AMBIENTE JURÍDICO

O que está por trás do PL 2.159? Desvendando a crise do licenciamento ambiental

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás advogada mestre em Direito Ambiental pela PUC-PR e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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25 de maio de 2025, 8h00

O tema mais comentado dessa semana em todas as mídias e redes sociais foi o Projeto de Lei 2.159 que dispõe sobre o licenciamento ambiental, estabelecendo normas gerais com validade em todo o território nacional, aplicáveis pelos órgãos ambientais das três esferas da federação, bem como a todos os empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores, capazes de causar degradação ambiental.

Andrea Vulcanis tarja 2022Registre-se que a última norma de cunho mais geral que trata do processo de licenciamento ambiental é a Resolução CONAMA 237 de 1997, editada, portanto, há quase 28 anos. Desde então, somente normas pontuais foram feitas em âmbito federal, tratando de uma ou outra tipologia de empreendimentos e atividades ou alguns procedimentos específicos. Nenhuma atualização, modernização ou avanço capaz de instrumentalizar esse instrumento importantíssimo da política ambiental, que é o licenciamento.

Quase 30 anos depois, muita coisa mudou. Os órgãos ambientais se estruturaram, milhares de licenciamentos ambientais foram processados, muitos avanços na tecnologia aconteceram, muito conhecimento científico e técnico foi produzido porém quase nada disso foi incorporado à avaliação de impactos ambientais que é promovida no licenciamento ambiental.

Esse instrumento, há quase cinco décadas, vem sendo tratado da mesma forma: basicamente um jeito artesanal de se fazer requerimentos, análises e emissão de licenças. Preparam-se termos de referência, solicitam-se estudos, processam-se análises individualizadas caso a caso, ouvem-se órgãos intervenientes, repetem-se pedidos, notificações, pendências, realizam-se vistorias e audiências públicas para ao final, muitas vezes depois de anos, emitirem-se as licenças para atividades e empreendimentos, sejam eles industriais, infraestrutura do país, atividades econômicas voltadas a produção agropecuária, equipamentos urbanos, saneamento, mineração, dentre tantos outros que são capazes de provocar impactos ambientais.

O licenciamento ambiental tornou-se, ao longo dessas décadas, um instrumento burocrático, sem inteligência aplicada, desvinculado e alheio ao tempo dos negócios e dos investimentos que geram trabalho, renda, desenvolvimento e claro, lucros para os empreendedores.

As lições aprendidas não são incorporadas, os estudos em geral são um conjunto repetitivo e de baixa qualidade contendo informações inúteis, no modelo do famoso “copia e cola” em que sobram páginas e páginas que não adentram, verdadeiramente ao mérito e escopo fundamental dos impactos ambientais, cabendo aos órgãos ambientais ler, analisar e devolver ao empreendedor pedindo complementos e aprofundamentos, num vai e volta sem fim entre órgão ambiental e os usuários, para que depois de um longo tempo se possa emitir as licenças ambientais.

E o que dizer dos órgãos intervenientes – INCRA, FUNAI, ICMBIO, IPHAN – responsáveis pelos componentes quilombola, indígena, unidades de conservação e patrimônio cultural. Sua presença no licenciamento traz mais burocracia, demora e ineficiência no cumprimento da nobre missão institucional que cada um representa. Ao fim de dezenas de meses ou anos, licenças são normalmente emitidas, o que não significa que as populações tradicionais estão sendo verdadeiramente protegidas, nem tampouco o patrimônio histórico e as próprias unidades de conservação. O exemplo do licenciamento ambiental da hidrelétrica de Belo Monte é o mais emblemático nesse sentido, embora não faltem outros.

O mesmo modelo é aplicado a uma licença de um posto de combustível, um cemitério, um frigorífico, uma psicultura, um pivô de irrigação ou uma hidrelétrica, no meio da Amazônia. Aplica-se o procedimento trifásico – Licença Prévia, de Instalação e de Operação – constituído numa interminável via-sacra para se alcançar as três licenças. Geralmente o empreendedor desconhece o conteúdo licenciado, delega a um consultor ou funcionário de baixo escalão da empresa para seu cumprimento e prestação de contas ao órgão ambiental que quase nunca volta ao empreendimento para sua fiscalização, salvo, quando muito, na fase de renovação de licença de operação quando mais um conjunto interminável de pendências são geradas em relação ao cumprimento das condicionantes, além de multas e outras penalidades.

A licença não se apresenta, ao fim e ao cabo, como um valor real para o dono do empreendimento. Na prática, de fundo e de fato, o empreendedor quer somente o papel oficial assinado para que possa realizar seus investimentos. Desconhece os impactos ambientais que seus negócios provocam e tenta de todas as formas descumprir as condicionantes ou cumpri-las de qualquer jeito, ao menor custo possível, deixando as externalidades negativas de seu empreendimento para um futuro incerto e não sabido, contando com a ineficiência do órgão ambiental em fiscalizá-lo. As comunidades afetadas am ao largo, suas queixas não são ouvidas e atendidas realmente, o conflito se instala ou então as pessoas am a entender que aquilo é normal.

Os órgãos ambientais, por sua vez, quase sempre negligenciados em relação a orçamento, pessoal e estruturação istrativa tem se mostrado incapazes de reorganizar e reestruturar a avalição de impactos ambientais e deixam de aplicar e integrar as informações ambientais amplamente conhecidas, deixam de usar tecnologia e, quase sempre, não adotam uma inteligência de processos que possa encurtar tempos, otimizar resultados e promover um processo racional. O resultado são pilhas e pilhas de processos que vão se acumulando e gerando cada vez mais demora e atrasos.

