Opinião

Adensamento sem critério não é progresso: os riscos da revisão do tombamento dos Jardins

O recente debate acerca da revisão das diretrizes de tombamento dos Bairros Jardins – Jardim América, Jardim Europa, Jardim Paulista e Jardim Paulistano – transcende a simples discussão urbanística. Trata-se de uma questão constitucional, ambiental e cultural, que exige análise sob a ótica da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da CF), da defesa do patrimônio histórico e cultural (artigo 216 da CF) e do respeito aos princípios da legalidade, da motivação e da participação democrática na istração pública (artigos 5º, II e XXXIII; artigo 7, caput, da CF).

A proposta de revisão aprovada pelo Condephaat em dezembro de 2024 não apenas flexibiliza regras de uso e ocupação do solo, como compromete a função socioambiental que os Bairros Jardins exercem há mais de um século. A alteração de parâmetros urbanísticos, como a drástica redução das áreas permeáveis, a flexibilização de recuos, o estímulo ao rebaixamento do solo e a supressão de vegetação significativa, afronta não apenas as normas de proteção ambiental, mas também o próprio regime jurídico do tombamento, que visa garantir a integridade material e imaterial do bem tutelado.

Incompatibilidade da revisão

O tombamento é instrumento da política urbana que visa a proteção, dentre outros, de conjuntos urbanos e sítios de valor paisagístico e ambiental, formalizado por ato do poder público, com a colaboração e participação da comunidade (artigo 4º, do Estatuto da Cidade c/c artigo 216 CF). O tombamento dos Jardins foi precedido de estudos técnicos e debates com a sociedade, resultando em regras de uso e ocupação da região que protegem as suas principais características de bairro-jardim. A Resolução de Tombamento nº 02/1986 foi posteriormente alterada e complementada pelas Resoluções nº 01/1988 e 37/2021, mantendo a proteção dos Jardins como bairros ambientais, com a efetiva participação popular.

O projeto arquitetônico dos Jardins contou com a participação dos arquitetos Ebenezer Howard, Raymond Unwin e Barry Parker, que planejaram, em 1898, a sua implantação, com grandes áreas verdes permeáveis e maciços arbóreos. A vegetação dos Jardins logo destacou-se e foi considerada patrimônio ambiental do município de São Paulo, imune ao corte, nos termos do Decreto estadual nº 30.443/1989.

A proposta de revisão do tombamento dos Bairros Jardins, aprovada pelo Condephaat, desrespeita as características originais que embasaram o tombamento, não porque se limitam a permitir construções de até três andares, como alguns defendem. Ela altera substancialmente parâmetros ambientais, reduzindo áreas permeáveis e recuos frontais, flexibilizando a preservação da vegetação significativa e permitindo rebaixamentos de terreno sem a devida análise de impacto sobre o lençol freático. Essas alterações são incompatíveis com a função ambiental dos Jardins e ignoram os riscos climáticos que a cidade enfrenta e o próprio interesse público.

Diferentemente do que sustentam os defensores da proposta aprovada, a proteção do uso exclusivamente residencial unifamiliar não é um privilégio elitista, mas uma medida de proteção ambiental baseada em dados técnicos. Os Jardins funcionam como verdadeiras “unidades ambientais urbanas”, conforme demonstra a Carta Geotécnica de 2024. A região possui uma das maiores coberturas vegetais da cidade, além de registrar temperaturas de até 3°C inferiores às áreas mais densamente urbanizadas, localizada em sua grande parte em planícies aluviais e terraços fluviais baixos.

Spacca

A verticalização dos Jardins não resolverá o problema habitacional de São Paulo e tampouco democratizará o o à moradia, como se sugere. Ao contrário, apenas intensificará a especulação imobiliária em uma das áreas mais valorizadas da cidade, afastando ainda mais a população de baixa renda para regiões periféricas e ambientalmente frágeis. Os maiores beneficiários da revisão do tombamento são os agentes do mercado imobiliário e não a população.

Os poucos estudos apresentados pelos órgãos técnicos da Secretaria Estadual da Cultura, Economia e Indústria Criativa, que teriam “fundamentado” a proposta de revisão da Resolução, relatam experiências pessoais dos técnicos subscritores, não comprovadas por estudos, ensaios, simulações e nem projeções dos impactos que a densidade construtiva pode causar na região, especialmente no que se refere à impermeabilização de áreas ajardinadas e rebaixamento do solo. O único estudo técnico-científico juntado ao processo SEI 010.00002015/2023-70 foi apresentado pela entidade AME Jardins, com detalhado diagnóstico da área tombada, porém desconsiderado na proposta de revisão da resolução.

