Opinião

Autenticidade em crise: direitos autorais, subjetividade e paradigma Volpi na arte produzida sob Alzheimer

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26 de maio de 2025, 7h03

Este artigo propõe uma reflexão jurídica sobre os limites da autenticidade em obras de arte quando a capacidade subjetiva do artista se encontra comprometida por enfermidades progressivas, como o Mal de Alzheimer. Tomando como paradigma o caso de Alfredo Volpi (1896–1988), cuja produção entre 1984 e 1988 desperta questionamentos éticos, jurídicos e museológicos, busca-se investigar até que ponto a degradação cognitiva afeta a legitimidade da autoria artística.

Reprodução

A autenticidade de uma obra de arte, na concepção moderna do direito autoral, está intimamente ligada à subjetividade do autor — sua intenção criativa, domínio técnico e expressão estética. Quando essa subjetividade entra em colapso, a obra continua sendo sua? Ou se torna expressão de terceiros, ainda que elaborada com seus materiais e dentro de seu ateliê?

Este texto visa a contribuir para um amplo debate público, jurídico e interdisciplinar sobre a necessidade de atualização da Lei de Direitos Autorais brasileira, especialmente no que tange à definição da criação autoral sob condições de comprometimento neurológico. A questão de fundo é conceitual e provocadora: o artista plástico, afinal, morre antes do que o homem biológico?

Espera-se, com este artigo, promover uma discussão ampla que auxilie o Judiciário a se aparelhar de forma mais eficaz para prestar tutela jurisdicional adequada diante de casos semelhantes — que, embora tenham como marcos emblemáticos os episódios de Volpi no Brasil e De Kooning nos Estados Unidos, extrapolam essas figuras e alcançam uma complexa zona de indeterminação autoral que exige novos parâmetros técnicos, jurídicos e éticos.

Subjetividade como fundamento da autoria

A noção de autoria, no campo do direito autoral contemporâneo, transcende a simples execução técnica. Conforme a Lei nº 9.610/1998, são protegidas “as criações do espírito”, e o artigo 24º consagra os direitos morais do autor, como a paternidade da obra e a defesa de sua integridade. Esses dispositivos legais refletem uma concepção de obra como extensão da personalidade do autor.

A perda dessa subjetividade compromete a autenticidade. Ainda que tecnicamente semelhantes, obras produzidas em estado de incapacidade parcial não carregam a mesma legitimidade jurídica, pois estão desprovidas da intenção criativa que fundamenta a proteção autoral. A subjetividade, assim, não é apenas um atributo criativo. É um requisito jurídico.

Caso Volpi: técnica, isolamento e o Alzheimer progressivo

Volpi foi mestre da têmpera a ovo, técnica que exige vigor físico, sensibilidade estética e profundo controle do gesto. A partir de 1984, surgiram relatos de comprometimento cognitivo, dificuldades motoras e isolamento social. Colecionadores, críticos e amigos notaram mudanças em sua rotina e em suas obras — algumas assinadas, mas com traços distintos da deterioração visível em outras da mesma fase.

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Apesar de não ter havido interdição formal, a comunidade museológica e os responsáveis pelo catálogo raisonné optaram por não incluir as obras produzidas entre 1984 e 1988. A decisão foi baseada na impossibilidade de atestar, com segurança, a manifestação subjetiva plena do artista no processo criativo, à luz da doença já instalada.

Sabemos hoje que a progressão média do Alzheimer até o óbito é de sete anos. Volpi manifestou sintomas em 1984 e faleceu em 1988. A análise médica compatibiliza esse período com os estágios moderados da doença, nos quais já se observa prejuízo cognitivo relevante.

Não se trata apenas de uma hipótese clínica ou indício testemunhal: Alfredo Volpi faleceu, oficialmente, de Mal de Alzheimer. Sua certidão de óbito, documento público e dotado de fé pública, registra de modo incontroverso o Alzheimer como causa mortis. Portanto, a doença não foi um elemento colateral de sua biografia tardia, mas a própria razão de sua morte. Essa constatação confere gravidade adicional ao debate jurídico sobre a legitimidade das obras atribuídas ao artista em seus anos finais.

Fragilidade das perícias técnicas no contexto do Alzheimer

A perícia técnica tradicional — centrada em pigmentos, composição, s e métodos materiais — mostra-se insuficiente quando o cerne da controvérsia reside na ausência de intenção criativa do artista. Obras atribuídas a Volpi após 1984 utilizam os mesmos pigmentos e es, mas a subjetividade que lhes conferiria autenticidade talvez já não estivesse presente.

A intervenção de assistentes, familiares ou agentes — ainda que bem-intencionada — pode produzir obras formalmente coerentes, mas juridicamente duvidosas. O direito autoral exige mais do que materialidade: exige expressão. Por isso, a análise da autenticidade nesses contextos deve ser interdisciplinar, incorporando laudos médicos, testemunhos e registros históricos do processo criativo.

Interdição, incapacidade e limites da autoria

A Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) introduziu o conceito de capacidade como um espectro, não mais como uma dicotomia. Isso, no entanto, ainda não encontrou plena ressonância no direito autoral, que continua a lidar com a autoria de forma binária: ou há intenção subjetiva, ou não há.

