Opinião

Cadeia de fornecimento de serviços: corretora responde por negativa de cobertura do plano de saúde?

26 de maio de 2025, 20h44

O presente artigo pretende trazer a lume questão prática enfrentada em nossos tribunais, sobre a qual diversas decisões, com espeque na contextualização dos artigos 7º, parágrafo único, 12, 14, e 25, § 1º, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), têm condenado a empresa corretora de seguros que intermediou a venda do plano privado de assistência à saúde, solidariamente em relação à operadora de saúde fornecedora do serviço, em caso específico de não cobertura para atendimento médico.

Pois bem!

Primeiro convém conceituar e distinguir corretora de seguros e operadora de saúde.

O conceito de corretor de seguros está no artigo 1º, da Lei nº 4.594, de 29 de dezembro de 1964, e é o seguinte:

“Art . 1º O corretor de seguros, seja pessoa física ou jurídica, é o intermediário legalmente autorizado a angariar e a promover contratos de seguros, itidos pela legislação vigente, entre as Sociedades de Seguros e as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado” (grifos do articulista).

Há, ainda, o conceito de corretor de seguros de vida e de capitalização, conforme o artigo 1º, do Decreto nº 56.903, de 24 de setembro de 1965, que assim preceitua:

“Art 1º. O Corretor de seguros de Vida e de Capitalização, anteriormente denominado Agente, quer seja pessoa física quer jurídica, é o intermediário legalmente autorizado a angariar e a promover contratos de seguros de vida ou a colocar títulos de capitalização, itidos pela legislação vigente, entre sociedades de seguros e capitalização e o público em geral” (grifos do articulista).

Já a definição de operadora de saúde (abreviação de operadora de plano de assistência à saúde) está no inciso II, do artigo 1º, da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1996 (Lei dos Planos de Saúde), e é a seguinte:

“Art. 1º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:

I – Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de o e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;

II – Operadora de Plano de Assistência à Saúde: pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inciso I deste artigo”  (grifo do articulista).

Importante frisar, apenas a título de esclarecimento, que não é necessário ser um corretor de seguros para efetuar a venda de um plano privado de assistência à saúde, o que geralmente é efetuado por qualquer pessoa (chamado “corretor livre”). Todavia, é necessário ser corretor de seguros, pessoa física ou jurídica, devidamente cadastrado junto à Superintendência de Seguros Privados (Susep), para apresentar a proposta de contrato de plano de saúde junto à operadora, ou seja, a contratação do plano de saúde perante a operadora de saúde só será realizada com a intermediação do corretor(a) habilitado e credenciado.

Spacca

Em que pese a Lei nº 9.656/96 não fazer qualquer menção ao profissional que intermedeia a contratação do plano de saúde, referida norma quando da sua promulgação claramente institui natureza jurídica de “seguro” aos produtos previstos em seu texto (sendo desnecessário para a finalidade desse trabalho adentrar na conceituação de “plano de saúde” e “seguro saúde”), daí porque a contratação deve ser intermediada por um corretor de seguros devidamente habilitado.

Feitas as definições retro, a questão proposta é: a corretora de seguros deve responder judicialmente e ser condenada solidariamente com a operadora de saúde em casos de negativa de cobertura de serviços médicos?

Legitimidade para agir

Antes de respondermos à questão, compete ainda tecer breve comentário sobre a legitimidade iva para o processo.

Com efeito, como ensina o professor Fredie Didier Junior [1]:

“A legitimidade para agir (ad causam petendi ou agendum) é requisito de issibilidade que se precisa investigar no elemento subjetivo da demanda: os sujeitos. Não basta que se preencham os ‘pressupostos processuais’ subjetivos para que aparte possa atuar regularmente em juízo. É necessário, ainda, que os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discuta aquela relação jurídica de direito material deduzida em juízo” (grifo do articulista)

Conforme a lição doutrinária, é necessário que os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discuta aquela relação jurídica de direito material (…), ou seja, no caso ora analisado, o sujeito ivo demandado para responder por eventual negativa de cobertura para a realização de serviço médico, deve estar “em determinada situação jurídica” que o “autorize a conduzir o processo” em que se discuta a relação jurídica de direito material.

Reverberando os conceitos legais supra indicados, por questão de lógica se conclui que a corretora de seguros que vendeu o plano, ou seja, tão somente intermediou a contratação entre a operadora de saúde e o beneficiário do serviço, jamais poderá estar “em determinada situação jurídica que a autorize a conduzir o processo” em relação à cobertura contratual para a disponibilização da prestação de serviços de saúde, o que, naturalmente, só pode ser exigido da própria operadora de plano de assistência à saúde.

