A Faculdade de Direito do Recife e o Direito Romano: perspectiva do século 19
26 de maio de 2025, 12h25
À pretensão de abordar o papel que a jurisdição constitucional desempenhou para o desenvolvimento do Estado constitucional, Härbele enfatiza que este é uma conquista cultural par excellence, para a qual cooperaram desde os pensadores da Grécia antiga até os modernos (Montesquieu, Rousseau, Kant, J. Rawls e H. Jonas), “ando pelos maiores juristas, os romanos, que o eram porque trabalhavam pragmaticamente” [1].

Se é certo que o ensino do Direito Romano entre nós não é contemporâneo da criação dos cursos jurídicos, uma vez somente haver ado a integrar o seu currículo com o Decreto nº 1.386, de 28 de abril de 1854 [2], tornando “Institutos de Direito Romano” a segunda cadeira do primeiro ano, não se pode evitar que as palavras do jurista tudesco tragam à lembrança João José Pinto Júnior. Não foi o primeiro catedrático da disciplina. Precederam-no Manuel Mendes da Cunha Azevedo (1855-1858) e José Bento da Cunha e Figueiredo (1858-1870), sobre os quais pouco se comenta.
Diferente quanto a Pinto Júnior. Formado na turma de 1855, com aproximadamente 22 anos, é reconhecida uma atuação bastante destacada. Inicialmente, chamou a atenção a aprovação em concorrido certame para o cargo de professor substituto.
Obteve Pinto Júnior o primeiro lugar dentre os três aprovados, merecendo da banca examinadora cinco votos contra quatro atribuídos a Aprígio Guimarães, veredito que, dentre os vários exames (arguição oral, tese impressa e dissertação manuscrita), a distinção decorrera da sua prova escrita [3].
Assumindo em 1879 a titularidade da cátedra da disciplina “Institutos de Direito Romano”, na qual permaneceria até sua jubilação em 1891, Pinto Júnior, no ano de 1888, trouxe à luz do público o seu Curso Elementar de Direito Romano [4].
Na análise de Beviláqua, a obra, a despeito de compreender apenas “as primeiras noções que servem de introdução ao estudo das Institutas; mas, nessa parte, é um bom compêndio pela clareza e precisão das ideias” [5].
Com efeito, Pinto Júnior [6], por ocasião da alocução de abertura do curso, de março de 1888, destaca a importância do estudo do Direito Romano – que persiste duma atualidade inconteste [7] – que, no seu entender, é imensa, observada histórica, literária ou juridicamente. Basta notar – diz – que, nos países do continente europeu, até a data da promulgação dos códigos, “o direito romano era o Direito comum, o direito recebido e praticado por quase todas as nações do continente, quer latinas, quer germânicas”. E, quanto ao sistema jurídico pátrio, que ainda não codificara as suas leis civis, tal utilidade resulta indiscutível do Livro III, Título 64, das Ordenações Filipinas, segundo o qual a legislação de Justiniano serve de direito subsidiário para a solução de todos os casos omissos, contanto que conforme à boa razão.
Enfatizando, com base na visão da época, ser preferível a compreensão estrita, segundo a qual o Direito Romano equivale à coleção das leis mandadas compilar por Justiniano, o autor [8] sustenta que, quanto aos métodos empregados no seu estudo, além do dogmático e histórico, não se pode banir o filosófico, mediante o qual se procede à crítica dos seus preceitos, confrontando-os com os princípios da ciência jurídica.
Fases
No plano histórico, adotou [9] classificação que divisa em quatro a periodização do Direito Romano, sendo a primeira a que vai da fundação de Roma (750 a.C.) até 450 (a.C.), com a primeira tentativa de codificação, da qual resultou a Lei das Doze Tábuas. Trata-se da fase infantil, abrangendo aproximadamente duzentos e cinquenta anos da Realeza e cinquenta da República, cujas fontes consistiam nos costumes e nas leis, votadas pelo povo em comícios por cúrias e por centúrias.

Por sua vez, o segundo, que vai da Lei das Doze Tábuas até Cícero (100 a.C.), compreende três séculos e meio de regime republicano, sendo, pois, a fase da adolescência. Possui como elementos formativos as leis centuriatas – que ainda perduraram – os plebiscitos e os senatusconsultos, recebendo também a influência dos costumes, dos editos dos magistrados e das respostas dos prudentes, embora, quanto aos dois últimos, ainda não havia o reconhecimento de sua força obrigatória.
