Opinião

O que Hans Kelsen tem a ver com a ilegalidade da Dirbi?

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26 de maio de 2025, 19h33

Hans Kelsen, jusfilósofo austríaco, muito conhecido na comunidade jurídica, criou a famosa “Pirâmide de Kelsen”, que tem muito a ver com o controle de constitucionalidade, controle de convencionalidade e controle de legalidade das normas jurídicas.

Hans Kelsen/Reprodução

Basicamente, a “Pirâmide de Kelsen” estabelece que a norma jurídica inferior extrai a sua validade da norma jurídica superior. Adaptada para o direito brasileiro, estão a Constituição, emendas à Constituição e tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e foram internalizados com o rito de emendas à Constituição no topo da pirâmide.

Logo abaixo, estão os atos normativos supralegais (tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e não foram internalizados com o rito de emendas à Constituição). Abaixo, estão os atos normativos primários (leis ordinárias, leis complementares, medidas provisórias, tratados internacionais que não versam sobre direitos humanos, etc). Na base da pirâmide, encontram-se os atos normativos secundários (instruções normativas, decretos regulamentares, etc).

Portanto, resumidamente, os atos normativos secundários extraem o seu fundamento de validade nos atos normativos primários; os atos normativos primários extraem o seu fundamento de validade nos atos normativos supralegais e na Constituição. A Constituição extrai o seu fundamento de validade nela mesma, pois ela é a norma hipotética fundamental.

Instituição da Dirbi

Adentrando na seara tributária, a Medida Provisória n° 1.227 de 4 de junho de 2024, instituiu a Dirbi (Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária).

Para regulamentar a previsão da citada medida provisória, a Receita Federal elaborou e publicou a Instrução Normativa n° 2.198 em 18 de junho de 2024.

Conforme dispõe o artigo 62 da Constituição, as medidas provisórias terão validade de 60 dias, podendo ser prorrogadas por igual período; findo o prazo, serão convertidas em lei ou perderão a sua eficácia, desde a edição. Caso a medida provisória não seja convertida em lei, o Congresso Nacional deverá disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes da medida provisória. Caso o Congresso não edite o decreto legislativo, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

A Medida Provisória n° 1.227/24 não foi convertida em lei, tendo perdido a sua eficácia em 1° de outubro de 2024, conforme Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 95/24.

O Congresso Nacional não elaborou decreto legislativo para regular as relações jurídicas advindas da citada medida provisória, como se pode ver da tramitação legislativa abaixo:

“02/12/2024
Mesa – Mesa Diretora do Congresso Nacional
Ação:
Em 30/11/2024 esgotou-se o prazo previsto no § 11 do art. 62 da Constituição Federal e no § 2º do art. 11 da Resolução nº 1, de 2002-CN, sem edição de decreto legislativo que discipline as relações jurídicas decorrentes da Medida Provisória nº 1.227, de 2024, cuja vigência encerrou-se em 1º/10/2024, por perda de eficácia sem apreciação pelas Casas do Congresso Nacional (§§ 7º e 11 do art. 62 da Constituição Federal).
É extinta a Comissão Mista destinada a apreciar a matéria (§ 3º do art. 11 da Resolução nº 1, de 2002-CN).
Será feita comunicação à Câmara dos Deputados.
À Secretaria de Expediente e, posteriormente, ao Arquivo.”

Medida provisória perde eficácia

De forma autônoma à citada medida provisória, o Congresso Nacional elaborou a Lei n° 14.973 de 16 de setembro de 2024.

Spacca

Esta lei trouxe em seus artigos 43 e 44 redações praticamente idênticas ao que previa a Medida Provisória n° 1.227/24 em relação a Dirbi.

Ou seja, aplicando o que dispõe a Constituição, como a medida provisória perdeu a sua eficácia desde a edição, a Dirbi ou a existir com a previsão da Lei n° 14.973/24, especificamente em 16 de setembro de 2024, ressalvadas as exigências durante a existência da medida provisória.

