Opinião

Tredestinação lícita de áreas institucionais como garantia da gestão pelos municípios

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25 de maio de 2025, 15h28

A organização das competências federativas na Constituição estabelece aos municípios, sobretudo a partir do artigo 30, o direito e a obrigação de (I) legislar sobre assuntos de interesse local, (II) suplementar a legislação federal e estadual no que couber, e (VIII) promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

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Essa dimensão de organização dos assuntos de interesse local, que estejam relacionados sobretudo ao ordenamento territorial do município, em especial quanto ao planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano, ocorre, via de regra, a partir da constituição de uma plataforma local que busca acomodar, de forma planejada, os interesses do município e de toda a sua população, por meio de lei e estudos (científicos) prévios, buscando a realização das funções socioambientais da propriedade e da cidade, com a finalidade de garantir o pleno desenvolvimento da política urbana, para que todos alcancem um direito à cidade que lhes permitam a realização de seus direitos fundamentais. Esta plataforma é denominada pela Constituição, em seu artigo 182, §§1º e 2º, de plano diretor.

Ocorre que, na conformação federativa do Estado brasileiro, os demais entes federados também possuem suas competências, que, em certa medida, muitas vezes, chocam-se com a liberdade de conformação local por parte dos municípios. Ou seja, as regras estabelecidas em diversas áreas de atuação, por parte dos estados e da União, parecem enquadrar a atuação dos municípios a regras gerais que são instituídas, dentro das competências daqueles, para o dimensionamento da atuação dos municípios e particulares frente ao espaço territorial urbano. Essa confluência pode ser observada principalmente a partir do dimensionamento de competências comuns e concorrentes estabelecidas pelos artigos 23 e 24 da Constituição, naquilo que couberem.

Processos de planejamento

Exemplos dessa natureza que produzem certa limitação à atuação na atuação dos municípios estão em leis como a de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/1979), o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) e o Estatuto das Metrópoles (Lei 13.089/2015). Isso se justifica porque também no âmbito federativo do Estado-membro e da União são necessários processos de planejamento (artigo 3º, III, artigo 48, IV, artigo 174, caput e §1º, todos da Constituição) e atuação que busquem a efetivação de direitos e princípios fundamentais.

Isso não significa que as competências dos entes federados desaparecem ou possam ser aniquiladas, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidades efetivas, por meio da ingerência, ainda que legal, de entes federados sobre outros, sobretudo da União e estados, em face de municípios. Quanto a isso, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar, afirmando que “é bastante plausível a alegada violação da regra constitucional que assegura autonomia aos municípios para dispor sobre assuntos de interesse local, causada por limitação territorial constante em dispositivo de constituição estadual”. (BRASIL, STF, 2014).

Mudança em destinação de áreas públicas institucionais

É nessa dimensão que surge o problema que o presente texto busca enfrentar: é lícito que os municípios realizem mudanças na destinação de áreas públicas institucionais, destinadas e gravadas em sua origem, no ato da constituição de loteamentos, para se adequarem a realização do interesse público, considerando estes especialmente o cumprimento dos direitos fundamentais?

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no acórdão em Remessa Necessária Cível nº0900585-67.2014.8.24.0139/SC, responde essa questão, a princípio no que se refere àquelas áreas de uso dos municípios para a constituição de equipamentos públicos (áreas institucionais) de forma positiva, garantindo o direito destes entes federados de realizarem a gestão plena de seu território, com fundamento no artigo 30, I e VIII, da Constituição (TJ-SC, 2024).

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Esta decisão reinterpreta a Lei de Parcelamento do Solo Uurbano (Lei de Loteamentos) e a condiciona à dimensão constitucional, principalmente aquela presente no artigo 30, VIII. Essa é uma determinação já estabelecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal, no ARE 1.536.905 AgR:

“Os municípios têm o poder-dever de realizar o controle prévio do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, no exercício de sua competência constitucional de execução da política de desenvolvimento urbano, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, nos termos do artigo 182, da Constituição Federal, sendo insuficiente a mera fiscalização posterior.” (Brasil, STF, 2025).

