Organizações criminosas e duração razoável do processo: norma legal e jurisprudência elástica
21 de maio de 2025, 20h41
A Constituição, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII [1], assegura a todos o direito à razoável duração do processo, tanto na esfera judicial quanto istrativa. Esse direito fundamental, de matriz garantista, expressa um imperativo de celeridade e efetividade, especialmente sensível no processo penal, em que a liberdade do indivíduo pode estar diretamente comprometida.
Por outro lado, é igualmente fato que a complexidade dos delitos contemporâneos desafia os marcos tradicionais do tempo processual. Crimes praticados no seio de organizações criminosas, por sua natureza difusa e estruturalmente sofisticada, exigem do Estado uma resposta investigativa e processual mais robusta [2], o que, não raras vezes, implica em prazos dilatados para a instrução.
A Lei nº 12.850/2013, que disciplina a investigação criminal e os meios de obtenção da prova [3] em infrações penais praticadas por organizações criminosas, buscou justamente oferecer ferramentas adequadas ao enfrentamento desse novo perfil de criminalidade. Entre essas disposições, o artigo 22, parágrafo único, dispõe que, “em virtude da complexidade da causa ou da existência de fato procrastinatório imputável ao investigado, o prazo para a conclusão da instrução criminal poderá ser prorrogado por igual período”, dobrando o limite ordinário de 120 para até 240 dias.
Essa previsão legislativa representa, ao menos em tese, um equilíbrio possível entre a necessidade de aprofundamento probatório e o compromisso com a duração razoável do processo — principalmente quando se trata de réu preso no curso da instrução. Entretanto, o que se observa na prática forense é uma tendência crescente de flexibilização desse limite, inclusive além da margem de tolerância expressamente autorizada pela norma.
Elasticidade jurisprudencial e a fragilidade da norma
A jurisprudência nacional tem recorrido frequentemente à noção de “complexidade do caso concreto” como justificativa para ultraar os marcos temporais previstos em lei. O problema não reside na consideração da complexidade em si — que é, de fato, um critério legítimo [4] —, mas na ausência de balizas objetivas que contenham a elasticidade dessa justificativa.
É o que se vê, por exemplo, em julgados como o do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), em que, mesmo diante da duplicação máxima autorizada pelo artigo 22, ite-se nova extensão, com base em fatores como número elevado de réus, produção de provas em diferentes jurisdições e necessidade de diligências complementares. No caso do Habeas Corpus 20170020052277, julgado pela 3ª Turma Criminal do TJ-DFT, a prorrogação foi considerada justificada diante de um processo com 17 réus, 93 testemunhas e intercâmbio de informações oriundas de colaborações premiadas.
Em outro exemplo, o HC 0709726-87.2020.8.07.0000, também do TJ-DFT, tratava da organização denominada “comboio do cão”, notória por seu envolvimento em crimes gravíssimos e numerosos. Novamente, o Tribunal entendeu não haver excesso de prazo, ainda que o processo já extrapolasse os limites legais, afirmando que o tempo deve ser avaliado “não com base em critérios puramente matemáticos”, mas sim à luz da razoabilidade e proporcionalidade.
Norma como sugestão?
Embora os fundamentos dessas decisões possam até guardar coerência com a realidade empírica dos processos penais complexos, o descomo com a literalidade da norma produz um efeito deletério sobre a função regulatória da lei. Se o prazo de 240 dias — já estendido em relação ao procedimento penal comum — é sistematicamente ultraado, sem que isso configure ilegalidade, então a norma se torna mera sugestão, carente de força vinculativa.

Essa dissociação entre texto e prática compromete a previsibilidade e a segurança jurídica, em especial para os réus que, muitas vezes presos preventivamente, enfrentam uma indefinição temporal incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana. O que se vê, com frequência, é a criação de um sistema informal de tolerância ao atraso processual, em que a regra legal é, na prática, substituída por critérios subjetivos e casuísticos.
Não se ignora a complexidade dos crimes envolvendo organizações criminosas — aliás, essa é a razão pela qual o legislador já conferiu tratamento especial à matéria, por meio de um diploma legal específico e com margens processuais ampliadas. Mas o reconhecimento da “extra complexidade”, essa não prevista em lei, não pode servir como salvo-conduto para a eternização dos processos.
Busca por um equilíbrio possível
O desafio, portanto, está em harmonizar o interesse público na persecução penal eficaz com a necessidade de contenção dos excessos estatais. A resposta não está na pura e simples rigidez dos prazos legais — que, por vezes, de fato, são insuficientes —, mas na construção de parâmetros objetivos que permitam aferir a razoabilidade das dilatações, sem esvaziar o conteúdo normativo do artigo 22.
Uma saída possível seria o fortalecimento do controle judicial sobre os atos de prorrogação. Decisões que autorizem a extensão do prazo para além dos 240 dias deveriam ser excepcionalíssimas, com fundamentação concreta e vinculada a fatos novos e imprevisíveis. Mais que isso, deveriam ser objeto de fiscalização processual ativa por parte dos tribunais, inclusive em sede de habeas corpus de ofício, quando evidenciado o abuso.
Paralelamente, caberia ao Legislativo promover eventual revisão da Lei nº 12.850/2013 [5], atualizando seus prazos à luz da realidade empírica das investigações, mas sempre com a cautela de proteger os direitos fundamentais dos investigados. O reconhecimento do problema, sem o correspondente aprimoramento normativo, apenas reforça o descolamento entre a lei e sua aplicação, com prejuízo à legitimidade do sistema.
A atuação contra organizações criminosas exige um Estado forte, aparelhado e célere [6]. Mas exige, sobretudo, um Estado que respeite seus próprios marcos normativos. A prorrogação indiscriminada da instrução penal, ainda que amparada em critérios de razoabilidade, não pode se tornar regra.
A Constituição não garante apenas a persecução penal eficiente, mas também a tutela da liberdade e do devido processo legal. Se a complexidade dos casos impõe novos desafios, que se enfrentem por meio da técnica, da estrutura e da racionalidade jurídica — nunca pelo abandono progressivo da legalidade.
O artigo 22 da Lei nº 12.850/2013 ainda é a regra. E como tal, deve ser respeitado. Enquanto a norma for tratada como retórica e a jurisprudência continuar a relativizar prazos com base em justificativas genéricas, estaremos assistindo não ao fortalecimento do sistema penal, mas à sua corrosão silenciosa. A complacência com a perpetuação da instrução penal sob o pretexto da complexidade — ainda que real — normaliza a exceção, transforma o provisório em definitivo e agride frontalmente o núcleo duro do devido processo legal. Ou reafirmamos a centralidade da legalidade como limite da atuação estatal, ou caminhamos para um direito penal de emergência permanente, em que a forma cede lugar à conveniência. E nesse cenário, o risco é claro: o processo deixa de ser garantia e a a ser instrumento de desgaste punitivo.
[1] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e istrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide ADI 3.392)
[2] FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Crime Organizado. Coordenadores MESSA, Ana Flávia e CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[3] GOMES, Rodrigo Carneiro. O Crime Organizado Na Visão Da Convenção De Palermo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2009.
[4] MAIA, Carlos Rodrigo Fonseca Tigre. O estado desorganizado contra o crime organizado: anotações à lei federal nº 9.034/95. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
[6] SZNICK, Valdir. Crime Organizado: comentários. São Paulo: Livraria e editora Universitária de Direito LTDA, 1997.
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