Opinião

Alimentos compensatórios vs crédito compensatório na reforma do Código Civil

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  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e em Direito Civil Comparado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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22 de maio de 2025, 6h36

Em outra oportunidade, pudemos aqui ponderar criticamente acerca da inserção no Direito brasileiro dos nominados “alimentos compensatórios humanitários”, instituto que, como se sabe, não encontra previsão no ordenamento vigente [1].

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

Entretanto, tendo em vista que a projetada reforma almeja a sua incorporação no Código Civil, parece-nos que a discussão ganha novos relevantes contornos que precisam ser sopesados, não havendo razão para se agastar com o confronto acadêmico, impessoal, civilizado e cooperativo de ideias, inerente, aliás, a todo processo legislativo democrático.

Assim, o nosso exercício de reflexão pretende demonstrar as impertinências da proposta de lege ferenda, e, por outro lado, incorporar entre nós o estudo do “crédito compensatório”, figura presente na codificação portuguesa, que poderá se revelar mais apropriada para lograr as finalidades colimadas pelo legislador.

Teor da proposição

Consoante o Projeto de Lei nº 4/2025, o novel artigo 1.709-A teria a seguinte redação:

“O cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida, terá direito aos alimentos compensatórios que poderão ser por prazo determinado ou não, pagos em uma prestação única, ou mediante a entrega de bens particulares do devedor”.

De início, pode-se aferir que a propositura incide em 2 equívocos basilares:

1) se incontroversa a ausência de escopo alimentar, tanto que o pretenso artigo 1.695-K, sugerido pela subcomissão, mas rejeitado pela relatoria geral, preceituava expressamente o seu caráter indenizatório, tal nomenclatura, por evidente, carece de cientificidade, não se tratando, é bom que se diga, de fútil guerra de etiquetas, mas de rigor técnico. Ilustrativamente, no direito francês, berço dessa categoria jurídica, adotou-se a expressão “prestação compensatória” (prestation compensatoire), o que também ocorreu no codex romeno de 2009 (prestația compensatorie), enquanto o Código argentino de 2014, por sua vez, abraçou a locução “compensación económica”. E nunca é demais relembrar: a utilização hodierna do vocábulo “alimentos” não a de estratégia doutrinária para viabilizar a sua recepção em nosso sistema à margem da legislação, dando-lhe uma feição artificial destituída de sustentáculo, inexistindo fundamento para se repisar essa imprecisa terminologia;

2) a plena cumulação dos ditos “alimentos compensatórios” com os “alimentos assistenciais” (alimentos em sentido estrito – artigo 1.702) tratar-se-ia não somente de uma singularidade da lei pátria, mas a positivação de uma importação deturpada do instituto. Em França, sobretudo após a reforma de 2004, é cediço que a pensão alimentícia (pension alimentaire) foi definitivamente substituída pela prestação compensatória, salvo se convencionado diversamente [2]. No direito espanhol, outrossim, dissolvido o vínculo matrimonial, o ex-cônjuge apenas poderá requerer o pagamento da pensión compensatoria, já que a obligación alimenticia pressupõe a existência de um liame familiar [3].

O artigo 390, alínea 3, do Código romeno, proíbe peremptoriamente tal embolso conjunto, convindo consignar que a prestația compensatorie só pode ser postulada se o casamento perdurou por pelo menos 20 anos (artigo 390, alínea 2) [4]. Na lex argentina, a vedação está prescrita no artigo 434, alínea b, in fine, que, por sinal, ainda impede que a obrigação alimentar tenha duração superior àquela do respectivo matrimônio, havendo uma única exceção a essas duas restrições (não cumulatividade e limitação temporal da prestação de alimentos): se forem devidas a quem padece de uma grave enfermidade preexistente ao divórcio que o impeça de se sustentar (alínea a).

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Mas não é só. Salta aos olhos que a proposta não contempla nenhuma regulamentação. Verbi gratia, o Code francês disciplina a matéria entre os seus artigos 270 e 281.

É bem verdade que no texto apresentado pela Subcomissão constava uma detalhada normatização, que, todavia, não foi acolhida pela Relatoria Geral. Sem embargo do desconhecimento das razões do seu descarte, essa proposição inicial, em nosso sentir, exprimia com clarividência a ínsita contradição que enseja a sua issão desvirtuada, pois embora anunciasse a natureza indenizatória desses “alimentos” e a impossibilidade de prisão civil do devedor em mora (artigo 1.695-K), todo o regramento idealizado remontava à obrigação alimentar já prevista pelo Código (binômio necessidade x possibilidade – artigo 1.695-C; extinção caso o credor viesse a contrair novo relacionamento — artigo 1.695-F, inciso IV; possibilidade de redução posterior do valor – artigo 1.965-F, § 2º).

