é advogada especialista em direito das mulheres pós-graduada em direito penal legislação extravagante e direitos humanos pela ESMP conselheira pela OAB no Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de São José dos Campos (SP) e coordenadora regional das comissões das mulheres advogadas da 11ª Região istrativa da OAB-SP.
Nos últimos meses, as bonecas reborn — réplicas hiper-realistas de bebês — tornaram-se protagonistas de um episódio de comoção pública que diz mais sobre os vícios da nossa cultura jurídica e midiática do que sobre o comportamento das pessoas envolvidas. Notícias sobre mulheres que teriam levado tais bonecas a hospitais como se fossem crianças reais dominaram as redes sociais e chamaram atenção da imprensa, de parlamentares e do público geral. Mas o que há, de fato, por trás dessa narrativa?
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Até o momento, não há qualquer evidência concreta de que esse fenômeno seja recorrente ou mesmo real. Não existem registros oficiais de atendimentos médicos vinculados a esse tipo de confusão, tampouco dados que justifiquem a formulação de propostas legislativas. O que existe são vídeos descontextualizados, manchetes alarmistas e uma reação social que beira o escárnio.
A resposta do poder público, como infelizmente já se tornou comum, foi a tentativa de transformar essa comoção em norma. Parlamentares apresentaram projetos de lei que pretendem proibir condutas que já são reguladas, ou que sequer se enquadram como prática jurídica relevante. Trata-se de mais um exemplo claro de legislação simbólica, conceito bem delineado pela doutrina penal, em que o Estado cria normas apenas para oferecer resposta à opinião pública, sem respaldo técnico ou necessidade legítima (Mirabate, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal).
Viés de gênero
O problema se agrava quando se observa o viés de gênero que atravessa toda essa reação. O que vemos não é uma preocupação real com a saúde pública ou com possíveis riscos jurídicos, mas sim a ridicularização de comportamentos femininos associados ao afeto, ao cuidado e ao colecionismo. Enquanto isso, hobbies masculinos como coleções de miniaturas, games ou cosplay raramente geram o mesmo tipo de julgamento.
O episódio de uma suposta “guarda compartilhada de boneca reborn” em uma separação é um exemplo emblemático. Apresentado pela mídia como absurdo, o caso envolve, na verdade, questões patrimoniais: a boneca em questão possuía valor econômico, simbólico e possivelmente associado à produção de conteúdo digital. O rótulo de “guarda” serve apenas ao sensacionalismo, distorcendo os contornos jurídicos do que seria, na prática, uma disputa sobre um bem de valor.
Estamos diante de um caso claro de pós-verdade, fenômeno no qual crenças pessoais e reações emocionais se sobrepõem aos fatos verificáveis. A fragilidade desse tipo de narrativa representa risco real para o direito, pois compromete a racionalidade legislativa e a confiança nas instituições.
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Pânico moral e desinformação
A Constituição exige que a atividade legislativa observe os princípios da legalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Criar normas baseadas em pânico moral ou desinformação fere esses princípios e fragiliza o próprio sistema jurídico. Como alerta o STF, em diversas ações diretas de inconstitucionalidade — como a ADI 1.946, que tratou da proteção à maternidade —, o direito não pode ser instrumento de reforço a preconceitos ou desigualdades.
O verdadeiro problema, portanto, não são as bonecas, mas a forma como escolhemos tratar mulheres que desafiam padrões sociais e culturais. Quando o riso se sobrepõe à análise, e a pressa em legislar ignora os fatos, é a justiça que sai perdendo.
é advogada, especialista em direito das mulheres, pós-graduada em direito penal, legislação extravagante e direitos humanos pela ESMP, conselheira pela OAB no Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de São José dos Campos (SP) e coordenadora regional das comissões das mulheres advogadas da 11ª Região istrativa da OAB-SP.
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