Crédito marginal e contratos artificiais: exclusão, omissão do Estado e abuso do poder econômico
28 de maio de 2025, 8h00
A sociedade brasileira convive há tempos com o “crédito marginal” e suas nocivas repercussões, especialmente de exclusão social, muito embora o sistema jurídico abrigue instrumentos para necessária imunização, ainda que sem resultados exitosos. Torna-se, portanto, crucial entender como as dinâmicas desses créditos influenciam a estrutura social e abalam núcleos familiares e a vida digna dos consumidores [1].
O conceito de “crédito marginal” colhe-se de padrões de significação que são experimentados e sofridos pela sociedade e, neste sentido, pode ser associado à noção de instituto deslegitimado, injusto, abusivo e até criminoso. Partindo-se, porém, da noção de conceito pelos elementos essenciais do “objeto” [2], “crédito marginal” é aquele não atende os pressupostos de existência (autonomia privada do consumidor)[3] ou requisitos legais (informação, esclarecimento, livre tomada de decisão, respeito à higidez mental etc.) ofendendo a ordem pública [4], caracterizando-se como nulo, sem prejuízo de abalo à função social que deveria cumprir.
Com efeito, envolve não apenas a atividade de oferta (1) de “crédito não responsável” – que destoa do CDC (artigo 54-B, 54-C e 54-D), não decorrendo da legitimidade procedimental pavimentada, enformada e informada pela boa-fé objetiva qualificada [5]– como ainda corresponde aqueles créditos originados da prática de tipos penais fraudulentos (2); desprovidos de consentimento esclarecido (3); celebrados com pessoas reconhecidamente com déficit severo cognitivo (4); impulsionados por e-commerce em detrimento da privacidade mental e tomada legítima de decisão pelo consumidor (5); e proveniente de ludopatia por apostas e jogos virtuais (6).
Ao seu tempo, os créditos marginais são instrumentalizados via “contratos artificiais” de empréstimos, aqueles que simulam relação obrigacional “aparentemente” voltada a atender as necessidades mais básicas de pessoas vulneráveis e que, no entanto, ao invés de garantirem a inclusão, aprofundam desigualdades, solapando a dignidade do consumidor. Têm um papel “estruturante” para a consecução do crédito marginal: conferir suposta legitimidade, com vistas a persuadir futura disputa judicial.
São ‘contratos artificiais’, tanto porque celebrados digitalmente por devices com enorme distanciamento presencial entre as partes e sem os deveres de oportunização (CDC, artigo 46) ao consumidor, quanto porque ilesos da sindicabilidade jurídica, sem controle oficial, abusando do vulnerável, em grande parte sem as informações mais básicas, gerando obrigações indesejadas e créditos não solicitados, através de biometria facial colhida sem autorização ou não explicada. Há, pois, uma relação de dependência ou de necessariedade entre créditos marginais (ilegítimos) e contratos artificiais (dissimulados) [6].
Observe que tais créditos e contratos, caracterizados pela clandestinidade, não são gerados tão somente por grupos voltados à criminalidade reconhecidamente organizada, já que muitos dos créditos marginais, objetos de investigação dos Ministérios Públicos e demais órgãos de controle, têm origem pela atividade de instituições financeiras e, em alguns casos, sob o apoio de instituições públicas, especialmente previdenciárias.
Soma-se à compreensão de “crédito marginal”, a ausência de “deveres de proteção”’ suficientes por parte do Estado [7], a quem cabe regular e supervisionar as práticas de empréstimos financeiros quando há entre as partes contratantes a presença de vulneráveis (contratos de consumo, especialmente). Analisadas em perspectiva crítica, as iniciativas de crédito, impulsionadas por instituições financeiras que priorizam o lucro, podem contribuir para o endividamento ou superendividamento, via de consequência, a exclusão.

A função do Estado, nesse sentido, não se limita à mera mediação. Deve atuar de modo responsivo, criando soluções que garantam não apenas o o ao “crédito responsável”, mas também a efetividade da educação financeira e a proteção dos direitos fundamentais do consumidor, sem prejuízo de apurar a patologia interna de suas próprias estruturas (entranhas) funcionais: dados pessoais eventualmente vazados; inadimplemento no cumprimento de deveres de cuidado, proteção e solidariedade; atendimento prioritário ao poder econômico em detrimento, por exemplo, aos aposentados e pensionistas. É esse o papel do Estado na legalidade constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXXII), até hoje exercido com enormes lacunas éticas.