Reprodução

A hipótese específica avençada no presente artigo (negativa de cobertura para a utilização do plano de saúde) afasta a legitimidade da corretora de seguros, pois sua atuação se resume a intermediar a contratação, logicamente agindo com estrita observância das normas legais e regulamentares, e com total transparência na prestação das informações necessárias para que o consumidor que está adquirindo o plano de saúde não seja lesado quanto à condições contratuais, coberturas e abrangência do serviço ofertado pela operadora de saúde.

Este o ponto!

O caso não se trata de falha na prestação de serviços concernente à corretora de seguros, mas sim no que tange à própria execução do contrato após o exaurimento da sua atuação. A situação jurídica apresentada envolve apenas a operadora de saúde e o seu cliente, o consumidor beneficiário do serviço que fora negado.

Nesse azo, para demonstrar a questão sob o enfoque da jurisprudência, apresentamos os seguintes julgados:

“Apelação cível. Direito do Consumidor. Ação de obrigação de fazer c/c indenizatória. Plano de saúde coletivo. Rescisão unilateral pela operadora. Menor diagnosticado com transtorno do espectro autista. Sentença de parcial procedência. Abusividade da rescisão do contrato durante tratamento médico imprescindível para o desenvolvimento do segurado. Art. 35-c, I e II, da Lei 9.656/1998. Tese firmada no julgamento do REsp nº 1 .846.123/SP e do REsp 1.842.751/RS, (Tema 1 .082): a operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida”. Manutenção da assistência médica. Responsabilidade objetiva e solidária da intermediária e da operadora do plano de saúde. Empresas que integram a mesma cadeia de consumo, auferindo lucros da parceria negocial. incidência dos artigos 7º, parágrafo único, e 14, § 3º, do CDC. Dano moral caracterizado. tutela de urgência que não foi integralmente cumprida. Menor que não pôde se beneficiar de tratamento essencial para o seu desenvolvimento e que ainda se encontra sem receber todas as terapias que lhe foram prescritas. Verba compensatória arbitrada em R$ 6.000,00 (seis mil reais) que se majora para R$ 10.000,00 (dez mil reais), em atenção ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade e às peculiaridades do caso concreto. Súmula 343 TJ-RJ. Precedentes da corte. Parcial provimento ao recurso do Ministério Público e ao recurso do autor. Recurso da primeira ré a que se nega provimento.” (TJ-RJ – apelação: 09480078720238190001 2024001115775, relator.: des. Luiz Roldao de Freitas Gomes Filho, data de julgamento: 27/1/2025, 9ª Câmara de Direito Privado (antiga 2ª Câmara Cível), data de publicação: 29/1/2025) (grifos do articulista).

A decisão retro reconheceu a responsabilidade solidária da corretora de seguros para indenizar a parte autora devido ao cancelamento unilateral do plano de saúde por parte da operadora, com suspensão dos serviços.

Já a decisão abaixo colacionada, em questão análoga, acolheu preliminar de ilegitimidade iva “ad causam” suscitada pela corretora de seguros, em caso no qual a Operadora de Saúde negou a cobertura do plano para a realização de cirurgia do fígado, verbis:

“APELAÇÃO – Plano de saúde – Ação de obrigação de fazer a fim de compelir a corré Porto Seguro a custear cirurgia de transplante de fígado – Sentença de parcial procedência – Inconformismo da corré Nova Affinity, que afirma ser mera intermediadora do contrato firmado entre as partes – Corretora de seguros que não atuou para o descumprimento contratual, e nem possui poder de dar cumprimento à obrigação – Ilegitimidade iva ‘ad causam’ que deve ser reconhecida – Sentença reformada em relação à corré. Recurso provido.” (TJ-SP – Apelação Cível: 10775594120228260100 São Paulo, relator.: Enio Zuliani, data de julgamento: 4/7/2024, 4ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 04/07/2024) (grifos do articulista).

Assim sendo, considerando a especificidade da questão proposta, temos que a segunda decisão apresentada foi acertada, uma vez que é impossível para a corretora de seguros, conforme os argumentos apresentados neste artigo, dada a sua situação jurídica, responder por serviços cuja cobertura só pode ser disponibilizada pela operadora de saúde.

Conclusão

Em caso específico de negativa de cobertura por parte da operadora de saúde para a realização de serviços médicos abrangidos pelo plano de saúde contratado, com respeito aos entendimentos contrários, resta demonstrado que a corretora de seguros que tão somente intermediou a contratação — sem falhas concernentes à limitação da sua prestação de serviços — é parte ilegítima para responder à pretensão da parte autora da ação, seja para fins de determinar a obrigação de fazer consistente em disponibilizar a cobertura; seja para declarar a rescisão do contrato de plano de saúde, com as indenizações porventura cabíveis.

 


[1] Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento”, volume 1, 17ª edição, Salvador: Juspodivm, 2015, p. 343.

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