A pergunta que vem à cabeça é: o que Kelsen tem a ver com tudo isso?

A cronologia dos acontecimentos é essencial para chegar à conclusão que este artigo apresenta.

A Instrução Normativa que instituiu a Dirbi, publicada em 18 de junho de 2024, está enxerta como ato normativo secundário, e extraía o seu fundamento de validade na Medida Provisória n° 1.227/24. Com a perda da eficácia da citada medida provisória, a instrução normativa perdeu o seu fundamento de validade, já que a medida provisória perdeu a sua eficácia desde a edição.

Uma instrução normativa não subsiste sem fundamento de validade, pois, conforme explicado acima, ela extrai o seu fundamento de validade do ato normativo primário.

Com a edição da Lei n° 14.973/24 seria necessário a elaboração de uma nova instrução normativa, tendo em vista que ela regulamenta a previsão desta lei e não mais da medida provisória.

O fundamento de validade para um ato normativo secundário que regulamenta a Dirbi é a Lei nº 14.973/24.

Validade jurídica

O direito brasileiro não prevê a legalidade superveniente, ou seja, um ato normativo que existe abstratamente e não regulamenta relação jurídica existente no ordenamento, e, posteriormente à sua existência, é feito um ato normativo primário para dar validade a este ato secundário. Tal situação é o total inverso da ordem de validade dos atos normativos.

A impossibilidade da citada legalidade superveniente é intrínseca à própria finalidade do ato normativo secundário, que tem por objetivo regulamentar situações criadas abstratamente por atos normativos primários, ou seja, por decorrência lógica, há a impossibilidade de existência prévia de um ato normativo secundário em relação ao ato que lhe confere validade jurídica.

Em outras palavras, seria regulamentar uma situação inexistente no ordenamento jurídico.

A Receita Federal deveria ter reeditado o ato normativo que regulamenta a Dirbi, tendo em vista a nova lei em vigor. Com a ausência do ato normativo primário (perda de eficácia da medida provisória), a Instrução Normativa n° 2.198/24 ficou desamparada juridicamente, carecendo de validade.

Jurisprudência do STF

A impossibilidade de se itir a legalidade superveniente da Instrução Normativa n° 2.798/24 advém da jurisprudência do STF, que não ite a constitucionalidade superveniente; que seria uma norma infraconstitucional, ao ser inserida no ordenamento jurídico, não encontrasse amparo constitucional, faltando-lhe fundamento de validade; mas, com alguma emenda constitucional, esta norma infraconstitucional asse a encontrar fundamento de validade advinda da alteração constitucional.

É como se o vício da inconstitucionalidade pudesse ser corrigido a posteriori; dito em outras palavras, é como se a compatibilidade da norma infraconstitucional pudesse ser atestada posteriormente à alteração da Constituição. Por exemplo: uma lei ordinária X que dispusesse sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. Posteriormente a esta lei ordinária X, uma emenda à Constituição alterasse o artigo 146 dispondo que cabe à lei ordinária tratar desta matéria. A lei ordinária X não aria a ser constitucional, pois no momento de sua inserção no ordenamento jurídico, ela carecia de validade constitucional.

Tal intercorrência não é itida, tendo em vista que a compatibilidade das normas se atesta com a introdução da norma no ordenamento jurídico.

Portanto, a Instrução Normativa n° 2.198/24, que regulamenta a Dirbi, não encontra fundamento de validade no ordenamento jurídico, tendo em vista que a norma que lhe dava validade perdeu a eficácia desde a sua edição. Ou seja, as exigências da Dirbi são ilegais. Todavia, o contribuinte deve buscar amparo jurisdicional para que a inexigência de entrega da Dirbi seja declarada em ação judicial.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara, especialista em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pela Faculdade Brasileira de Tributação, tecnólogo em Gestão Pública pela Uni-BH e advogado no escritório Martins Freitas Advogados Associados.

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