A supremacia da Constituição é exigência da própria democracia
23 de maio de 2025, 6h02
O Supremo Tribunal Federal tem como sua principal função a guarda da Constituição. Assim está no artigo 102, caput, da Lei Magna: “Compete aos Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” (grifei). Esta função, como todos sabem, destina-se a garantir a supremacia da Constituição.

Em verdade, a Constituição é garantia das liberdades fundamentais, bem como instrumento da organização limitativa do Poder, como salientou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, editada, em 1789, na França, no seu artigo 16: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos (fundamentais) não é assegurada, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição” (grifei).
E não pode ser senão editada pelo povo numa democracia. É o que está na Constituição de 1988, no art. 1º, parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
É por essa razão que o Poder constituinte do povo brasileiro a definiu e a promulgou em 5 de outubro de 1988 — a Constituição-cidadã. É ela a Lei suprema, a lei que deve ordenar a governança, condição inafastável da liberdade e imperativo do Estado de Direito. Se isto não ocorre, instala-se o arbítrio na governança, a que inexoravelmente se segue a violação dos direitos fundamentais e de suas garantias, bem como o ocaso da democracia.
Entretanto, não basta estabelecer uma Constituição para que ela seja cumprida. É a lição imperecível de Montesquieu: “Todo homem que tem poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites”. E acrescenta a verdade que a história há séculos reconhece: “Quem o diria? A própria virtude tem a necessidade de limites” (grifos meus) (Espírito das Leis, Livro XI, cap. 4).
A guarda da Constituição.
Exatamente, pela razão apontada logo acima por Montesquieu, para haver o respeito à Constituição, tem ela de possuir uma guarda, que a faça valer sempre e desfaça tudo o que a contraria, venha de onde vier.
Para tanto, em 1803, nos Estados Unidos, o Chief-Justice Marshall, no célebre caso Marbury versus Madison, encontrou o meio adequado — o controle de constitucionalidade e o atribuiu à Suprema Corte, como o fez a Constituição republicana brasileira de 1891. E hoje todas as democracias preveem uma Corte especial, para exercer este controle.
O entendimento atual da Suprema Corte brasileira
A guarda da Constituição, tal qual o STF a exerce hoje, suscita dúvidas se o império da Constituição perdura no Brasil atual.
Cabe, por isso, analisar casos que justificam essa dúvida, para bem compreender o estado atual do direito brasileiro. E fazê-lo, como diz o brocardo romano, sine ira ac studio.
O início desse entendimento
Este entendimento teria começado singelamente com uma mera portaria. Seria esta a Portaria GP Nº 69, de 14 de março de 2019.
Em seu teor, instaura Inquérito para a “apuração de fatos e infrações” à “existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Inquérito este que tomou o número 4.781 e vigora ainda — seis anos depois de sua edição.
Foi designado no mesmo ato para relator o ilustre ministro Alexandre de Moraes que ainda o rege nesta data — com desassombro e rigor. Este inquérito foi impugnado por inconstitucionalidade, mas a própria Egrégia Corte rejeitou a objeção.
Ninguém dentre os juristas suspeitou então que ele impactasse a Constituição de 1988, como o Ato Institucional de 9 de abril de 1964 impactou a de 1946.
Os seus efeitos, que perduram até hoje, se não operaram uma verdadeira mutação (inconstitucional) da Constituição de 1988, importam numa miríade de atos e decisões que seriam inconstitucionais, são vistos e declarados como constitucionais e válidos.
Os exemplos são muitos. Alguns deles vão ser apontados, data venia.
O tribunal de exceção
Comece-se pelo mais grave.
Este é a instituição de um tribunal de exceção, em que se tornou a própria Corte Suprema, na medida em que ou a processar e julgar pessoas por crimes cometidos determinado caso — “golpismo” e o conhecido pela data 8 de janeiro de 2023. Ora, tribunal de exceção é todo aquele que se destina julgar determinadas pessoas em determinadas situações [1].
Ora, o artigo 5º, XXXVII o proíbe expressamente: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Com efeito, se a apuração das fake news indigitadas no inquérito foi delegada a ministro do STF, esta atribuição não importa em que os responsáveis pelas calúnias, injúrias, difamações cometidas, bem como de vandalismo ocorrido em de 8 de janeiro de 2023, sejam processados e julgados pelo STF. E estes o foram e ainda são julgados pela E. Corte.
Esta, com efeito, não tem competência senão para processar e julgar pessoas que tenham foro privilegiado. Ora, a grande maioria dos que foram acusados, processados e até agora julgados nunca tiveram foro privilegiado.
