido encerrada irregularmente. A corte, porém, entendeu que tais circunstâncias, por si sós, não configuram as hipóteses legais de desconsideração previstas no artigo 50 do Código Civil. Para que se possa responsabilizar os sócios ou outras empresas do mesmo grupo, é necessário demonstrar, de forma inequívoca, o uso indevido da personalidade jurídica, seja por meio de desvio de finalidade, seja por confusão patrimonial.

Tal exigência jurisprudencial não é isolada. O STJ já havia decidido em sentido semelhante no AgInt no AREsp 1.679.434/SP, reafirmando que a aplicação da Teoria Maior exige a comprovação de abuso da personalidade jurídica, não sendo suficiente a mera inexistência de bens ou o encerramento irregular da empresa. O julgado reiterou que, sem elementos objetivos que revelem desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não se pode itir a desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de subversão do princípio da autonomia patrimonial.

O artigo 50 do Código Civil consagra essa visão ao estabelecer que a desconsideração somente se justifica em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Trata-se, portanto, de uma formulação que exige não apenas uma demonstração de inadimplemento ou insolvência, mas uma conduta que manipule dolosamente a separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios ou es.

Spacca

Nesse contexto, os ensinamentos doutrinários também são convergentes. Fábio Ulhôa Coelho esclarece que o pressuposto inafastável da desconsideração é a ocorrência de fraude perpetrada com o uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Tal fraude não pode ser genérica ou apenas financeira, mas sim específica quanto à manipulação da separação patrimonial. Coelho distingue entre duas formulações doutrinárias: uma subjetivista, que exige elemento volitivo (como defendido por Fábio Konder Comparato), e outra objetivista, que ite a desconsideração em face de situações objetivas como a confusão patrimonial ou o desaparecimento do objeto social (Coelho, 2016, p. 125).

A interpretação da norma também tem sido objeto de reflexão nos Enunciados do Conselho da Justiça Federal. O Enunciado 146 determina que, nas relações civis, os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no artigo 50 devem ser interpretados restritivamente, o que reforça a natureza excepcional do instituto. Já o Enunciado 282 afirma que o encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não é suficiente para caracterizar abuso, alinhando-se à jurisprudência do STJ.

Nesse sentido, é possível concluir que a aplicação da Teoria Maior no direito brasileiro, especialmente nas relações regidas pelo Código Civil, demanda rigor probatório. A simples dificuldade do credor em satisfazer seu crédito não justifica, por si só, a responsabilização direta dos sócios, sob pena de se banalizar a desconsideração da personalidade jurídica e enfraquecer os fundamentos econômicos e jurídicos da autonomia patrimonial.

Marco jurisprudencial

Aliás, como destaca Fábio Ulhôa Coelho, a desconsideração não se presta a corrigir os efeitos de negócios frustrados ou ineficazes, mas sim a coibir o uso indevido da forma jurídica para lesar terceiros ou praticar atos ilícitos (Coelho, 2008, p. 37/38). A atuação do juiz, nesses casos, não pode ter como fundamento apenas o descumprimento de normas ou a ausência de bens, mas deve estar fundada em conduta abusiva com manipulação da estrutura societária.

Desse modo, a decisão proferida pela 4ª Turma do STJ no AgInt no AREsp 2.139.331/SP representa um importante marco de reafirmação da jurisprudência consolidada sobre o tema. Ela impede que o instituto da desconsideração seja utilizado como atalho para satisfação do crédito, em detrimento da segurança jurídica e da previsibilidade das relações empresariais.

Ao preservar os valores da boa-fé objetiva, da estabilidade e da confiança nos institutos jurídicos, o STJ reforça que a responsabilidade patrimonial dos sócios, nos casos da teoria maior, só pode ser estendida quando cabalmente demonstrada a utilização indevida da pessoa jurídica. Assim, evita-se que a exceção se torne regra e que a autonomia da vontade e da estrutura societária seja desfigurada por decisões baseadas em meras presunções ou conveniências processuais.

 


Notas:

1. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 2139331/SP. Rel. min. Marco Buzzi. 4ª Turma. Julgado em 23/04/2024.

2. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1679434/SP. Rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 3ª Turma. DJe 28/09/2020.

3. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: direito de empresa. 28. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 125.

4. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: parte geral e direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 37/38.

5. Enunciado 146 do CJF. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/146. o em: 15 maio. 2025.

6. Enunciado 282 do CJF. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/282. o em: 15 maio. 2025

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