EMBARGOS CULTURAIS

As brasas, do escritor húngaro Sándor Márai

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25 de maio de 2025, 8h05

Em As brasas, o escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989) nos conta a triste história de um militar húngaro que foi traído pela esposa e pelo melhor amigo. O militar traído era um nobre; o pai, húngaro; a mãe, sa. Impossível que o autor não tenha vivido situação parecida; o realismo da narrativa transcende qualquer imaginação. Metaforicamente, ou não, Sándor Márai certamente viveu angústia parecida, ainda que de outra maneira, em outra circunstância. É um romance sobre a traição, que relata a dor da traição, e que pergunta, no limite, se o pior é trair ou ser traído.

A aptidão para trair é o núcleo desse problema que atormenta a literatura e a vida real. Os traidores (amigo e esposa) foram capazes de trair. Porém, e aqui o problema prático, foram incapazes de viver de modo independente do traído. Quem trai, e essa parece ser a lógica argumentativa do romance, deve ser capaz de viver sem dependência alguma em relação ao traído. Trair, sem condições de dispensar a ajuda do traído, na lógica do livro, parece-me, é a pior das traições.

O romance é estruturado em vinte capítulos; é um romance curto, cerca de cento e sessenta páginas. Um narrador onisciente eventualmente dá voz ao personagem principal que em monólogos muito bem construídos expõe e analisa seu grande dilema de vida (a traição, que o consumia emocionalmente).

Tudo começa em uma amizade nascida no internato. O amigo ava férias em sua casa. Ele visitara a casa do amigo. Entre os dois havia uma grande diferença econômica. O personagem central era da nobreza, o amigo de uma burguesia decaída. A uma família opulenta opunha-se uma família de permanente sacrifícios para a educação do filho. O pano de fundo do distanciamento (e de um certo ódio, por parte do traidor) parece ter sido essa diferença de meios.

Após um distanciamento de 41 anos (e o leitor entenderá a razão na parte final do livro) os amigos se reencontram. Conversam por toda a noite enquanto queima o fogo na lareira, o que pode ser uma das possíveis explicações para o título. Há outras. O traído revela ao traidor que sabia de tudo. A narrativa é pesadíssima e abala até os leitores menos impressionados com as adversidades da vida.

As brasas é um romance que também trata da amizade, da discussão em torno da verdade, da fidelidade, do paradoxal desconforto com a riqueza, da vingança, do amor-próprio, da paixão, da abnegação dos pais pelos filhos, da construção de provas de confirmação da traição. É um livro humano, demasiadamente humano, para usarmos um clichê filosófico nietzschiano, que serve para dar um toque de bom gosto para qualquer assunto.

O livro trata do desmantelamento do Império Austro-húngaro, bem como de um gravíssimo etnocentrismo, que não é do autor, é do personagem. Tendo vivido uma experiência no Oriente, o viajante critica as mulheres da Malásia, ao mesmo tempo em que enfatizava supostas qualidades dos ingleses:

“É impossível acostumar-se com aquelas mulheres [da Malásia]. Há algumas estupendas (…) Mas é impossível acostumar-se a elas. Os ingleses, sim, sabem se defender.  Levam a Inglaterra dentro da mala. A arrogância cortês, o distanciamento, a boa educação, os campos de golfe e as quadras de tênis, o uísque e smoking que vestem à noite nas cabanas de teto de zinco, no meio daqueles pântanos”.

Percebe-se uma relação complicada e ambígua entre traidor e traído que, segundo o autor, qualifica o que na linguagem ordinária chamaríamos de amizade. A amizade exige franqueza e fidelidade. A vingança, no contexto da trama, é que mantém o traído vivo, na certeza de que um dia encontrará novamente o traidor.

Não irá matá-lo. Irá tão somente revelar que sabia de tudo. Sabe que o traidor quase o matou (numa inesquecível cena de caçada) e que o traidor o traíra com a própria esposa. O leitor acha estranho (eu achei) que o foco da traição não é a esposa, cuja presença no livro não é central; é o amigo. A tensão estaria na atribulação da amizade, e não nas adversidades do casamento. “As brasas” não é um romance sobre o casamento; é um romance sobre a amizade.

O que mais incomodava o militar era a violência contra seu amor-próprio: “Quando uma ou mais pessoas nos ferem em nosso amor-próprio, que é nossa dignidade de homem, a ferida é tão profunda que nem a morte consegue pôr fim a esse tormento”. Mais do que a traição em si, o que consome o protagonista é a percepção de que foi violado em sua última cidadela: o amor-próprio. Esse postulado vale para todos nós.

A ferida não está no adultério ou na ruptura da amizade. Talvez esteja na desmoralização silenciosa de alguém que confiava profundamente — e que, ao ser traído, viu ruir sua imagem de mundo e de si mesmo. A dor não é moralista, nem religiosa; é existencial. O que se quebrou não foi um pacto de fidelidade. Minou-se a confiança que sustenta a dignidade. O autor não denuncia a infidelidade como falha ética. O autor problematiza a fidelidade como desrespeito a um valor mais íntimo e radical: a fragilidade do traidor, que depende do traído para sobreviver.

Em As brasas, o amor-próprio aparece como a forma mais profunda de permanência. Tudo ao redor envelhece, se desfaz ou desaba — impérios, amizades, casamentos. O que não cicatriza é o amor-próprio ferido. Instala-se no corpo e na memória como uma brasa viva, ardendo silenciosamente por 41 anos. É essa brasa que aquece o protagonista e que o mantém de pé. Não há ódio, há incompreensão.

As brasas é um romance sobre a sobrevivência do orgulho ferido e sobre o silêncio que resiste a tudo — à ausência, à mentira, à perda —, mas que não se confunde com o esquecimento. Tenho a impressão de que o perdão pode nos libertar da mágoa. No entanto, penso, a natureza humana não é dotada de uma divina força plasmada na amnésia. Podemos perdoar, mas não conseguimos esquecer. As brasas continuam queimando.

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