Diário de Classe

Parthenope, criterialismo e a importância da pergunta (no Direito)

24 de maio de 2025, 8h00

Em Parthenope: Os Amores de Nápoles, filme dirigido por Paolo Sorrentino, a bela Parthenope – corpo e alegoria da própria cidade, cuja origem remonta à mitologia greco-romana – protagoniza uma narrativa em que o elemento estético (aquilo que é aparente) contrasta com camadas profundas e contraditórias da existência humana (Parthenope enquanto sujeito) e social (Parthenope enquanto cidade de Nápoles).

Se desejo, luto e gozo são elementos que se movimentam ao longo do filme e o tornam interessantíssimo do ponto de vista psicanalítico, outras dimensões da narrativa garantem que sua riqueza simbólica não se esgote nisso. Uma dessas dimensões parte de um elemento aparentemente mais “prático” do enredo: Parthenope, que é sempre vista pelo outro por sua beleza, ingressa à universidade para cursar antropologia.

A primeira cena que nos mostra sua experiência na universidade retrata um exame oral, em que os examinadores (cinco ou seis homens) convocam cada um dos estudantes para sentar-se à frente de um deles e responder às questões formuladas. Quando chega a vez de Parthenope – mais uma vez vista pelos examinadores por sua beleza –, que responde bem às perguntas, há um interessante diálogo com o professor Devoto Marotta, que atravessará toda a sua trajetória.

Após receber a nota máxima por “saber tudo”, Parthenope diz que, na realidade, não sabe nada, mas se interesse por tudo. O professor Marotta então lhe pergunta o que ela não sabe, e Parthenope afirma não saber ainda o que é antropologia, devolvendo a pergunta ao seu futuro orientador: Che cos’è l’antropologia?

Se, em um primeiro momento, o professor Marotta ira a pergunta, diante da insistência de Parthenope em obter uma resposta imediata, ele a a criticar o “querer” respostas antes de se saber formular perguntas. Parthenope não fica satisfeita, e Marotta lhe dá então, uma resposta convencional, citando uma definição de Lévi-Strauss. Porém, segundo o próprio Marotta, essa não é a resposta correta, mas a resposta que lhe cabia naquele momento. A pergunta – Che cos’è l’antropologia? – fica, portanto, sem uma resposta autêntica.

Somente muitos anos depois, quando Parthenope está prestes a se tornar professora de antropologia, e Marotta, a aposentar-se, o professor lhe dá a resposta correta, tão simples quanto complexa. Antropologia é saber ver. A protagonista pouco se surpreende, pois rapidamente compreende a resposta. Parthenope, desde sempre “vista por sua aparência, já havia se tornado capaz de realmente ver (além de qualquer aparência).

Em Parthenope, a pergunta “o que é antropologia?”, aparentemente respondida na cena da prova oral, somente será autenticamente respondida (o que não significa esgotamento) nesse momento posterior. Com isso, podemos propor a seguinte questão: o que diferencia a primeira pergunta da última, se elas são aparentemente idênticas? Por que conduzem a respostas tão diferentes?

Em O Que É Isto – A Filosofia, Martin Heidegger destaca que a questão-título pode ser tratada de diferentes formas e, portanto, o diálogo com ela pode ser conduzido por mais de um caminho. No entanto, se queremos encontrar um caminho para responder mais exatamente à questão, há um ponto central a ser observado:

“Quando perguntamos: Que é isto, a filosofia?, falamos sobre a filosofia. Perguntando desta maneira, permanecemos num ponto acima da filosofia, e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questão é penetrar na filosofia, demorarmo-nos nela, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, ‘filosofar’. O caminho de nossa discussão deve ter por isso não apenas uma direção bem clara, mas esta direção deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no âmbito da filosofia e não fora e em torno dela” [1].

A questão mesma, para Heidegger, já é um caminho. No entanto ainda resta a dúvida se a partir dela somos capazes de trilhar este caminho de maneira correta [2]. O que não deixa dúvidas é que esse caminho deve percorrer na filosofia, e não externamente a ela.

Primeiro, Heidegger trata a pergunta “O que é a filosofia” como a pergunta pela essência da filosofia [3]. Após a investigação orientada por esse modo de perguntar, perando a origem grega e a história da filosofia, conclui que, com ela alcançaremos uma fórmula vazia que serve para qualquer tipo de filosofia: “Porque, pelo processo há pouco referido, somente reunimos historicamente as definições que estão aí prontas e as dissolvemos numa fórmula geral” [4]. O problema é que, desse modo, ficamos longe de uma possível resposta à questão.