Já o terceiro principia no ano 100 a.C, prolongando-se até o 250 d.C., sendo 70 sob o regime republicano e 280 sob o Império, nele se assistindo à agem gradual do Poder Legislativo das mãos do povo para a dos imperadores. O manancial jurídico era formado pelas leis, plebiscitos, senatuconsultos, constituições imperiais, editos dos magistrados e respostas dos prudentes.
Destaca o autor o aperfeiçoamento do Direito Romano trazido pela atividade dos magistrados e juristas:
“Os pretores com os seus editos, que corrigiam a aspereza do direito quiritário, e os jurisconsultos com as suas opiniões, que introduziam nas leis o elemento científico, foram os fatores do grandioso movimento jurídico que se nota nessa época” [10].
À derradeira, assistiu-se ao intervalo que medeia entre 250 a 550 d.C., compreendendo aproximadamente 300 anos de império, assinalado pela decadência jurídica e política de Roma. A jurisprudência sofreu golpes mortais desferidos pelo despotismo dos imperadores, ando, à medida que os magistrados e prudentes perdem pouco a pouco suas prerrogativas, à condição de único elemento constitutivo do direito.
Não obstante esse estado de coisas, no qual se ambientava um clima de ruína, Pinto Júnior [11] destaca a meritória contribuição do Imperador Teodósio em organizar uma coleção das constituições mais notáveis (Código Teodosiano), prenunciando ao trabalho que, anos depois, veio a lume com a compilação de Justiniano, de sorte a retirar o direito romano do estado caótico em que se encontrava.
Princípios
Depois de discorrer sobre as fontes do Direito Romano, bem assim de algumas conceituações (direito objetivo e subjetivo, obrigações civis e naturais), destaca o autor [12] os três princípios fundamentais que servem de alicerce àquele, desenvolvendo-os.
Em primeiro lugar, atribuíam os romanos enorme relevo ao honeste vivere, ou seja, proceder com honra e dignidade, a significar “que o homem deve conformar-se não somente às regras do direito positivo, mas ainda as da Moral” [13].
Essa tendência de aproximação do Direito com a Moral, fez com que frisasse ter sido verificada na formulação das regras jurídicas, conforme se pode visualizar nas disposições protetivas dos bons costumes, das repressivas ao que é torpe, nas que tinham por fim anular contratos cujo objeto era imoral.
Os dois outros, o alterum non laedere e o suum cuique tribuere, expressavam que a realização da justiça pode se manifestar ou não se atentando contra nossos semelhantes ou lhes dando aquilo a que têm direito, de sorte que ambos se adequam, respectivamente, às obrigações positivas e negativas.
Preciso, pois, o remate do autor:
“Tal é a significação de cada um dos preceitos do Direito: honeste vivere é um preceito fundamental, que revela o influxo dos princípios da Moral, sobre as regras do Direito; o alterum non laedere é um preceito fundamental que sintetiza todas as obrigações jurídicas, cuja prática se verifica por meio de omissões, e o suum cuique tribuere, finalmente, assinala todas as instituições e regras em que transparecem as obrigações positivas” [14].
Direito Público e Direito Privado
Tendo abordado as definições de justiça e jurisprudência, mediante confronto entre as acepções dos romanos e as atuais, o autor [15] enveredou pela análise da já imemorial divisão do Direito a partir do que se supunha ser a natureza dos interesses regulados, resultando em Direito Público e Direito Privado [16].
O que distingue a abordagem, singularizando-a, é a perspectiva de futuro que extraiu o autor das lições dos romanos. Vejamos. A par de considerar que o direito público diz respeito à sociedade política (governo ou istração do Estado), pertencendo-lhe todas as relações que sucedem entre o indivíduo e o Estado, acentuou que o direito privado se volta à utilidade dos particulares, disciplinando os vínculos entre os particulares exclusivamente.
Continuando, frisou que tal distinção, apesar de lógica e prática, não possui o dom do absoluto, de modo a não excluir “que o interesse dos indivíduos ou particulares é estranho ao Direito Público, ou que o interesse do Estado não penetra na esfera do Direito Privado”. Há, assim, que se atender ao interesse predominante, porquanto: “Não é possível, em um Estado constituído, abstrair do interesse público em qualquer relação social” [17].
