Opinião

Esquerda punitiva e intimação por edital de decisão de medida protetiva

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26 de maio de 2025, 21h21

Durante muito tempo, prevaleceu a percepção de que a pauta do punitivismo advinha, predominantemente, de discursos de políticas criminais da direita, especialmente dos movimentos de “lei e ordem” (law and order).

Mas coube à professora Maria Lúcia Karam, em meados de 1996, publicar um precioso ensaio, intitulado “A esquerda punitiva” [1]. Ali, Karam nos provoca a refletir que também há punitivismo em certas políticas criminais da esquerda. É dizer, a ideologia repressora possui vida própria para além de posições à direita ou à esquerda.

Pois bem, posteriormente, Karam revigora o texto em um livro [2], atualizando as pautas punitivistas da esquerda dos últimos anos. E ali se inclui a questão do mau tratamento à violência doméstica pelo sistema penal brasileiro.

Noutra perspectiva, é possível complementar a crítica com a abordagem que Zaffaroni [3] fez ao tratar, no seu indispensável “O inimigo no Direito Penal”, do “autoritarismo cool”, aquele autoritarismo “legal”, “maneiro”, que, por ser assim, se apresenta acima de todas as críticas, “além do bem e do mal”. Então, Zaffaroni nos ensina que este “autoritarismo cool” é popularesco, desmerece a técnica e se vale de um discurso fácil para, rechaçando as garantias constitucionais, nos convencer que: neste campo aqui, tudo pode!

Mas não! A Constituição não permite pretensões jurídicas absolutas, nem mesmo a favor dos mais vulneráveis. Em toda pretensão, há de haver um limite, orientado pelas garantias constitucionais!

Intimação via edital

Neste contexto, visando a suprir a necessidade de intimação de decisões de medidas protetivas para sujeitos não encontrados, o enunciado nº 43 do Fonavid (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica) regulamentou a modalidade via edital, com a seguinte redação: “ENUNCIADO 43: Esgotadas todas as possibilidades de intimação pessoal, será cabível a intimação por edital das decisões de medidas protetivas de urgência.”

Aqui merece ressalva a banalização da utilização de modalidade de intimação por edital na seara criminal, na medida em que se trata, em essência, de uma intimação ficta, que geraria uma presunção de ciência. A rigor, presunção não é nada além de uma mera ficção. E a ficção, quando produz efeitos jurídicos drásticos — como a presunção de ciência da medida protetiva — no campo penal, o faz, via de regra, com feições autoritárias.

Pois bem, para além da incerteza da ciência através da intimação ficta, faz-se necessária a análise das possíveis repercussões cautelares e dogmático-penais.

Spacca

No tocante às repercussões cautelares, eventual “descumprimento” da medida protetiva não pode servir, exclusivamente com base na cientificação via edital, de base para o agravamento cautelar, sobretudo quando se trata de fundamento à prisão preventiva. Este entendimento foi seguido no julgamento do habeas corpus pelo Tribunal de Justiça do Paraná: 0002588-22.2024.8.16.0000 Curitiba, Relator: Mauro Bley Pereira Junior, Data de Julgamento: 24/02/2024, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 26/02/2024.

Descumprimento de medida protetiva

Já no que diz respeito às repercussões penais, aqui a situação se apresenta de maneira igualmente sensível, na medida em que o artigo 24-A, da Lei 11.340/06 tipifica o descumprimento de medida protetiva, contando com um substancial agravamento do preceito secundário do tipo a partir da Lei nº 14.994/24 (de detenção de três meses a dois anos, para reclusão de dois a cinco anos, e multa).

Neste contexto, imputações de prática do crime do artigo 24-A, calcadas na mera intimação por edital, carecem de materialidade, na medida em que a modalidade editalícia não é medida minimamente segura para atestar a ciência da obrigatoriedade do cumprimento de medida protetiva, notadamente por ser exigido, no aludido tipo penal, o dolo como elemento subjetivo. Entendendo por este caminho, destaca-se o julgamento da Apelação Criminal, pelo TJ-SP, de nº 1503617-91.2022.8.26.0269 Itapetininga, relator: Marcelo Gordo, Data de Julgamento: 26/05/2023, 13ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 26/05/2023.

Desde a perspectiva aqui abordada, a respeito do populismo penal como resposta à violência doméstica, é importante ressaltar que acontece de as partes envolvidas, não raro, voltarem, consensualmente, a se relacionar, mesmo após as medidas protetivas. Não obstante, com certa frequência, as agências penais têm ignorado essa nova conjuntura e seguido, cegamente, o caminho da criminalização (artigo 24-A da Lei 11.340/06).

Contato consensual

Com efeito, ainda que se trate de intimação regular acerca da decisão de medida protetiva, o fato de o contato ser consensual não parece permitir a tipicidade, na medida em que, à luz da função conglobante [4] da tipicidade, carece de antinormatividade o fato de a beneficiária da medida protetiva “abrir mão” da ordem judicial. Afinal de contas, o que embasou a decisão foi exatamente o medo/receio do contato, ou seja, não há lesividade na conduta!

Ainda que entendesse típico, estamos diante de pelo menos duas causas evidentes de exclusão de crime. Temos o consentimento da ofendida (como causa supralegal de exclusão da ilicitude), bem como o erro de proibição (artigo 21, ).

Seguramente, não dá pra se exigir, de um leigo, que perceba que continua prevalecendo a medida protetiva se a beneficiária busca — ou ao menos consente com — o contato.

Do contrário, que sistema penal é este, que age numa situação que nem a separação de corpos do direito de família é confirmada?

A pauta da esquerda punitiva para a violência doméstica possui como pano de fundo a ideologia da repressão, de tal sorte a, embalada pelo “autoritarismo cool”, colocar o poder punitivo como prima ratio!

 


[1] KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Revista Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, nº 1, ano 1, 1º semestre de 1996, p. 79-92.

[2] KARAM, Maria Lucia. A ‘Esquerda Punitiva’: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant Lo Blanch Brasil, 2021, p. 102ss.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3ª Ed. 5ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2017.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Volume II. Tomo I. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

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