No mais, tem-se que os parâmetros elencados pelo artigo 1.695-B também estão previstos em várias legislações estrangeiras como balizadores para a fixação da pensão alimentícia (ex. artigo 125 da codificação suíça). E ainda que se diga que os diplomas francês (artigo 271), espanhol (artigo 97), romeno (artigo 391, alínea 2) e argentino (artigo 442), consagram rol semelhante para a quantificação da prestação compensatória, não se olvide que, nesses países, o ex-cônjuge não pode pleitear a percepção de alimentos. O bis in idem, portanto, revela-se manifesto, até porque, no Brasil, os alimentos assistenciais, independentemente do regime de bens, devem ser arbitrados considerando a condição social do beneficiário (CC, artigo 1.694, caput).

Resta-nos então trabalharmos com os parcos elementos estatuídos pelo artigo 1.709-A, que condiciona a sua exigibilidade à existência de um “desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida”.

Ora, em regra, a dissolução de uma relação familiar acarreta naturais prejuízos materiais aos envolvidos, que podem se manifestar de diversas formas, tais como: a) partilha de bens; b) assunção de obrigação alimentar em favor do ex-companheiro; c) cessação da divisão no custeio de despesas ordinárias (exemplo: financiamento de imóvel; taxa condominial) e extravagantes (ex.: viagens). Obviamente, aquele que possuir patrimônio particular e tiver maior renda, sofrerá com menos intensidade esse empobrecimento.

Por outro lado, não a desapercebida a menção à queda brusca do padrão de vida, qualificação ausente nas leis estrangeiras. No Code Napoléon, o artigo 270 dispõe que a prestação é destinada a compensar, tanto quanto possível, a disparidade gerada pela ruptura do matrimônio nas respectivas condições de vida, ao o que as legislações romena e argentina exigem a presença, respectivamente, de um “desequilíbrio importante” (artigo 390, alínea 1) e de um “desequilíbrio manifesto” (artigo 441).

Mas afinal, o que caracterizaria essa aludida queda brusca do padrão de vida? Consoante a respeitável doutrina que inspirou o pretenso preceito legal, seria a inexistência de bens em razão de um regime obrigatório ou convencional de separação de bens [5], com o que não podemos consentir. Como afirmamos em escrito anterior, o pacto antenupcial ou o contrato de convivência, como todo ajuste negocial, “configura indiscutivelmente um elemento de confiança e de estabilização de expectativas”, na precisa pontuação de Manuel Carneiro da Frada [6], ou seja, a legítima eleição por um regime patrimonial que não contempla nenhuma (ou diminuta) comunicabilidade deve ser respeitada, e não fragilizada.

Como se fosse pouco, o projeto ainda prevê uma “compensação por economia de cuidado” no regime da separação de bens (artigo 1.688, § 2º), in verbis:

“O trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar”.

A esse respeito, cumpre salientarmos que tal indenização não representa novidade no direito de família, já que antes do advento do entendimento que redundaria na anosa Súmula nº 380 do STF, a jurisprudência concedia à ex-concubina que prestara serviços domésticos ao antigo parceiro uma reparação pecuniária em forma de salários, mas isso ocorria, é claro, quando a união estável não era reconhecida pela lei [7].

Nesse contexto, ciente de que essa segunda compensação também aplicar-se-ia exclusivamente nos vínculos submetidos ao regime da separação de bens, de duas uma: ou para o legislador o dispêndio nas prendas domésticas e no zelo da prole nos demais estuários patrimoniais constitui circunstância irrelevante, ou se trata de mais um mero pretexto para debilitar a sua incomunicabilidade.

E que não se venha com o apelativo exemplo da esposa proibida pelo marido de laborar, eis que para tal ato ilícito incide os termos da Lei nº 11.340, cujo artigo 3º garante à mulher o direito ao trabalho, enquanto o artigo 7º, inciso IV, o enquadra como violência patrimonial.

Ademais, se aprovada, os estudiosos da análise econômica do direito poderão aferir, a partir da obtenção da média dos valores concedidos pelos tribunais, qual opção se revelaria mais eficiente para aquele que não pretende assumir as tarefas do lar: itir uma empregada ou deixar tais encargos a cargo do consorte, que será relegado à função de trabalhador subordinado informal. Um óbvio retrocesso. Em verdade, sabe-se que a divisão desigual entre homens e mulheres na assunção dessas responsabilidades tem raízes históricas e culturais que carecem de outras medidas mais sofisticadas para a sua efetiva superação.