Consoante se depreende do autor, é de se notar que os romanos já anteviam a concepção de interesse público predominante nos quadrantes atuais do direito istrativo do Estado democrático de direito, que exclui o monopólio do Estado quanto à sua titularidade [18]. Igualmente, pelo que restou evidenciado à época de Roma, é possível ver, na atualidade, a coincidente tendência de uma forte proximidade do direito istrativo com o direito privado [19].
Muito embora não se adeque aos limites deste texto o exame analítico da obra de Pinto Júnior em sua inteireza, a qual adentrou por muitos outros assuntos (divisão do Direito Privado, Direito escrito e não escrito, o estudo da lei, a interpretação, os elementos principais do direito não escrito, direito das pessoas, das coisas e das ações), há uma constatação inabalável.
É que, mesmo tendo o autor, numa menção prévia destinada ao leitor, afirmado que somente “aos alunos do 1º ano da Faculdade de Direito, e não aos mestres da ciência, é destinado o presente trabalho”, é fácil perceber, pela profundidade das lições, que o seu livro se volta, a bem da verdade, a todo aquele que se lance como estudioso do Direito Romano, professor ou não.
[1] “pasando por los mayores juristas, los romanos, que lo eran porque trabajaban pragmaticamente” HÄRBELE, Peter. La jurisdicional constitucional en la fase actual de desarrollo del Estado Constitucional, Direito Público, nº 11, p. 83, janeiro-março de 2006.
[2] Anota Sílvio Meira que, em janeiro de 1825, quando da tentativa de criação de um curso jurídico no Brasil, encontra-se nos estatutos elaborados pelo Marquês de Cachoeira, datados de 05 de março daquele ano, à disciplina Institutas de Direito Romano, sendo de notar que, nos trabalhos preparatórios da Lei de 11 de agosto de 1827, José Clemente Pereira apresentara emenda, para sanar a omissão, a qual não resultou aprovada (MEIRA, Sílvio. O direito romano e o novo mundo (o Brasil nunca precisou tanto do direito romano, como agora), Revista de Ciência Política, p. 10, maio/julho de 1989).
[3] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 141-144.
[4] Pernambuco: Tipografia Econômica.
[5] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 493.
[6] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. VII a X.
[7] MEIRA, Sílvio. O direito romano e o novo mundo (o Brasil nunca precisou tanto do direito romano, como agora), Revista de Ciência Política, p. 4, maio/julho de 1989.
[8] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 2 e 7.
[9] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 8-18.
[10] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 16. É de se notar que a figura do pretor como porventura o contributo mais relevante do direito romano foi objeto de realce, tal como se vê na doutrina do século seguinte (CRUET, Jean. A vida do Direito e a inutilidade das leis. Salvador: Livraria Progresso, 1956, p. 28-30; KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 45. BRETONE, Mário. História do direito romano. Tradução de Isabel Teresa Santos e Hossein Seddighzadeh Shooja. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 109-112)
[11] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 18.
[12] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 25-38, 38-60 e 60-68.
[13] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 61.
[14] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 62-63.
[15] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 80-95.
[16] Não é issível se sustentar que os romanos somente possuíram direito privado, desconhecendo o seu direito público. Fernandez de Buján desmente qualquer possibilidade a respeito, ao delinear os traços organizatórios das instituições estatais romanas (BUJÁN, Antonio Fernadez. Derecho Público Romano y Recepción del Derecho Romano en Europa. 5. ed. Madri: Civitas, 2000). Do seu estudo não se costuma cuidar – esclarece o próprio Pinto Júnior, cujo compêndio se dirigiu ao direito privado – pela diferença existente entre as instituições políticas de hoje e as que vigoravam em Roma (PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. IX).
[17] PINTO JÚNIOR, João José. Curso elementar de direito romano. Pernambuco: Tipografia Econômica, 1891, p. 82.
[18] MAURER, Hartmut. Derecho istrativo – parte general. Madri: Marcial Pons, 2011, p. 51. Tradução para o espanhol coordenada por Gabriel Doménech Pascual.
[19] CASSESE, Sabino. Tendencias y problemas del derecho istrativo. In: Derecho istrativo: historia y futuro. Sevilha: Global Law Press, 2014, p. 380. Tradução de Alicia Isabel Saavedra-Bazaga.
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