Limites da transparência fiscal: crítica à SC Cosit 75/25 sobre trust discricionário
22 de maio de 2025, 20h46
A Solução de Consulta (SC) Cosit 75/2025, recém-publicada pela Receita Federal, propôs-se a examinar o alcance da Lei 14.754/2023 particularmente em situação envolvendo trust irrevogável e discricionário instituído no exterior.
Na ocasião, a Receita Federal apresentou duas conclusões que merecem destaque:
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A qualidade de “instituidor” deve ser atribuída à pessoa física que, em última instância, detenha o controle do patrimônio aportado por pessoa jurídica estrangeira; e
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Para ser considerado “beneficiário” e, assim, sujeito às respectivas obrigações, é suficiente constar do instrumento de instituição ou equivalente, ainda que o direito aos ativos esteja condicionado a evento futuro e incerto.
Conforme se verá adiante, o entendimento adotado na SC Cosit 75/2025 deturpa o conteúdo e o alcance de conceitos de direito privado, contraria princípios que regem a tributação da renda e desconsidera o trust discricionário, abstraindo a sua validade e seus efeitos na jurisdição em que foi constituído.
Lei 14.754/2023: origem, prescrição e limites
Historicamente, a tributação da renda obtida por entidades estrangeiras controladas por pessoas físicas residentes no Brasil apenas se concretizava quando os lucros eram pagos ao residente no país. Embora já houvesse controle sobre os resultados, permitia-se o diferimento da tributação.

Visando a impedir uma postergação indefinida da tributação de rendimentos mantidos no exterior, a Lei 14.754/2023 atualizou as regras do IRPF. Determinou-se, assim, a incidência do imposto das entidades estrangeiras desde o momento em que apurados, impondo um regime de transparência fiscal por meio do qual os resultados são atribuídos ao controlador no Brasil.
A lei também regulamentou o trust. Este, embora represente modo legítimo de organização e transmissão patrimonial intergeracional, igualmente estava suscetível a um diferimento indefinido e até a ocultação de titularidade. O objetivo da regulamentação, nesse caso, foi o mesmo já referido: assegurar a tributação de rendimentos existentes e disponíveis.
Evidentemente, a aplicação da nova lei deve observar as premissas que motivaram sua edição, o que pode justificar a adoção de regimes tributários distintos conforme a estrutura mantida no exterior. Particularmente no caso dos trusts, é necessário considerar que se trata de figura jurídica abrangente, composta por diversas modalidades, nem todas alcançadas pela transparência prevista na Lei 14.754.
Com efeito, no que diz respeito à segregação patrimonial, os trusts classificam-se em discricionários e não discricionários, a depender do grau de autonomia conferido ao para dispor sobre os ativos.
No trust discricionário, o exerce, de fato e de direito, o domínio sobre os bens, gerindo com autonomia os ativos, ainda que sob condições resolutórias e conforme os limites legais e contratuais aplicáveis. Em sentido oposto, no trust não discricionário, o instituidor controla a atuação do , preservando, na prática, poderes inerentes à propriedade. Nessas hipóteses, embora os bens estejam formalmente em nome do trust, é possível prever mecanismos legais de tratamento da estrutura como mera interposição.
Portanto, no contexto do regime de transparência da Lei 14.754/2023, não se justifica a atribuição de titularidade, no trust discricionário, àquele que efetivamente se desvinculou dos bens transferidos. Isso porque há, nesse caso, segregação patrimonial legítima, amparada por contrato típico da jurisdição em que o trust foi constituído.
Afinal, o legislador não revogou — nem poderia fazê-lo — os princípios estruturantes consagrados pelo Código Tributário Nacional (CTN), notadamente a necessidade de titularidade e disponibilidade para fins do imposto de renda. Tampouco foi afastado o artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), segundo o qual a lei do local onde situados os bens rege as relações a eles pertinentes.

Portanto, certos trusts constituem legítimos instrumentos patrimoniais e sucessórios, caracterizados pela transferência irrevogável do patrimônio do instituidor para istração independente. Isso se dá sem que haja atribuição automática dos ativos aos indicados como beneficiários potenciais. É nesse ponto que peca a interpretação do Fisco ao pretender atribuir a titularidade a indivíduos que, até então, figuram apenas como beneficiários hipotéticos.
O exame do direito comparado evidencia a relevância da distinção entre trusts discricionários e não discricionários nas diversas jurisdições que regulam o instituto. Daí que, sendo a qualificação das obrigações regida pela lei do local de sua constituição, não se sustenta o raciocínio de que a Lei 14.754/2023 teria o condão de suprimir os efeitos legítimos de institutos do direito estrangeiro utilizados em situações que nada têm a ver com planejamento tributário.
