Para que servem os anexos das leis?
27 de maio de 2025, 8h00
O que são os anexos das leis? Quando devem ser usados? Qual é o seu valor? Constituem normas jurídicas? Podem contrariar os artigos das leis? Já observou que a LC nº 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, não traz qualquer afirmação sobre o papel dos anexos das leis? Se o leitor, estudante ou jurista, teve dificuldade para responder alguma dessas perguntas, isso só reforça a importância do estudo sobre o processo de elaboração das leis, na linha do que se vinha sendo explicado na participação ada nesta Fábrica de Leis, quando o processo legislativo foi apresentado como a “outra metade” (não devidamente ensinada nas faculdades) do Direito.
O caso da técnica legislativa, então, parece ainda mais grave. Como envolve saberes, procedimentos e recursos de origens distintas (científicas, tecnológicas, máximas de experiência, etc.), os juristas em geral fazem pouco (ou nenhum) caso à técnica legislativa. Em uma primeira aproximação, pode-se definir a técnica legislativa como o conjunto de regras e boas práticas destinadas a disciplinar o uso da linguagem do Direito, de forma a orientar a elaboração e organização das normas jurídicas. Entretanto, há quem entenda – de forma equivocada, claro – que a técnica legislativa não é um ramo do Direito.
De forma a rebater mais essa impostura em matéria de elaboração das leis, e para ilustrar a utilidade dos conhecimentos oriundos da técnica legislativa, o texto de hoje se dedica especificamente aos anexos das leis, essas partes que ficam lá no final das leis, escondidas, que muitos sequer as leem, enfim, os anexos são sumamente esquecidos e menosprezados pela maior parte dos juristas.
Pois bem. Anexos são resultado de uma técnica legislativa consistente em separar determinados elementos da parte dispositiva ou articulada (leia-se, o corpo do texto) da lei, em razão do caráter do seu conteúdo, que pode ser excessivamente técnico (conter dados, coeficientes, alíquotas), demasiadamente extenso (com longas listas, enumerações, instruções detalhadas, definições – como o Anexo I da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que traz o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e conceitua o que é acostamento, estrada, operação de trânsito, etc.), ou porque se usa algum elemento gráfico não-textual (por exemplo, a Lei nº 7.405, de 12 de novembro de 1985, que torna obrigatória a colocação do “Símbolo Internacional de o” e traz em seu anexo a imagem sinalizadora correspondente, ou mesmo o Anexo II do CTB, que continha os sinais de trânsito), um mapa, uma fórmula matemática (por exemplo, o cálculo do fator previdenciário, conforme o anexo da Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999), etc.
Separado e opcional
Na maior parte das vezes, os anexos serão tabelas. A ideia é a de que, em vez de esse conteúdo constar do próprio texto articulado, faz-se uma remissão ao anexo correspondente. O recurso ao anexo proporciona uma melhor organização da norma. Não se deve usar o anexo para substituir a norma, mas somente para complementá-la, como uma colmatação. O anexo não pode ser algo independente da lei, seu conteúdo precisa se integrar na lei. Ao menos, esse é o correto uso determinado pela técnica legislativa.
Com isso, tem-se que o anexo é uma parte integrante da própria lei. Por mais que o artigo 3º da LC 95/1998 não o mencione, isso não retira esse fato. O mencionado dispositivo legal se refere apenas às três partes básicas das leis: 1) parte preliminar, compreendendo a epígrafe, a ementa, o preâmbulo, o enunciado do objeto e a indicação do âmbito de aplicação das disposições normativas; 2) parte normativa, compreendendo o texto das normas de conteúdo substantivo relacionadas com a matéria regulada; e 3) parte final, compreendendo as disposições pertinentes às medidas necessárias à implementação das normas de conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o caso, a cláusula de vigência e a cláusula de revogação, quando couber. Ora, como se acaba de explicar, a presença do anexo não é básica ou obrigatória, mas, sim, opcional ou circunstancial; depende da necessidade de organização da norma, conforme a matéria tratada no caso concreto.