De outro lado, órgãos ambientais, sobretudo nos menores municípios, muito fragilizados quanto a formulação e execução de políticas ambientais éticas e sérias, pululam por todo o território nacional. O licenciamento é usado muitas vezes para cobrar taxas, quando não propinas, desconhecendo a lei e a técnica.

De outro lado, órgãos ambientais mais fortalecidos quanto à lei e à técnica, transformaram o licenciamento ambiental num território de micro poder ideológico em que não há uma institucionalidade aplicada mas um valor pessoal de dirigentes, analistas e fiscais que interpretam a norma como querem, que fazem valer seus pensamentos individualistas e descolados da realidade, gerando exigências, impedimentos e dificuldades sem nenhuma razoabilidade.

Nesse cenário peculiarmente brasileiro somam-se os representantes dos ministérios públicos que como fiscais da lei também impõe suas visões pessoais de mundo, além de ambientalistas e outros atores nacionais que transformam o licenciamento ambiental num palco político e ideológico, assomando centenas de processos judicializados que se arrastam no judiciário por anos.

E sim, há exceções, notadamente em alguns estados e municípios  – entre os quais cito a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás – do qual sou a atual dirigente. Goiás, nos últimos seis anos, vem fazendo um esforço monumental para superar todo esse estado de coisas e alcançou excelentes resultados. Reduziu-se prazos médios de licenciamento ambiental de empreendimentos de pequeno e médio porte que constituem 80% em número dos pedidos de licenciamento ambiental de 7 anos para 60 dias com aprofundamento técnico na avaliação de impactos ambientais, melhorias na qualidade das avaliações, tanto na fase de licença quanto de pós licença.

É fato que alguns estados e municípios, sobretudo na última década, ante o fato de que a União e o CONAMA se mostraram totalmente ineptos na criação de um ambiente racional para o licenciamento ambiental, em âmbito nacional, criaram ferramentas mais otimizadas em seus procedimentos de licenciamento ambiental e abriram caminho para tornar esse instrumento mais eficaz, tanto do ponto de vista de prazos, quanto de exigências, pacificando e aplicando essa ferramenta tão importante para o modelo de desenvolvimento sustentável que o Brasil adotou há décadas.

Foi nesse contexto que surgiu a Licença por Adesão e Compromisso, a LAC, no estado da Bahia por volta do ano de 2011, instrumento esse que essa autora idealizou junto com um grupo de pessoas à época. Desde lá, ao contrário do alarmismo apontado, não se tem notícia de nenhuma tragédia originada por empreendimento licenciados por LAC já aplicada em vários estados da federação.

O leitor pode achar que há exagero nas afirmações deste artigo porque vão contra o que as mídias divulgaram recentemente. No entanto, afirma-se: são realidades cotidianas, que poucos tem coragem de mostrar e pior, de enfrentar. Elas revelam a história que está por trás do PL 2159.

Se de um lado o PL 2159 é uma tentativa de superar essas incongruências e dissonâncias nacionais em torno do licenciamento ambiental, é óbvio que ele também é fruto de um olhar progressista ao modelo de desenvolvimento do Brasil e que privilegia as forças que estão por trás dos negócios, essas mesmas que não assumiram, a toda evidência, esse modelo de sustentabilidade como pauta primordial a nortear o desenvolvimento do Brasil mas que, contudo, sustentam a economia e, por sua vez, a qualidade de vida de toda a população.

É visível que o PL 2159 é reflexo desse ado conflituoso, cheio de dificuldades e irracionalidades. Não é um PL voltado para a pacificação dos interesses nacionais, não constrói consensos mínimos e não dialoga com as realidade tecnológicas, da inteligência artificial ou da nova economia mundial verde, ou os cenários em torno das mudanças climáticas.

Por outro lado, também não é um PL que provocará, por si só, as catástrofes anunciadas descritas como a maior fragilização da legislação ambiental de todos os tempos. O PL, se convertido em lei, em tese, não tem esse poder ou  efeito. É um texto necessário que aponta avanços, destravamento das máquinas públicas e um olhar progressista para o desenvolvimento do Brasil que ainda conta uma grande população carente e necessitada de tantos avanços.

Enquanto propõe flexibilização no modelo vigente, sugerindo licenças em fase única, licenças declaratórias, controle e redução do poder de entes intervenientes, autonomia dos estados para definir tipologias de licenciamento, dispensas de licenciamento ambiental para determinadas atividades, entre outras novidades, é fato que atribui aos órgãos ambientais o dever de uma atuação técnica, ética e responsável que, se bem executada, superará quaisquer das fragilidades apontadas pela crítica. Resta saber se a máquina pública brasileira está madura o suficiente para essa atuação responsável imposta pelo PL, de modo que as consequências negativas de fato não ocorram.

Com a oportunidade de novos debates na Câmara do Deputados, espera-se que o texto ganhe em equilíbrio e modernidade. Que os debates possam, dessa vez, construir um novo pacto nacional sobre o modelo de desenvolvimento do Brasil, envolvendo a avaliação e mitigação de impactos ambientais tratados no licenciamento ambiental. Do contrário, a judicialização do texto é certa e seu esfacelamento e enfraquecimento poderão gerar ainda mais insegurança jurídica, agravando ainda mais o cenário. O que está ruim pode ainda piorar.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, advogada, mestre em Direito Ambiental pela PUC-PR e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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