Opinião

Por que os créditos superprivilegiados merecem atenção

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28 de maio de 2025, 21h30

A recuperação de crédito no Brasil é um dos maiores gargalos do Poder Judiciário e um problema que tira o sono dos credores. Afinal, a dificuldade na execução forçada das dívidas não decorre apenas da ineficiência jurisdicional, mas também, e principalmente, da ocultação e inexistência de patrimônio em nome dos devedores.

Para tentar evitar parte desses problemas, a alternativa aos credores é a vinculação de garantia aos negócios realizados — seja de ordem pessoal, como é o caso da fiança, ou de natureza real, vinculada a imóvel, como é o caso da hipoteca [1].

A garantia hipotecária tem dupla finalidade: assegurar o conhecimento de terceiros sobre o débito vinculado ao imóvel e, mais importante, garantir a preferência do crédito hipotecário sobre outras potenciais dívidas do devedor.

Portanto, a hipoteca acautela que o credor terá preferência sobre outras dívidas do devedor (anterioridade) e altera a natureza do crédito, que deixa de ser quirografário (comum) e a a ser privilegiado.

Dessa forma, em caso de inadimplemento, a hipoteca garantirá que o imóvel hipotecado será expropriado para satisfazer o crédito hipotecário antes de qualquer outro débito do devedor, certo? Nem sempre.

Obstáculo invisível

O problema que enfraquece a hipoteca está diretamente relacionado com os chamados créditos superprivilegiados, os quais fazem justiça ao seu nome, por conta de seu poder frente aos créditos de outra natureza.

De acordo com o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) [2], confirmado pelos demais tribunais [3], os créditos que ostentam a qualidade de superprivilegiados são aqueles de natureza trabalhista (verba alimentar [4]) e tributários, que estão nessa categoria por conta de sua relevância social [5].

Na prática, isso significa que esses créditos terão prioridade absoluta sobre as outras dívidas do devedor, independentemente da anterioridade da hipoteca sobre a dívida, posição que tem por consequência o esvaziamento da garantia.

Spacca

Nesse contexto, a jurisprudência evidencia que, “existindo pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem, deve-se verificar a existência das preferências que, na ordem, são: créditos trabalhistas, fiscais e aqueles decorrentes de direito real de garantia” [6].

Em outras palavras, coexistindo vários débitos sobre o mesmo imóvel, o credor hipotecário somente receberá após a quitação dos créditos superprivilegiados.

Mais preocupante, ainda, é que essa posição estende seus efeitos para reconhecer que a preferência dos créditos superprivilegiados não depende da realização de penhora [7] e, no caso dos créditos tributários, nem mesmo é necessário que exista ação de execução [8].

Portanto, mesmo que a hipoteca (ou penhora anterior [9]) tenha sido regularmente registrada sobre o imóvel, sem qualquer anotação prévia de outras dívidas vinculadas a créditos superprivilegiados — ou, na verdade, antes mesmo da existência dessas dívidas —, estes terão preferência no recebimento do produto da expropriação judicial do bem.

Ilusão da segurança

Embora esse cenário não seja uma novidade, é fato que o entendimento contraria o senso comum (que, por vezes, vê na hipoteca a segurança do adimplemento) e, por conta disso, torna-se questão inquietante aos credores hipotecários.

O que está em jogo não é apenas a mitigação da garantia, mas também a frustração de expectativa legítima do credor de boa-fé que, mesmo adotando todas as cautelas cabíveis, eventualmente poderá ser agraciado com a notícia de que seu crédito, dito “privilegiado”, foi esvaziado e está no “final da fila” de pagamentos.

O risco é concreto porque, quando uma empresa entra em crise financeira, é natural que essa e a inadimplir todas as espécies de obrigações — principalmente, aquelas relacionadas com débitos fiscais e trabalhistas, que representam a maior parte da carga de despesas vinculadas à atividade empresarial.