Ademais, continuam vigentes e aplicáveis os artigos 121 e 125 do Código Civil de 2002, que distinguem expectativa de direito e direito adquirido, bem como o artigo 43 do CTN, que condiciona a incidência do imposto de renda à existência de acréscimo patrimonial efetivo, ou seja, renda adquirida e disponível. Esses fundamentos reforçam que a Lei 14.754/2023 não autoriza a adoção de um regime absoluto de transparência, particularmente no caso de trusts discricionários.
Regime de transparência e identificação do instituidor
Contrariando os limites apresentados acima, a SC Cosit 75/2025 desconsiderou a pessoa jurídica cujo patrimônio foi aportado em trust. A partir disso, concluiu que poderia atribuir a condição de instituidor à “pessoa física última”, o que, todavia, não se sustenta.
Como visto, a mencionada lei voltou-se a impor transparência para capturar renda que já se encontrava sob o controle de pessoas físicas residentes no Brasil, mas que se beneficiavam de diferimento mediante a utilização de estruturas constituídas em jurisdições estrangeiras. Portanto, o art. 10 da lei autoriza desconsiderar o trust para identificar sujeito ivo apenas se verificado que a estrutura busca ocultar a titularidade efetiva do patrimônio a ele alocado.
A Lei 14.754 não autoriza desconsiderar sociedades estrangeiras que figuravam como legítimas proprietárias dos ativos. Seu objetivo não foi ignorar a autonomia patrimonial de entidades regularmente constituídas, mas eliminar o diferimento da tributação nos casos em que a pessoa física residente no Brasil exerce o controle sobre ganhos definitivos. Ao equiparar, sem base legal, o sócio à sociedade, a Receita afronta a teoria da personalidade jurídica, cuja desconsideração depende da ocorrência de fraude ou abuso de direito.
No caso concreto examinado pela solução de consulta, não há qualquer indício de desvio de finalidade que justifique a superação do véu societário. O trust examinado foi constituído em 2008, ou seja, muito antes da edição de qualquer norma que instituísse o atual regime de transparência. Ainda assim, a Receita Federal omitiu-se quanto a esse dado relevante e tratou a aplicação da transparência de forma genérica e irrestrita.
O ato desconsiderou que a transferência dos bens ao trust foi regulada pela legislação do Estado de Delaware, nos Estados Unidos da América, segundo a qual a titularidade dos ativos cabe à pessoa jurídica estrangeira, e não à pessoa física residente no Brasil. Ao atribuir a esta a condição de titular, a Receita Federal desconsidera a qualificação jurídica conferida pelo direito aplicável, em violação ao artigo 9º da Lindb.
Constata-se, portanto, que o Fisco aplica retroativamente os critérios introduzidos pela legislação de 2023 para presumir motivação tributária ilegítima em atos lícitos praticados em 2008. Insatisfeita com possíveis lacunas normativas, a Cosit ignora normas fundamentais e questiona, sem amparo legal, trusts estrangeiros válidos, com nítido viés arrecadatório.
Beneficiário por expectativa e condições suspensivas
Em desdobramento ainda mais problemático, a Receita atribuiu a condição de beneficiário a quem não detém essa condição.
Conquanto o artigo 12, inciso IV, da Lei 14.754/2023 conceitue “beneficiário” como “uma ou mais pessoas indicadas” para receber bens do do trust, a interpretação da lei não comporta a amplitude conferida pela Cosit para atribuir titularidade imediata a determinadas pessoas apenas em razão de sua indicação. A aquisição de titularidade deve ser compreendida como utilizada nas demais disposições normativas, sobretudo de direito privado e em matéria de sucessões.
Tal pressupõe a transferência de direitos de um sujeito para outro. Na ausência desse fluxo, não há aquisição de disponibilidade, requisito indispensável para a tributação da renda. Nesse sentido, é imprescindível identificar a efetiva transferência de propriedade, condicionada ao cumprimento do evento a que se subordina, previsto no instrumento do trust. Enquanto tal evento — como o falecimento do instituidor ou outra condição estipulada — não se verificar, o beneficiário possui apenas uma expectativa de direito, e não um direito adquirido.
Essa interpretação é coerente com a sistemática jurídica brasileira, que exige a ocorrência de fatos jurídicos específicos para a constituição de direitos reais ou sucessórios, como a morte do autor da herança ou a resolução da propriedade fiduciária. A mera indicação como possível beneficiário, portanto, não confere titularidade nem disponibilidade patrimonial, devendo prevalecer a lógica normativa que condiciona a aquisição de direitos à efetiva transferência de bens.