Uma resposta autêntica à questão O Que É Isto – A Filosofia, portanto, somente pode ser uma resposta filosofante, uma “resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma[5]. Isso não significa abandonar a história, mas, pelo contrário, permanecer no diálogo com aquilo para onde a tradição da filosofia nos remete – aquilo que se nos transmitiu como ser dos entes. Em vez de limitar-se a descrever opiniões de filósofos, portanto, deve-se debater com eles aquilo que dizem.

Deve-se fazer uma apropriação e transformação do que foi transmitido (“Destruição” [6]), o que quer dizer, abrir nossos ouvidos para aquilo que do ser do ente nos inspira, buscando a “correspondência”[7].

Como analisa o autor: “somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é[8]. Por meio desse segundo modo, portanto, não se alcança o desenvolvimento de um programa fixo (como a fórmula geral alcançada pela primeira investigação), mas se trata de um esforço para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente. Se a primeira forma de respondermos à questão orienta-se pela essência, na segunda procuramos, de algum modo, pôr-nos à escuta da voz do ser.

Voltando a Parthenope e à nossa questão (o que diferencia a primeira pergunta da última, se elas são aparentemente idênticas?), podemos, com Heidegger, pensar que a primeira pergunta é orientada por um modo de investigar que chega a uma fórmula geral. Por isso, na cena do exame oral, o Professor Marotta responde à Parthenope com uma definição criterial, formulada por um famoso antropólogo. Ele sabe, porém, que essa não é a resposta autêntica.

Quando Parthenope, prestes a lecionar Antropologia na universidade, reencontra o professor Marotta, a questão posta é a mesma, mas, ao mesmo tempo, é uma pergunta diferente. É uma pergunta pelo ser. O que é a antropologia?

A essa altura, a resposta do professor Marotta escapa de qualquer conceito criterial que possa definir a antropologia. Ela se revela como um existencial. E Parthenope a compreende porque já fazia antropologia e a compreendia em seu acontecer. Se, para Heidegger, “somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é”, também em Parthenope, a personagem somente é capaz de aprender a conhecer e a saber o que é antropologia, porque, de algum modo, ela já experimentava de que modo a antropologia é.

Parthenope, nesse sentido, não é apenas uma alegoria da cidade, mas também uma alegoria daquilo que podemos chamar, em diálogo com Luís Alberto Warat, de carnavalização (e Warat usava o conceito para falar sobre ensino do Direito). Parthenope, ao longo de sua trajetória, se coloca em contato com pessoas e situações que podem ser consideradas à margem do instituído, tocando o profano, o imoral, o anormal. Há, porém, uma suspensão das normas e dos valores, bem como de quaisquer pré-juízos, o que possibilitava a Parthenope experenciar a Antropologia, sempre movida pela angústia ou pelo espanto, mas com um olhar atento e disposto para o encontro.

Ainda, quando falamos que a (última) resposta do professor Marotta escapa de um criterialismo, falamos isso em diálogo com a visão de Ronald Dworkin – e aqui, amos a aproximar a nossa reflexão do direito. Como se sabe, Dworkin constrói as bases de sua teoria do direito como integridade a partir das críticas que tece ao positivismo jurídico.

Para este autor, o positivismo, especialmente representado por H. L. A. Hart, equivoca-se ao tratar dos fundamentos de validade e de identificação do direito como “fatos brutos”. O que Dworkin percebe é que o positivismo jurídico trata o direito como um conceito criterial, convencionalmente determinado e que poderia ser simplesmente descrito, quando, na verdade, o direito é um conceito interpretativo, que depende de uma atribuição de valor (dimensão prescritiva).

Nesse sentido, Dworkin critica aquilo que ele considera uma análise arquimediana na Filosofia do Direito. A Arquimedes, inventor grego conhecido por explicar o funcionamento da alavanca, é atribuída a frase “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”. Ocorre que, para se mover o mundo, imprimindo força em um sistema de alavanca, é preciso estar fora do mundo.

Um ponto de vista arquimediano na filosofia do direito, portanto, deve ser entendido como uma pretensa posição de neutralidade de um “observador externo” em relação àquilo que se procura interpretar, tal como pretendiam os positivistas.