Assim, essa incompetência do STF para processá-los e julgá-los fere a Constituição, no artigo 5º, LIII: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” — o juiz natural. E também violaria o inciso seguinte, que o completa: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Ora, mesmo um constitucionalista não ignora que aí se encontra o princípio do juiz natural e outros desdobramentos.
Nunca se imaginou, ou formalmente de itiu que procedimentos decorrentes de um portaria — coisa de porteiro, como sarcasticamente disse Pontes de Miranda — ou inquérito, pudesse alterar a Constituição, dando-lhe competência quando não a deu o Poder Constituinte.
O caso dos julgamentos seria então de nulidade, não de anistia como alguns pretendem.
Quanto àqueles que gozam de foro privilegiado, o STF teria competência de modo insofismável, segundo a velha Constituição de 1988.
Entretanto, aponte-se que o STF tem flutuado a respeito dos que eram autoridades com foro privilegiado e o deixaram de ser. Em 2018, ele entendeu que esses haviam perdido o privilégio e assim deveriam cair no rol dos pobres mortais não privilegiados, ou seja, fora do Supremo.
Ora, em recente mudança da jurisprudência do STF, no julgamento, em março de 2025, do Habeas Corpus (HC) 232.627/DF e na Questão de Ordem no Inquérito 4.787, entendeu ele, mudando a jurisprudência, que os que tinham tido foro privilegiado permanecem com esse privilégio per saecula saeculorum. E isto foi objeto expresso de mudança do Regimento do STF, por proposta do eminente jurista que enxerga longe, sem discussão, o ministro Gilmar Mendes.
Entretanto, esta mudança seria constitucional em face da Constituição de 1988?
Numa interpretação dita gramatical, não seria possível sustentá-lo. A Constituição se refere a presidente e não a ex-presidente, a ministro, não a ex-ministro… Além disso, socorre a essa restrição, o argumento de que, numa Constituição democrática, o privilégio é a exceção, não regra. A regra é o tratamento igual para os iguais, que resulta do artigo 5º, II da Lei Maior. O ex não é mais autoridade que, em razão do cargo e função que exerce, deve ser preservado, se deve, em razão de seu papel na governança. E nunca quem quer que seja disto dissentiu.
Por outro lado, o momento em que foi alterada a norma interpretativa que excluía os ex do foro privilegiado, sugeriria até um impensável desvio de poder, como aquele que impediu uma nomeação feita pela presidente Dilma, em tempos outros. Certamente, não foi para “pegar” determinados políticos, mas sim pelas razões bem expostas com que foi justificada.
A censura
Outro ponto delicado a tratar consiste na instauração da censura. Esta é expressamente proibida, e claramente, pela Constituição de 1988, no artigo 5º, IX: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E no artigo 220 está, no caput: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
E nisso insiste, com clareza solar o parágrafo segundo desse mesmo artigo: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Lembre-se ademais a Declaração Universal dos Direitos humanos, no artigo 19: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
E está igualmente na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também subscrita pelo Brasil a plena liberdade de expressão, no artigo 4º: “Toda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e de difusão do pensamento, por qualquer meio”.
Entretanto, se houver abusos no exercício dessa liberdade essencial para a democracia, é necessária a repressão e para isto é que existe o Código Penal e legislação extravagante. Se esta não existe, Lembre-se Beccaria — nullum crimen nulla poena sine lege.
Ademais, a repressão a esses abusos não deve basear-se em mera opinião, deve, porém, ser fundamentada. E, para isto não basta qualificá-los, em inglês, como fake news.
Muitas são as decisões que não seguiram esse parâmetro. Pode-se lembrar, todavia, que duas Cortes estrangeiras — a dos Estados Unidos e a da Espanha -recusaram a extradição de “criminosos” por fake news. Ambas entenderam que os extraditandos não haviam senão exercido a liberdade de opinião. [2]
O estado de coisas inconstitucional.
Outra inconstitucionalidade em face da Constituição impositiva tem sido vista em decisões que invocam o referido estado de coisas constitucional, expressa ou implicitamente.
Nelas, invade-se a competência do Legislativo, Executivo, e até impactam a forma federativa do Estado brasileiro. Com efeito, editam normas e ações a competência do legislador e ações da competência do , o Executivo, inclusive as que cabem ao Estado federado. Nisto, violam dois princípios pétreos da Constituição (artigo 60, § 4º, incisos I e III).
Entre muitas, três se apontam aqui (sendo impossível citá-las, mesmo apenas suas Ementas, que ocupariam espaço maior do que todo este estudo).
1) ADPF 347/DF sobre o estado de coisas inconstitucional da política prisional brasileira (pela violação de direitos dos apenados), relatada para o acórdão pelo ministro Barroso.