Disso resulta que, enquanto não implementada a condição suspensiva, não há aquisição de direito (artigo 125, CC/2002). A mera expectativa, vale dizer, a simples indicação, não pode ser equiparada ou definida legalmente como hipótese da disponibilidade jurídica exigida pelo artigo 43, I, do CTN.
A SC Cosit 75/2025 erra ao confundir expectativa (marcada pela eventualidade) com titularidade. Em trusts discricionários: o detém a titularidade jurídica (legal ownership) até a ocorrência de eventos previamente estipulados; os beneficiários potenciais não possuem direito de exigir transferências; e (c) as distribuições podem não ocorrer.
O caso analisado pela Receita ilustra outras estruturas legítimas marcadas por incerteza quanto à destinação patrimonial. Muitos trusts são instituídos com fins de proteção e segurança, funcionando, em certos casos, de modo análogo a seguros, cuja alocação de recursos depende de eventos imprevisíveis. São exemplos comuns aqueles voltados à preservação financeira em situações de crise política, instabilidade social ou agravamento da saúde do provedor familiar.
Tome-se, ainda, como exemplo hipótese não incomum em que o trust é instituído com cláusula que confere ao a faculdade de beneficiar, a seu exclusivo critério, a esposa ou companheira do instituidor existente à época de seu falecimento, ou apenas os filhos que, nesse momento, detenham patrimônio inferior a determinado valor de referência.
A posição da Cosit, ao ignorar essas peculiaridades, contraria a noção de patrimônio, desvirtuando o conteúdo desse instituto de direito privado, em afronta ao artigo 110 do CTN. Afinal, “as expectativas de direitos (direitos futuros, subordinados a eventos futuros e incertos) não têm participação no patrimônio, porque nele ainda não entraram”.[1] Ademais, embora o § 2º do artigo 43 do CTN atribua à lei a definição das condições e do momento da disponibilidade de rendimentos oriundos do exterior, tal previsão deve ser interpretada em harmonia com o caput do artigo.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal confirma o exposto:
“Disponibilidade é a qualidade do que é disponível. Disponível é aquilo de que se pode dispor. E entre as diversas acepções de dispor, as que podem aplicar-se à renda são: empregar, aproveitar, servir-se, utilizar-se, lançar mão de, usar. Assim, quando se fala em aquisição de disponibilidade de renda deve entender-se aquisição de renda que pode ser empregada, aproveitada, utilizada etc.
(…)
Segundo o entendimento manifesto acima, no primeiro caso (pessoa física), há mera expectativa de renda (renda fictícia). Somente com a venda do imóvel é que se efetiva a disponibilidade.” [2]
Posteriormente, fazendo referência justamente a esse julgado, outro precedente do STF foi expresso em apontar que “restou assentado que o § 2º do art. 43 do CTN, introduzido pela LC nº 104/01, não é inconstitucional, pois não deu CARTA BRANCA ao legislador ordinário, visto que a lei ordinária não pode definir como renda o que não é renda”. [3] Nessas circunstâncias, tratando-se de pessoa física, não há fundamento para tributar acréscimos patrimoniais vinculados a patrimônio que não lhe pertence, pelo mero fato de haver indicação como potencial beneficiário.
Afinal, pelo próprio arranjo contratual, não há garantia de que o que se encontra com o do trust será disponibilizado ao interessado.
Em nome de uma suposta eficácia plena e incontornável, a SC 75/2025 desvirtuou a disciplina legal aplicável aos trusts, violou regras de direito internacional privado e desprezou princípios constitucionais tributários. A Lei 14.754/2023 não dispensou o Fisco de respeitar contratos válidos no exterior, tampouco a exigência de acréscimo patrimonial efetivo para onerar a renda.
A alteração legislativa visou a coibir mecanismos de diferimento, ou seja, situações em que há controle para dispor sobre valores mantidos em entidades controladas ou estruturas semelhantes. Isso não se confunde com o que se verifica em trusts discricionários. Nessas hipóteses, não se trata de planejamento tributário, mas de legítimo planejamento patrimonial e sucessório.
Sem ingresso de riqueza no patrimônio, não há renda; enquanto a condição estiver suspensa, não há direito; e, na ausência de ambos, inexiste fato gerador.
[1] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 78.
[2] Voto do Min. Dias Toffoli no Recurso Extraordinário 611.586, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno, J: 10/4/2013.
[3] RE 541.090, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno, J: 10/4/2013 (voto do Min. Dias Toffoli).
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