No caso de Volpi, a ausência de interdição formal não impede que se considere a possibilidade de parcial incapacidade autoral. Isso exige que o direito evolua, incorporando critérios que permitam aferir a integridade criativa de artistas em processo de deterioração psíquica. É nesse ponto que a interseção entre arte, medicina e direito se torna inescapável.

Enquanto o caso de Willem de Kooning, diagnosticado com Alzheimer em período concomitante ao de Volpi, gerou amplo debate público, reflexões jurídicas aprofundadas e, inclusive, influenciou a jurisprudência e o arcabouço normativo norte-americano, o Brasil permaneceu inerte. O Judiciário brasileiro, muitas vezes, fica à mercê de uma visão arcaica da perícia, centrada na análise de pigmentos, telas e outros elementos de materialidade técnica. No entanto, não se trata aqui de discutir o objeto em si — que pode perfeitamente ter saído do ateliê do artista —, mas sim a autoria. E a autoria, como instituto jurídico, reside na subjetividade.

Trata-se de um campo de análise em que a simples presença física do artista não basta. Mesmo uma supervisão parcial de uma obra por um autor com subjetividade já comprometida pode não ser suficiente para conferir-lhe legitimidade. O conceito de autoria demanda lucidez, intenção estética e domínio intelectual. A ausência parcial desses elementos deve ser cuidadosamente avaliada, sob pena de se legitimar o que não é mais expressão autêntica.

Os órgãos responsáveis pela catalogação raisonné da obra de Volpi, que optaram por não incluir as produções entre 1984 e 1988, evidenciam, com essa recusa, o alto grau de seriedade e responsabilidade metodológica de sua atuação. A decisão, longe de representar omissão, é manifestação de rigor acadêmico e jurídico diante de um cenário em que a subjetividade do artista já se encontrava diluída.

Isso reforça o caráter complexo e sensível do debate, cuja dimensão extrapola o campo da crítica de arte para exigir posicionamentos sólidos do sistema jurídico. É justamente esse o foco central do presente trabalho: provocar a reflexão profunda sobre a autoria em tempos de deterioração cognitiva e garantir que a tutela jurisdicional seja prestada de forma técnica, interdisciplinar e justa.

Caso Willem de Kooning e comparação internacional

Willem de Kooning (1904–1997), expoente do expressionismo abstrato norte-americano, foi diagnosticado com Alzheimer no final da década de 1980 e continuou a produzir até cerca de 1990. Nesse período, suas obras tornaram-se notavelmente mais contidas, com formas simplificadas e menor agressividade gestual. A mudança estilística, inicialmente interpretada como nova fase estética, logo suscitou dúvidas sobre sua autonomia criativa.

Críticos e estudiosos apontaram que, nesse período, De Kooning era cercado por assistentes, agentes e curadores que gerenciavam sua rotina de ateliê, levantando suspeitas sobre a extensão de sua participação ativa nas obras assinadas. Em 1993, a revista The New Yorker questionava se o artista, já comprometido cognitivamente, teria compreendido ou autorizado as obras produzidas em seu nome.

Ao contrário do que ocorreu no Brasil com Volpi, o debate internacional gerou eco jurídico e resultou em maior cautela nos critérios de avaliação de autenticidade. A diferença reside também na cultura documental: nos EUA, os procedimentos de ateliê foram registrados com precisão; no Brasil, o silêncio institucional e a ausência de documentação sistemática dificultam qualquer juízo inequívoco.

Desafio brasileiro: lacunas e urgência jurídica

Outros artistas brasileiros acometidos por doenças neurodegenerativas, como Nara Leão, Lygia Fagundes Telles, Nelson Sargento e Rubem Alves, também suscitam, mesmo que de modo latente, a necessidade de um debate jurídico profundo sobre a autenticidade de suas obras finais.

A jurisprudência brasileira é ainda incipiente nesse campo. O mercado, por sua vez, opera com pragmatismo comercial, aceitando obras cuja autenticidade subjetiva pode estar comprometida. Sem um marco jurídico claro, proliferam disputas silenciosas, inseguranças e falsificações legitimadas pelo tempo.

Internacionalmente, casos como os de William Utermohlen e Carolus Horn evidenciam a urgência de normativas que reconheçam a fronteira entre produção sob lucidez e produção sob deterioração. No Brasil, esse debate é ainda embrionário, mas não menos necessário.

Conclusão

O caso de Alfredo Volpi revela um paradoxo essencial: a obra pode continuar sendo formalmente coerente, mas sua alma — a subjetividade criadora — talvez já tenha se dissipado. A provocação que orienta este artigo permanece: o artista plástico, afinal, morre antes do que o homem biológico?

É imperativo que o direito autoral evolua para lidar com essa zona de transição. A integridade da obra não pode prescindir da integridade do autor. Quando esta última se dissolve, a primeira torna-se vulnerável. A resposta jurídica, para ser eficaz, precisa ouvir a arte, a medicina e a memória cultural.

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Referências (ABNT)

BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o direito autoral e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 1998.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.

MSD MANUALS. Doença de Alzheimer. Disponível aqui.

NOVO CUIDAR. Fases da demência: o que esperar à medida que a doença progride. Disponível aqui.

BVS/MS. Doença de Alzheimer. Biblioteca Virtual em Saúde – Ministério da Saúde. Disponível aqui.

THE NEW YORKER. What Did de Kooning Know, and When Did He Know It? New York, 1993.

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