Por fim, cabe advertir que essas compensações não tutelam a mulher hipossuficiente, já que ela habitualmente: 1) não vive sob o regime da separação de bens; 2) quando não é a única fonte de renda, atentando-se ao alto custo de vida, principalmente nos centros urbanos, é inviável que o sustento da família seja unicamente proporcionado pelo outro cônjuge.

Em termos objetivos: aquele que optou pela incomunicabilidade do patrimônio e por não desenvolver nenhuma atividade que lhe propicie renda própria, seja pelos motivos mais nobres ou por simples deleite, tem plena consciência de que o seu destino econômico está entregue ao arbítrio do consorte em manter a união, não podendo se esquecer que os casamentos no país duram em média 13 anos e oito meses. Assim, quem fez tal escolha racional ou emocionalmente, que e as consequências.

Como se vê, embora se propague que a reforma privilegia a autonomia privada, ela própria sabota o mais notável espaço de liberdade concedido no âmbito familiar, sequer explicitando, convém registrar, a viabilidade da renúncia prévia dessas compensações por meio de entabulações pré-nupciais.

Por tudo quanto exposto, e considerando que ao ex-cônjuge/companheiro continuam devidos os alimentos assistenciais, tais alterações deveriam ser descartas.

Contudo, em deferência à louvável intenção de se atenuar os desequilíbrios econômicos decorrentes da divisão de responsabilidades no seio familiar, seria de bom alvitre falarmos brevemente de uma figura lusitana, que, estranhamente, tem sido desprezada pela doutrina nacional.

Crédito compensatório

O artigo 1.676º do Código Civil português estabelece que “o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos” (nº 1).

Por conseguinte, o nº 2 do dispositivo preceitua que “se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes, esse cônjuge tem direito de exigir do outro a correspondente compensação”. Trata-se, pois, do denominado “crédito compensatório”.

Como leciona Daniel Vieira Lourenço [8], independentemente do regime patrimonial, a sua exigência dar-se-á a partir dos seguintes pressupostos: 1) contribuição consideravelmente superior por um dos consortes no cumprimento dos encargos da vida familiar, seja econômica ou por meio de trabalho doméstico e de cuidado com a prole, respeitadas as perspectivas individuais; 2) renúncia acentuada a interesses pessoais, notadamente envolvendo a sua carreira profissional; 3) existência de prejuízo econômico relevante; 4) nexo de causalidade entre o dano e a sua prestação exacerbada decorrente da desmedida abdicação.

Para nós, a fixação de rígidos requisitos circunscreve a sua aplicação a situações relevantes e dignas de tutela, impedindo o seu indiscriminado manejo, especialmente por aqueles que se utilizam das atividades caseiras e familiares para dissimular o ócio e o assaz comodismo.

Ilustrativamente, seria o caso da atriz que abandona a sua consolidada profissão para acompanhar o marido, jogador de futebol, que se transferiu para o exterior, ou do esposo que assumiu o ônus do integral sustento do lar quando a esposa abandonou o trabalho para se dedicar integralmente aos estudos visando a aprovação em concurso público.

Apesar da omissão quanto aos critérios de fixação do quantum, bem como da possibilidade de transação ou renúncia, parece-nos que tal instituto deveria merecer a consideração da nossa reforma que se avizinha.

 


[1] aqui

[2] MALAURIE, Philippe; FULCHIRON, Hugues. Droit Civil: La Famille. Coord. Philippe Malaurie e Laurent Aynès. 4.ed. Paris: Defrénois, 2011, p. 322. Diferentemente do que ocorre no âmbito da separação judicial, onde mantém-se a exigibilidade da pensão alimentícia (art. 303), mas não da prestação compensatória.

[3] LOURENÇO, Daniel Vieira. Crédito Compensatório: Fundamento, Âmbito e Determinação no Direito da Família Português. Lisboa: AAFDL, 2024, p. 186-200. A propósito, informa o autor que, apesar de certa cizânia, ite-se majoritariamente a articulação de ambos durante a constância do matrimônio, notadamente nas hipóteses em que os consortes se encontram separados.

[4] BORCAN, Daniela; CIURUC, Manuela. Nouveau Code Civil Roumain: Traduction Commentée. Paris/Chasseneuil: Dalloz/Juriscope, 2013, p. 145.

[5] MADALENO, Rolf. Alimentos Compensatórios. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 140.

[6] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 2004, p. 666.

[7] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 210.

[8] LOURENÇO, Daniel Vieira. Crédito Compensatório: Fundamento, Âmbito e Determinação no Direito da Família Português…ob. cit., p. 240 e seguintes.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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