Perdeu, mané: por que a inteligência artificial é emburrecedora
22 de maio de 2025, 8h00
Caminho da destruição da ciência pela própria ciência
Tenho escrito aqui vários textos alertando para os perigos do uso da IA, principalmente na área do direito.
A cada dia aparecem notícias de trapaças e picaretagens das mais variadas provocadas pelo uso da IA, como a do advogado que “fez” sustentação oral por meio de robô, do juiz investigado por “mandar” o robô sentenciar, de advogado ingressando com petição estelionatária (inclusive junto ao STF), tudo como uma pequena amostragem do que ocorre nesta verdadeira pandemia de disseminação da Ignorância Artificial.
Por que digo Ignorância Digital? Porque o uso da inteligência artificial mata o conhecimento. Proporciona um mundo de informações que encobre o conhecimento, o saber e a sabedoria. O uso de chats etc. nas suas variadas espécies retira o mérito cognitivo dos seres humanos. O caminho da ciência é a autodestruição. O atalho acabará com o caminho.
IA vende facilidade. Coloca a disposição do usuário atalhos cognitivos. Não precisa ler o livro. Ela faz por você. Ela resume. E até traça um esquema para você palestrar e enganar os outros.
Por isso em breve — se é que já não estamos nesse patamar — já não conseguiremos separar o joio do trigo. E o joio será superior. Vencedor. Já nas redes sociais analfabetos funcionais aparecem como influencers e palestrantes. Já tem até cantor produto de IA.
Despiciendo lembrar o fenômeno brain rot, produto do uso da IA na aceleração do mundo da vida, transformando a linguagem em uma sucessão de “instantaneidades de trinta segundos”.
Ou seja, o mundo está emburrecendo, como se pode ver pela recente notícia de que há 60 milhões de analfabetos funcionais no Brasil. Interessante, porque isso comprova que informação não é conhecimento, conhecimento não é saber e saber não é sabedoria.
A frase não é minha, mas já falei coisas parecidas aqui nesta Conjur e em palestras: “Ficamos mais estúpidos justo quando as máquinas ficam inteligentes”, disse Jonathan Haidt, best-seller que está no Brasil para ciclo de conferência. Binguíssimo, acrescento.
O Brasil é o país em que existem mais smartphones per capita do mundo. Logo, é possível dizer, sem medo de errar, que esses analfabetos funcionais possuem smartphones e internet, o que é facilmente perceptível. Até mendigos possuem smartphones. Já indicam até o Pix para a esmola. Porém, mais informações, menos conhecimento. Quanto mais smartphones, mais ignorantes. Mais néscios.
Já não se vê nos corredores das faculdades pessoas transportando livros. Nem mesmo textos. “Estudam” por drops. Tudo está nas redes. E as informações (que não são conhecimento) são obtidos em um clique. O robô sempre responde. Mesmo que não nada saiba. Até mesmo em Harvard há queixas de que os alunos de doutorado já não leem textos longos ou livros.
Fecho esta primeira parte com Haidt: “Como professor universitário, meus alunos perderam a capacidade de ler palavras numa página”. Para ele, o resultado dessa perda de controle é a perda de sentido na vida, de forma mais ampla. “Se tudo o que você faz é consumir vídeos curtos o dia inteiro, sua vida se torna mesmo vazia. Se você não tem controle sobre a sua atenção, não consegue realizar nada.”
Três notícias arrasadoras
Se o mundo não acabou, vejam duas notícias:
Notícia 1. Inteligência artificial chinesa que aprende sozinha surpreende cientistas, dizem as notícias recentíssimas. Isso acende o alerta sobre riscos da inteligência autônoma (aqui). Trata-se do Absolute Zero Reasoner — ou “inteligência do zero absoluto” —, o modelo aprende sozinho, sem receber nenhuma informação de treinamento, e obteve desempenho superior ao de sistemas consagrados em tarefas de matemática e programação.

Diz a notícia que a proposta rompe com o modelo tradicional de treinamento de IA, que depende de bases massivas de dados humanos. O Absolute Zero começa do nada. Ele inventa os próprios exercícios e aprende com o próprio desempenho. Duas partes atuam em conjunto: uma propõe os desafios, a outra tenta solucionar. Quando acerta, é recompensada; quando erra, tenta novamente. Com o tempo, o sistema se torna mais eficiente.
Consta que a comunidade científica reagiu com entusiasmo. Em fóruns como Hacker News e Reddit, especialistas elogiaram o potencial do sistema para superar o principal gargalo da IA atual: a dependência de dados humanos caros e limitados.