Vale dizer, se interseção entre política social e crédito marginal revela, portanto, a necessidade de abordagem integrada, transdisciplinar, que considere as múltiplas facetas da exclusão, incluindo o à educação, saúde, mínimo existencial, respeito aos estipêndios e prevenção ao superendividamento, ao seu tempo, a interconexão entre crédito marginal e exclusão social, a pelo questionamento da efetividade das políticas públicas existentes, até hoje muito tímidas (insuficientes), senão contraditórias.
Salvante a Lei 14.181/21 – que atualizou o CDC, introduzindo o conceito e as boas práticas para o crédito responsável e o tratamento ao superendividado –, as regulações subsequentes (especialmente os Decretos nº 11.150/22 e 11.567/23) são por demais obsequiosas, parciais e flexíveis aos fornecedores de crédito. Cabe observar que lei do superendividamento não tem natureza de “norma simbólica” [8]. Ao contrário, é fruto de pesquisa, resistência, mobilização e emancipação. Opõe-se às práticas do mercado indolente de crédito marginal, esse último que se julga impenetrável pelos valores fundamentais do constitucionalismo democrático.
Enquanto as regulações são capturadas pelo poder econômico, o Estado (não importa o governo) é parceiro do mercado, autorizando, inclusive, todos os tipos de crédito às populações mais humildes, inclusive aqueles destinados aos hipervulneráveis (vale o exemplo do BPC) [9].
O crédito responsável é sinônimo não só de sobrevivência e preservação econômica, mas também de dignidade e empoderamento social, o que ainda não se fez (e não se faz) presente nas práticas dos fornecedores de crédito. E, justamente nesse ponto, os créditos lançados no mercado para os vulneráveis não se entrelaçam com a noção de justiça social, erradicação da pobreza e prevenção à exclusão social: são créditos marginais.
Frise que embora a Lei 14.181/21 represente avanço significativo na proteção do consumidor de crédito, a respectiva efetividade depende da implementação rigorosa das disposições nela contida e da adesão das instituições financeiras aos deveres jurídicos introduzidos. A vigilância do Estado, deveras, torna-se componente essencial na mitigação do risco de exclusão social, indicando necessária mudança de paradigmas no trato das políticas de crédito. Com a lei, o que se espera não é apenas diminuição das taxas de inadimplência, mas também a promoção de reflexão mais ampla sobre a integridade das instituições financeiras e sua contribuição para a economia mais justa e equitativa, que leve em consideração o bem-estar social e a sustentabilidade financeira dos cidadãos.
Consequências
Pois bem. A constante prática de créditos marginais é indutora de consequências consideráveis no âmbito da sociedade. Cabe destacar como principais externalidades: exclusão social; aumento da vulnerabilidade de grupos, núcleos familiares e pessoas naturais em virtude do superendividamento; e concentração do poder econômico. Vejamos.
Em primeiro, o fenômeno do crédito marginal está intrinsecamente ligado ao aumento da exclusão social, dado que sua funcionalidade se baseia na ‘segurança jurídica’ exclusiva do fornecedor do empréstimo. Como detentor do poder econômico e predisponente exclusivo do ‘contrato artificial’, estabelece regras, tecnologias, obrigações e deveres com ampla assimetria diante o destinatário final. Daí a “vontade subalterna” [10] ser ignorada e dispensável. Por isso, as preferências pelos créditos marginais consignados, que já na “fonte” (folha de pagamento) anulam a força econômica dos vulneráveis, sejam aposentados, pensionistas, beneficiários de políticas públicas, servidores do poder público e trabalhadores celetistas. Milhões são devedores, sem saber a origem do débito e sem ter o ao empréstimo, o que impacta no o aos direitos fundamentais mais básicos e representativos do mínimo existencial.
A exclusão social é “madrasta” das oportunidades de investimentos pessoais e familiares em educação, saúde, habitação, alimentação e desenvolvimento profissional, uma vez que a falta de recursos financeiros anula as habilidades e o potencial das pessoas. Quando a população não consegue participar do sistema econômico formal, a mobilidade social se torna quase impossível, refletindo no índice de desenvolvimento humano.
Em segundo, a relação entre superendividamento e vulnerabilidade econômica se expressa de maneira acentuada nas sociedades contemporâneas onde o crédito marginal é a praxe cotidiana. Desprovidos de boas práticas e educação financeira, os créditos marginais potencializam a desigualdade social e desnudam as falhas de mercado. A ascensão do crédito marginal, frequentemente direcionado a pessoas com menor capacidade de solvência e diminuta possibilidade de autodefesa, resulta em verdadeiro ciclo vicioso de endividamento que não apenas compromete o presente financeiro do devedor, mas também ameaça seu futuro econômico.