2) ADPF 635/RJ sobre o estado de coisas inconstitucional na repressão ao crime, chamada de “APDF das Favelas”. Esta per curiam (e pelas notícias jornalísticas adotada em reuniões fora do Plenário).
3) ADPF 760/DF sobre o estado de coisas inconstitucional da política ambiental brasileira referente ao desmatamento da Amazônia”, relatada pelo ministro André Mendonça.
Elas, pela mera citação de seus temas, já revelam claramente a intenção de estabelecer uma governança nessas matérias. Nelas, com efeito, há normas legislativas e disposições istrativas, `que obviamente não pertencem à função de julgar. Mais, não levam em conta a própria estrutura federativa do país.
Operam, destarte, concentração do Poder que Montesquieu tanto temia, violando a separação dos poderes.
O argumento da emergência
A tudo isto a justificação implícita é deverem-se estas inconstitucionalidades a uma situação de emergência que ameaçava a democracia.
Entretanto, na Constituição de 1988 não se acha em todo o Título V – Da defesa do Estado e das Instituições democráticas, norma que atribuísse à Corte Suprema exercer poderes de emergência.
Por outro lado, como se vê a propósito do estado de sítio, as medidas de emergência deveriam ser autorizadas pelo Congresso Nacional.
É o que decorre, ao menos analogicamente, do artigo 137, parágrafo único da Lei Magna: “O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio, relatará os motivos do pedido, devendo o Congresso decidir por maioria absolta.”
Ora, no caso em discussão, não houve “narração dos motivos” e muito menos a aprovação por maioria absoluta pelo Congresso”. Se um presidente da República o fizesse, qualquer um enxergaria uma flagrante inconstitucionalidade.
Por outro lado, a situação de emergência tem limitação no tempo. Veja-se no artig 138, § 1º: “O estado de sítio, no caso do artigoo 137, I (comoção grave de repercussão nacional) não poderá ser decretado, por mais de mais de 30 dias, nem pode ser prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no caso do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira.” [3]
A muitos parece que não existe atualmente no país uma situação de perturbação tal que justifique poderes de emergência. Com efeito, os eleitos em 2022 exercem suas funções, as Forças Armadas seguem as normas da Lei Magna, não ocorrem atos terroristas, mesmo as invasões de terras estão sendo contidas nos limites da lei, apenas ocorre a disputa política normal.
E conclua-se, por fim, esta argumentação analógica com a citação artigo 141 da Constituição brasileira: “Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também os seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executantes ou agentes.”
Que prestem contas, portanto, aqueles que exerceram esses poderes emergenciais.
A declaração de inconstitucionalidade como decisão coletiva
Observe-se, por outro lado, que, em vista dada a importância e da gravidade das declarações de inconstitucionalidade que nulificam leis, votadas pelo Legislativo e sancionadas, ou não, pelo chefe do Executivo a Constituição de 1988 estabelece regras claríssimas. Avulta dentre estas a norma prescrita no artigo 97, onde se lê: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
O texto é claro. Entretanto, depara-se na prática diuturna, com uma infinidade de declarações de inconstitucionalidade tomadas monocraticamente, que podem ser, em até 90 dias, confirmadas, ou não, pela maioria absoluta dos membros da Corte Suprema. Criam assim uma insegurança jurídica indesejável. E, também, ao não serem aprovadas pelo Plenário, já produziram efeitos muitas vezes de alcance irreversível.
Observações finais
Tudo o que foi apontado é grave, pois, fere a supremacia da Constituição que é exigência da própria democracia.
Pode-se até chegar à vista do que se apontou que teria tal quadro criado uma real juristocracia, forma erudita de designar o governo dos juízes, ou melhor o governo do STF. Este deteria a palavra final quanto à governança do país, e, por outro lado, exerceria não somente a função do Judiciário como também a do Legislativo e a do próprio Executivo. Haveria, então a concentração do poder que tanto repugnava à Montesquieu (Espírito das Leis, Livro XI, capítulo 6º).
E não haveria também democracia, que não raro é invocada como justificativa do governo juristocrático.
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[1] Quando o Pres. Vargas criou um Tribunal de Segurança Nacional para processar e julgar os acusados da intentona comunista de 1935, isto provocou fortes críticas dos liberais e “gritos” de elementos da esquerda.
[2] O caso decidido nos Estados Unidos é com referência a PET 9935, relativa a Allan dos Santos; e o ocorrido na Espanha diz respeito a Oswaldo Eustáquio, EXT 1902.
[3] Nem a Segunda Guerra Mundial durou seis anos, como ocorre com a situação nacional de emergência.
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