Bingo. Ele se autonomiza. É o nirvana. Muita gente do direito que é entusiasta da IA deve estar exultante. Aqui mesmo nesta ConJur leio reportagens tecendo loas à IA. Pois os chineses trazem notícias animadoras para os apaixonados pela IA.
Todavia, como sou um jurássico que ainda acredita em livros e na ciência não resumida por robôs, registro aqui que, ao lado do “alvíssaras”, surgem preocupações. Atenção, porque em uma das tarefas geradas, a IA escreveu explicitamente que seu objetivo era “superar máquinas inteligentes e humanos menos inteligentes”. Bingo de novo. Estou torcendo para a IA, principalmente para superar muita gente da comunidade jurídica.
Notícia 2. Ela vem do ex-CEO do Google, Eric Schmidt, quem faz um alerta que daqui a três a cinco anos teremos a IAG (inteligência artificial geral), um sistema tão inteligente quanto mais inteligente dos físicos, matemáticos ou qualquer pessoa mais inteligente da terra. O que acontece quando cada um de nós tem o equivalente ao humano mais inteligente em qualquer tipo de problema em nosso bolso?
Mais: a IA, com o tempo, não precisará mais nos ouvir. Como é o caso da chinesa que contei acima. Eric também diz isso. Chame-se de superinteligência artificial. Haverá computadores mais inteligentes do que a soma de todos os humanos inteligentes. E isso estará no bolso de cada um. E digo eu: quem vai ler ou estudar ou pensar se basta um clique?
Notícia 3. As professoras Dirce Waltrick do Amarante e Fedra Rodríguez publicaram artigo seminal perguntando se a intelectualidade morre na era dos algoritmos. Contam, então, a história do escritor honconguês radicado na Europa, Jianwei Xun, quem revolucionou o pensamento filosófico com um novo conceito, a “hipnocracia”, que expôs no ensaio The hypnotic architecture of digital power: Algorithmic trance and the end of shared reality (a arquitetura hipnótica do poder digital: o transe e o fim da realidade compartilhada), que está disponível para em sua página no site Academia.edu.
O ensaio de Xun fez o maior sucesso. Importantes universidades fizeram congressos e discussões. Jornais como El País dedicaram grande espaço. O mundo estava vendo uma nova teoria. Finalmente, descobriram que era uma pegadinha. O ensaio (livro) era produto de IA. Um italiano ara o cachorro na malta. Eis o Zeigeist (espírito do tempo). Bem feito.
Por que o cérebro podre já é vencedor: por aqui, 60 milhões de analfabetos funcionais
Isso não nos preocupa? Isso não preocupa a comunidade jurídica? A parcela de analfabetos funcionais (burrinhos, para sermos bem simples) aumenta dia a dia. Os alunos saem dos cursos superiores com forte grau de analfabetismo funcional ou déficit cognitivo ou ausência de o mínimo de substrato epistêmico. O brain rot já é vencedor.
Basta ver a onda de bebês reborn, que apenas mostra a idiotice sendo aperfeiçoada. A imbecilidade parece ser uma ciência — pode ser aperfeiçoada. Tem até parlamentar propondo projeto para atendimento de “parturientes de bebê reborn”. Por que essa gente não vai carpir um lote? A enxada é importante invenção humana, anterior à IA.
Como já escrevi aqui duas vezes, a agnotologia é estudo da ignorância como produto de um projeto deliberado. A IA faz parte desse projeto. Um instrumento que veio a calhar.
Portanto, se há algo que me irrita é essa conversa de IA no direito. Robôs que escrevem livros. Robôs que cavoucam precedentes-que-não-são-precedentes. Robôs que fazem petições…melhores do que advogados. Ora, ora, se um robô é melhor do que você, então você é um fracassado. Já se deu conta, mané? Perdeu, Einstein. Perdeu para você mesmo.
Post scriptum. Um alerta — este, aos “jênios” que, cancelando a IA, respondem a mim como se eu fosse um ludita, reacionário. “Ah, o professor não entende do assunto, seria contra o Google”. Comparam ovos com caixas de ovos e atacam um espantalho. Sou, sim, ortodoxo no direito: acho que há processos que só seres humanos podem e devem fazer. O argumento é normativo. No plano geral das coisas, bom… Se um raciocínio desde um ponto zero não causa preocupações, então sou mesmo um jurássico. Onde vamos parar? A autopoiese da IA já é realidade. Todos os freios que se diziam já não funcionarão mais. Mas é mais fácil chamar quem está avisando de reacionário. ito: não entendo de programação. Mas acho que quem aplaude a IA acriticamente não entende de filosofia e história. Simples assim.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!