A incapacidade de honrar compromissos financeiros (sequer anuídos) resulta em constantes cobranças, incluindo a pressão por encargos altos que, em muitos casos, se tornam impagáveis. Tal situação desencadeia não apenas a perda de bens e recursos, mas também a estigmatização social daqueles que são incapazes de se libertar das garras do crédito excessivo. Dessa forma, o superendividamento se torna questão de cidadania, onde as pessoas se veem marginalizadas economicamente e excluídas do pleno exercício de seus direitos [11].
A vulnerabilidade econômica se torna consequência direta dessa dinâmica: ao estarem vinculados a dívidas indesejadas e desproporcionais, as pessoas adentram em estado de instabilidade que dificulta a manutenção da vida digna, privando-as das oportunidades. Não vivem, mas “sobrevivem” diante aos “sacrifícios” desumanos [12].
Em terceiro, a concentração de poder econômico, particularmente inextricável no contexto das instituições financeiras e suas práticas, se acentua no cenário de créditos marginais. Essa concentração se manifesta por meio de rede complexa de dominação em que poucos agentes acumulam quantidade desproporcional de recursos, influenciando diretamente as dinâmicas de crédito e, consequentemente, a exclusão social. As instituições financeiras, ao ditarem regras do o ao crédito, exercem controle significativo sobre o fluxo de capital, muitas vezes favorecendo grandes corporações em detrimento de pessoas naturais e núcleos familiares.
E esse ponto demanda maior esforço: a concentração de poder não é resultado exclusivo do mercado, mas está intimamente ligada à omissão do Estado e suas políticas econômicas. O papel das regulações financeiras, que deveria equilibrar a competição e garantir o o equitativo ao crédito, frequentemente falha em sua execução, favorecendo em grande medida os interesses dos grandes grupos econômicos.
Os créditos marginais desafiam declaração de nulidade por ofensa à ordem pública contratual (não só legal, mas também constitucional e supralegal). Cabendo, em conjunto, a restituição em dobro a favor do consumidor daquilo que foi pago (CDC, artigo 42, parágrafo único), danos extrapatrimoniais (CC, artigo 927, c/c CDC, artigo 6º, inciso VI), assim como perda dos valores eventualmente gastos pelos consumidores em razão de crédito não autorizado como prática abusiva, que leva à condição de amostra grátis (CDC, artigo 39, parágrafo único).
[1] Situando apenas quanto a riscos, veja: LANE, SYLVIA. Sub-marginal credit risks: The comparative profiles and their implications. In: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/j.1745-6606.1971.tb00488.x. Consultado em 24-05-2025.
[2] VILANOVA, Lourival. Sobre o conceito do direito. Recife: Imprensa Oficial, 1947.
[3] LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2003. p. 25. Especifica que: “O respeito à autonomia privada ite limites e exceções. O primeiro limite se refere a uma série de dispositivos destinados a garantir que efetivamente se expresse a autonomia privada; o legislador se ocupa de que exista um consentimento pleno, uma garantia de que o processo de formação da ‘lei entre as partes’ se ajuste ao Direito”
[4] Ver por todos: GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: les obligations: principes et caractères essentiels, ordre public, consentement, objet, cause, théorie générale des nullités. Vol. 1. Paris: L.G.D.J, 1980.
[5] MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade digital de crédito e responsabilidade civil: novos direitos. In: /2022-fev-23/garantias-consumo-sociedade-digital-credito-responsabilidade-civil/, o em 24-05-2025.
[6] Chamamos de contratos artificiais com fundamento nas lições de Stefano Rodotà: El derecho a tener derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 154. Observe: “la invasion de la artificialidad científica y tecnológica ponde totalmente en cuestión la artificialidad jurídica del sujeto”.
[7] SILVA, Jorge Pereira. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015.
[8] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 33. Explicita: “Nesses casos, os grupos que se encontram envolvidos nos debates ou lutas pela prevalência de determinados valores veem a ‘vitória legislativa’ como uma forma de reconhecimento da ‘superioridade’ ou predominância social de sua concepção valorativa, sendo-lhes secundária a eficácia normativa da respectiva lei”.
[9] MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keila Pacheco. As novas regras do crédito consignado e o direito fundamental à previdência social: riscos, vulnerabilidade e superendividamento. In: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/depeso/373958/as-novas-regras-do-credito-consignado-e-o-direito-a-previdencia-social, com o em 24-05-2025.
[10] SPIVAK, Gayatri Chakrabarty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2018.
[11] MENGER, Anton. El derecho civil y los pobres. Trad. Adolfo Posada. Granada: Editorial Comares, 1998.
[12] LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tomo 1. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958.
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