Por exemplo, o artigo 142 da Lei nº 8.213/1991, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras providências, com redação dada pela Lei nº 9.032/1995, preferiu trazer no corpo do próprio texto a tabela com a regra de transição da carência das aposentadorias por idade (a tabela contém uma coluna com os anos de implementação das condições, e outra com os meses de contribuição exigidos), em lugar de remeter a questão para um anexo.
Quando é necessário incluir um anexo na lei, este deve constar após a parte final, na sequência da data e das s. Ou seja, o anexo é separado, mas vem de forma contínua ao corpo da lei. O conteúdo do anexo deve ser antecedido da palavra “ANEXO” (grafada em letras maiúsculas). Às vezes, as leis podem precisar de mais de um anexo. Nessa situação, os anexos devem vir numerados com algarismos romanos (I, II, III, …), sempre com a devida remissão de forma clara e expressa na parte dispositiva (corpo do texto), inclusive com o número, quando for o caso.
De preferência, os anexos devem receber uma identificação. Por exemplo, veja-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025 (Lei nº 15.080, de 30 de dezembro de 2024), cujo artigo 182 – além de fazer questão de mencionar que os anexos integram a lei – trouxe a lista com seus títulos: Anexo I – Relação dos quadros orçamentários consolidados; Anexo II – Relação das informações complementares ao Projeto de Lei Orçamentária de 2025; Anexo III – Despesas que não serão objeto de limitação de empenho, etc. Entretanto, é comum encontrar leis mais antigas com a simples menção aos anexos sem qualquer título – por exemplo, na Lei nº 13.316, de 20 de julho de 2016, que dispõe sobre as carreiras dos servidores do MPU e do CNMP, mas não traz os títulos dos anexos, só os números –, ou simplesmente mencionam o anexo único com a indicação da própria lei, como é o caso da Lei Complementar nº 62, de 28 de dezembro de 1989, que estabelece normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação.
Nesse último caso, o ideal seria que o conteúdo do anexo tivesse sido especificado para registrar que traz os “coeficientes individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal no Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE)”. Inclusive, nada impede que isso venha a ocorrer, dada a possibilidade de que haja leis modificando estritamente os anexos. No caso da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 (Lei do Simples Nacional), por exemplo, já houve inúmeras modificações em seus anexos. A propósito, não custa recordar que o anexo pode ser objeto de veto por parte do presidente da República, nos termos do artigo 66, § 1º, da Constituição.
Em geral, leis que (re)estruturam carreiras ou instituem gratificações para servidores públicos costumam fazer muito uso dos anexos. Confiram-se, por exemplo, a Lei nº 11.890, de 24 de dezembro de 2008, em relação às carreiras de auditoria da Receita Federal e auditoria-fiscal do Trabalho, com 25 anexos contendo os cargos, as classes, os padrões e os valores dos vencimentos, ou a Lei nº 10.484, de 3 de julho de 2002, que dispõe sobre a criação da Gratificação de Desempenho de Atividade Técnica de Fiscalização Agropecuária (GDATF), que prevê os valores dos pontos no anexo.
Pode contrariar?
Até aqui, viram-se as práticas recomendadas pela boa técnica legislativa e alguns exemplos concretos. Se ficou parecendo que o conteúdo exposto interessa só aos encarregados de redigir as leis, é chegado o momento de responder à questão de interesse geral dos operadores do Direito: O que acontece se o anexo contrariar a parte articulada da lei? Desde logo, cumpre registrar que não se trata de um mero vício de técnica legislativa que não teria maiores repercussões jurídicas.