A lição que fica, portanto, é ter a consciência da fragilidade da hipoteca, que não é uma garantia de pagamento da dívida, e, mais do que isso, a importância de sempre efetuar pesquisa prévia sobre a situação do devedor, providência que auxiliará para evitar surpresas desagradáveis e a perda de tempo e dinheiro.

O que você, credor, pode fazer?

Nesse cenário, sempre que a realidade permitir, a constituição de alienação fiduciária como garantia vem como a melhor alternativa para trazer maior segurança aos credores.

Afinal, com a constituição de alienação fiduciária, a propriedade resolúvel do imóvel é transferida ao credor desde a formalização do negócio, restando apenas a posse direta do bem com o devedor.

Isso significa que, até o pagamento do débito, o credor tem a segurança de que o bem vinculado não poderá ser objeto de penhora de outras dívidas [10] — inclusive, daquelas relacionadas com os créditos superprivilegiados —, já que o imóvel não integra mais o patrimônio do devedor.

Essa condição irradia efeitos até mesmo para excluir o credor fiduciário [11] dos efeitos de eventual recuperação judicial do devedor [12], fato que, além de garantir a preferência, também afasta o risco de deságio e parcelamento no pagamento do crédito.

A “cereja do bolo” é que a alienação fiduciária retira a necessidade de intervenção do Poder Judiciário na execução da garantia, vez que o procedimento de expropriação do bem será exclusivamente extrajudicial, por meio do Registo de Imóveis — ou seja, mais rápido, barato e eficaz.

E tudo isso basicamente com o mesmo custo financeiro e operacional da hipoteca, visto que, de igual forma, a alienação fiduciária pode ser realizada por instrumento particular (sem escritura pública) e sua validade apenas dependerá de seu registro na matrícula do imóvel.

Dessa forma, sendo a insegurança na recuperação de crédito uma realidade no Brasil, conhecer os riscos e adotar os instrumentos mais eficazes na garantia dos negócios, contando com prévia análise jurídica especializada, é essencial aos credores e faz toda a diferença entre o pagamento do crédito ou amargar (mais uma) execução frustrada no Poder Judiciário.

 


[1] A despeito da existência de outras espécies de garantia real, a prática mostra que a hipoteca é a favorita dos credores particulares, sendo as demais (como penhor e anticrese) pouco utilizadas.

[2] REsp n. 594.491/RS, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 2/6/2005, DJ de 8/8/2005, p. 258

[3] Apenas a título de exemplo: TJ-PR 00748321720228160000 Curitiba, Relator.: Shiroshi Yendo, Data de Julgamento: 13/05/2023, 15ª Câmara Cível, Data de Publicação: 15/05/2023

[4] Aqui, portanto, também incluídos os honorários advocatícios – conforme referendado pelo STF no recente julgamento do Tema 1220, realizado em março de 2025.

[5] Já que serão utilizados para promover a subsistência do credor e a manutenção do Estado, respectivamente.

[6] STJ – REsp: 1278545 MG 2011/0141726-7, Relator.: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 02/08/2016, T3 – 3ª TURMA, Data de Publicação: DJe 16/11/2016

[7] REsp n. 1.987.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/5/2022, DJe de 5/5/2022.

[8] REsp n. 1.998.763/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 4/10/2023

[9] Embora mais sensível ao credor hipotecário, a sombra dos créditos superprivilegiados também alcança as execuções de créditos sem preferência (quirografários) – os quais, ainda que tenham sido os primeiros a penhorar imóvel, podem ser preteridos na ordem de pagamento até o levantamento do produto da alienação do bem.

[10] Não se desconhece a recente posição da Segunda Seção do STJ sobre a possibilidade de penhora de imóvel alienado fiduciariamente por dívidas de condomínio – e que esses créditos podem resultar na penhora do bem em garantia. Conduto, essa condição não prejudica o fato de que a alienação fiduciária é uma garantia mais segura do que a hipoteca.

[11] Aquele que detém crédito vinculado à alienação fiduciária.

[12] Por disposição legal expressa, conforme art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05.

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