Além disso, a decisão do TJ-SC demonstra que a necessidade de preservar a finalidade de áreas institucionais (públicas), provenientes de loteamentos, não os petrifica de forma espacial, no que se refere à localização do patrimônio público. A mudança de local de uma determinada área, para garantir o interesse público e da sociedade, torna o ato totalmente plausível.

Assim, se o município compreender que a necessidade de uma escola, de uma unidade de saúde ou de uma praça pública, por exemplo, tenha se alterado em relação a planejamento anterior que foi levado em conta para a aprovação de um loteamento, e por tanto, deva ocorrer em lugar de maior adensamento populacional, ou onde a mobilidade facilita o o às pessoas, preservando o interesse público e coletivo, ele pode alterar o local das áreas institucionais, com os instrumentos legais que estiverem à sua disposição (desapropriação, desafetação, permuta, leilão, transferência de potencial construtivo, etc).

Planejamento urbano não pode ser estático

A dimensão do planejamento urbano não pode ser estática, em face de uma razão existencial da própria cidade, relacionada às suas transformações provenientes da conformação entre o ambiente construído e a necessidade de se efetivar os direitos fundamentais daqueles que vivem a cidade, o que ocorre principalmente a partir do desenvolvimento urbano e das funções sociais da cidade (Guerreiro Filho, 2023, p.171)

Essa característica existencial das cidades, como um “corpo vivo”, que exige a alteração e adaptação constante do seu planejamento urbano, é reconhecida e exigida pelo próprio Estatuto da Cidade (artigo 40, §3º, da lei 10257/2001), a tal ponto que há a necessidade de os planos diretores serem revistos pelo menos a cada dez anos.

Na ementa do referido acórdão, o TJ-SC assim relaciona esse direito dos municípios a tredestinação dos imóveis públicos institucionais:

“REEXAME NECESSÁRIO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LOTEAMENTO –DESAFETAÇÕES DE LOTES DESTINADOS AO MUNICÍPIO –MANUTENÇÃO DE PERCENTUAL MÍNIMO PREVISTO EM NORMA LOCAL PARA DESTINAÇÃO COMUNITÁRIA – CONSTRUÇÃO DE ESCOLA NO LOCAL – TREDESTINAÇÃO LÍCITA – SENTENÇA DEIMPROCEDÊNCIA MANTIDA.” (SANTA CATARINA, TJ-SC, 2024).

Assim, a gestão e alocação de equipamentos públicos é da escolha do poder público local, por meio de ato do Poder Executivo, com autorização do Poder Legislativo, respeitadas as diretrizes previstas no plano diretor. Esse fenômeno garante por outro lado a dimensão democrática da escolha do local de um serviço público. Com isso, o município não é obrigado a construir equipamento público em áreas que se apresentem impróprias à garantia da plena função social da cidade, afastadas das comunidades, bairros ou moradores, pelo simples fato de estarem estas áreas, provenientes do ato de aprovação de loteamento, no âmbito de propriedade do município, o que teoricamente poderia lhe trazer um ônus menor.

O fato de o imóvel não estar condizente com as dimensões do planejamento urbano local, eleitas pela sociedade por meio de seu plano diretor, tendo a finalidade de colaborar para a efetivação dos direitos fundamentais da população, permite que o município se desfaça destes imóveis com a finalidade de adquirir outros (mesmo objeto) para efetivar equipamentos públicos que melhor atendam a população local e realizem seus direitos fundamentais.

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Referências bibliográficas

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível aqui.

BRASIL, Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível aqui.

BRASIL, Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível aqui.

BRASIL, Lei 13.089, de 13 de janeiro de 2015. Disponível aqui.

BRASIL, STF, ADI 2.077 MC, red. do ac. Min. Joaquim Barbosa, j. 6.3.2013, DJE de 9.10.2014.

BRASIL, STF, ARE 1.536.905 AgR, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 30.04.2025, P, DJE de 07.05.2025.

GUERREIRO FILHO, Evaldo José. Direito constitucional urbanístico diante do objetivo de desenvolvimento sustentável n.11 da Agenda 2030 da ONU. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

SANTA CATARINA, TJSC, Reexame Necessário Cível nº nº0900585-67.2014.8.24.0139/SC, rel. Des. Helio do Valle Pereira, J.19.11.2024.

Autores

  • é advogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

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