O melhor exemplo para ilustrar essa discussão é o papel cumprido pelo anexo da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o imposto sobre serviços (ISS) de competência dos municípios e do Distrito Federal. Como sabido, essa lei traz uma lista anexa contendo os serviços cuja prestação constitui fato gerador do ISS. A esse anexo não é dado inovar, dando amplitude maior ao conceito jurídico de serviço, listando como fato gerador do ISS, por exemplo, locação de bens móveis (contrato cujo objeto é uma obrigação de dar uma coisa, não uma obrigação de fazer).
Em um caso assim, se o anexo lista, não um serviço, mas algo que resolveu chamar de serviço sem sê-lo, contraria tanto o artigo 110 do CTN (“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias”), quanto a norma do artigo 156, inciso III, da Constituição, que autoriza os municípios a instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não sobre o que quiserem chamar de serviço.
Precisamente nesse vício incorreu o item 79 do Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, com redação dada pela Lei Complementar nº 56, de 1987 – que trazia a lista de serviços vigente anteriormente à LC 116/2003 – em relação ao texto constitucional anterior à atual Constituição de 1988. Por isso, esse item do anexo – atenção, do anexo, e não da parte articulada – que continha a lista de serviços foi declarado inconstitucional no RE 116.121. Alguns anos depois, o STF acabou aprovando a Súmula Vinculante nº 31 para reiterar o mesmo: é inconstitucional a incidência do ISS sobre operações de locação de bens móveis. Como se vê, bem entendida a discussão, trata-se de controvérsia sobre o alcance de um anexo, que não pode ser utilizado para subverter previsões normativas a que está adstrito.
Sendo o anexo parte integrante da lei, como já explicado, se há contradição entre o anexo e uma disposição legal, dá-se o mesmo tipo de problema observado quando uma lei contém artigos contraditórios entre si: uma antinomia. Essas antinomias normativas precisaram ser corrigidas a partir dos tradicionais critérios cronológico (Lex posterior derogat legi priori), de especialidade (Lex specialis derogat legi generali) ou hierárquico (Lex superior derogat legi inferiori) ou, ainda, com uma reforma legislativa.
Entretanto, estando a contradição entre o anexo e a parte articulada na mesma lei, a aplicação dos critérios fica prejudicada, pois todos os critérios mencionados empatam. Então, a solução terá que se valer da interpretação jurídica, que precisará usar outros cânones, conforme o caso concreto (por exemplo, a intenção do legislador ou a prevalência das partes que contenham previsões normativas em detrimento do anexo que contém apenas elementos de integração, como tabelas).
O que não é possível é achar que não tem problema o anexo contrariar as disposições normativas que derivam do texto da parte dispositiva ou articulada da própria lei. O anexo não basta em si mesmo, deve harmonia e coerência ao corpo da lei.
Mais um exemplo ajuda a ilustrar a questão. Tome-se a Lei nº 4.169, de 4 de dezembro de 1962, que oficializa as convenções Braille para uso na escrita e leitura dos cegos e o Código de Contrações e Abreviaturas Braille. Quem abrir seu anexo, lerá precisamente o alfabeto Braille. Imagine-se, hipoteticamente, que em vez dos blocos retangulares com pontinhos sinalizadores de saliência, o anexo trouxesse representações gráficas de partituras com cinco linhas, uma clave de sol ou de fá e notas musicais. Em um caso assim, é claro que o anexo seria ilegal.
A essa altura, pelas características já explicadas dos anexos das leis, é possível perceber o quão tentador pode ser pretender “esconder” algo no anexo ou eventualmente utilizá-lo extrapolando sua razão de ser, em dissonância com a disposição normativa do corpo do texto da lei. Empregado dessa forma, o anexo viola não só a técnica legislativa, mas a própria norma que visa a complementar e também a segurança jurídica. A lição é a seguinte: não é porque o anexo não é obrigatório nas leis que se pode usar um anexo livremente. Do contrário, ruiria toda a teoria da norma e do ordenamento jurídico. Dependendo do caso, esse vício de técnica legislativa dos anexos pode, sim, redundar no seu afastamento, no reconhecimento da sua ilegalidade ou mesmo inconstitucionalidade.
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