Importante recordar que o Supremo Tribunal Federal já consolidou entendimento, por meio da ADI-MC-3540, de que a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural deve ser pautada pelo princípio da vedação ao retrocesso ambiental, o que impõe um ônus argumentativo qualificado ao poder público para justificar a revogação ou flexibilização de normas de proteção já consolidadas.

Vícios

No caso dos Jardins, não se trata apenas da proteção de um “bairro nobre”, mas da preservação de uma unidade climática e ambiental urbana, conforme reconhecido por estudos técnicos. Substituir áreas verdes por lajes ajardinadas, como permite a nova normativa, não apenas contraria a função ecológica do espaço urbano, como viola os princípios da precaução e da prevenção ambiental (artigo 225 da CF).

Além dos vícios materiais já indicados, a deliberação padece de vícios formais insanáveis. A resolução foi aprovada em desrespeito ao quórum qualificado exigido pelo Regimento Interno do Condephaat, sem a realização de estudos técnicos adequados e sem a devida participação popular, violando frontalmente o devido processo istrativo e o princípio da participação democrática.

A conselheira Andrea de Oliveira Tourinho, representante do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) junto ao Condephaat solicitou no dia da votação que fosse concedido prazo para análise da versão final da proposta de revisão, esclarecendo que havia recebido o documento no dia anterior. Porém, o pedido foi rejeitado e o tema votado sem que fosse apresentada qualquer justificativa para a urgência imposta, comprometendo a necessária transparência. A mesma conselheira apresentou relatório detalhado no dia da votação, destacando as incongruências da proposta para concluir que:

“Provocar mudanças nesse ecossistema sem estudos técnicos sobre as possíveis perdas de área vegetada, aumento de área construída e seus efeitos de ilha de calor, assim como a concentração de maior número de pessoas, e seus carros, não parece ser a melhor das opções, podendo ser um caminho de não retorno, o que criará uma perda irreparável, afetando a todos nós e ao ambiente em que vivemos.” (fls. 1.006/1.018 do processo SEI 010.00002015/2023-70)

Não se trata, como pretendem os defensores das alterações, de discurso alarmista sobre os impactos ao meio ambiente já tão degradado na cidade de São Paulo, mas da comprovação de que as alterações propostas foram casuais, aleatórias e não técnicas por inexistir os estudos que as justifiquem e avaliem seus impactos.

O que se presencia, portanto, não é uma simples discussão sobre modernização ou adensamento construtivo responsável. Trata-se de um retrocesso jurídico, ambiental e urbanístico, mascarado sob o argumento de um suposto “progresso”, sem estudo técnico que embase as profundas alterações na resolução. Repita-se: a verticalização dos Jardins não solucionará o déficit habitacional de São Paulo, cujas causas são estruturais e ligadas às frágeis políticas públicas de habitação de interesse social.

Por essas razões, associações mobilizaram-se, antes que a minuta aprovada fosse homologada pela Secretária Estadual da Cultura, Economia e Indústria Criativas, e apresentaram impugnações técnicas e jurídicas no âmbito istrativo e judicial, no exercício legítimo de defesa do patrimônio cultural e ambiental, mas também pelo dever coletivo de impedir a consolidação de decisão istrativa lesiva ao interesse público.

O Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio da Promotoria do Meio Ambiente, atua como fiscal da lei nas ações judiciais promovidas pelas associações e já apresentou, em alguma delas, manifestações que reforçam as irregularidades apontadas na elaboração e aprovação da minuta de alteração da resolução, bem como o retrocesso na proteção ambiental dos Bairros Jardins.

As alterações nas regras do tombamento dos bairros Jardins devem ser revistas sob a ótica do planejamento urbano e crescimento sustentável da cidade.

Autores

  • é advogada com sólida atuação na área cível, com ênfase em disputas judiciais e arbitrais de alta complexidade, envolvendo setores estratégicos como infraestrutura, energia, mercado financeiro e farmacêutico, atuou por uma década em um dos maiores escritórios full-service do país, mestre e bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com especializações em arbitragem (FGV) e em Direito Internacional privado pela The Hague Academy of International Law (Haia/NL), autora da obra Arbitragem e Corrupção (Juspodivm, 2022). Contribui para o debate sobre práticas éticas e sustentáveis na resolução de conflitos.

  • é procuradora aposentada do município de São Paulo, onde exerceu suas funções por mais de 25 anos (1993–2019), com destaque para os cargos de chefia na Procuradoria Geral e na Secretaria de Governo Municipal, mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP, instituição pela qual também é graduada. Foi agraciada com o prêmio “Oswaldo Aranha Bandeira de Mello” pela excelência na atuação jurídica voltada ao interesse público municipal, atua em defesa do patrimônio público e urbanístico e integrou câmaras técnicas e conselhos ligados à legislação urbanística e ao patrimônio histórico e ambiental da cidade.

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