Aqui, retomamos Heidegger, que desde o início de sua obra, adverte-nos o risco de, ao perguntarmos O que é isto – a filosofia?, permanecermos num ponto acima da filosofia, isto é, fora dela. Só podemos responder a essa questão se penetrarmos na filosofia, garantindo que estamos nos movendo no âmbito da filosofia e não num lugar arquimediano.

Dworkin não ite a função puramente descritiva da linguagem na teoria do direito, visto que os conceitos jurídicos, sendo conceitos interpretativos, não poderiam ser explicados de maneira neutra e desengajada, como simples questão de fato. Nesse sentido, não existe um ponto de vista neutro para dizer o que é direito.

Isso não significa, no entanto, que o direito seja indeterminado. Pelo contrário, Dworkin defende a existência de respostas corretas no direito. Nesse sentido, o direito como integridade propõe que as proposições jurídicas são verdadeiras se constam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade [9].

Essa característica decorre do reconhecimento de um giro interpretativo na teoria do direito, de modo que a interpretação deixa de ser uma questão apenas instrumental, tornando se paradigma de compreensão do fenômeno jurídico, isto é, do direito em seu acontecer.

Em sua obra Ensino Jurídico e(m) Crise, o professor Lenio Streck fala sobre o problema do criterialismo no direito, que se apresenta permeado por uma cultura estandardizada, no interior da qual a dogmática jurídica trabalha com significados prêt-à-porters. A proliferação de manuais que procuram “explicar” o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais a-históricos e atemporais, é um produto disso. Como afirma Streck:

“Ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo jurídico, como se a realidade social pudesse ser aprisionada, moldada e explicada por meio de verbetes e exemplos com pretensões universalizantes. […] a dogmática jurídica ‘explica’ o Direito a partir de critérios convencionais de identificação, e não de critérios interpretativos, buscados numa reconstrução histórica do sentido das normas” [10].

Por isso, adverte: o Direito não pode ser substituído pelos discursos sobre o Direito, como faz a dogmática jurídica, ao substituir aquele que deveria ser seu objeto de conhecimento pelos próprios critérios convencionais [11]. Assim, nosso ensino e também a prática jurídica permanecem ainda deficitários da compreensão do próprio direito. Afinal, o que é isto – o Direito?

Com essa reflexão, não propomos uma resposta. Mas a experiência da arte e da filosofia nos mostram que qualquer esforço de compreender adequadamente o que é isto – o Direito deve orientar-se pela disposição para um encontro com o seu ser.

Em tempos em que nos acostumamos a buscar respostas antes das perguntas – tal como criticam, na ficção, o professor Devoto Marotta e, na realidade, o professor Lenio Streck – uma elaboração correta da pergunta já é um caminho.

 


[1] HEIDEGGER, Martin. O que é isto – A filosofia?; tradução e notas de Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 6

[2] Ibidem, p. 17

[3] Nesse sentido, Heidegger afirma que não apenas aquilo que está em questão (a filosofia) é grego em sua origem, mas também a maneira com perguntamos ainda é grega. Com isso pode-se entender que o autor se refere ao paradigma metafísico que orienta a pergunta. Na metafísica clássica, para Heidegger, ao se perguntar pelo ente, acaba-se perdendo de vista o ser.

[4] Ibidem, p. 29.

[5] Ibidem, p. 30.

[6] O termo “destruição”, em Heidegger, tem um significado diferente do que conhecemos usualmente e é detalhadamente explorado na obra Ser e Tempo (§6º). Apenas para que se tenha uma compreensão inicial, nesse contexto, destruição deve ser entendida como desmontar e pôr de lado as afirmações puramente históricas sobre a história da filosofia.

[7] “Correspondência”, aqui, não está relacionada com a conhecida “verdade correspondencial” – esta, relacionada à definição da verdade herdada da metafísica clássica “adaequatio rei et intellectus”. “Cor-responder”, segundo Heidegger, é um modo de responder que não se confunde com replicar. Trata-se da tradução da palavra alemã antworten.

[8] HEIDEGGER, Martin. O que é isto – A filosofia?; tradução e notas de Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 44

[9] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Jeferson Luiz Camargo – 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 272.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Ensino jurídico e(m) crise: ensaio contra a simplificação do direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024 (Kindle), p. 64-70

[11] Ibidem, p. 119.

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