Subtração internacional de crianças e violência doméstica em pauta: o que podemos esperar das ADIs?
28 de maio de 2025, 15h20
Nesta quarta-feira (28/5), o Supremo Tribunal Federal deve analisar as Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIs) nºs 4.245 e 7.686, que questionam dispositivos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças de 1980 (Convenção de Haia de 1980).

De maneira geral, indagam a obrigação de retorno da criança em situações que comprovam a violência doméstica e sua compatibilização e interpretação conforme os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1o, III, da Constituição), da prevalência dos direitos humanos (artigo 4o, II, CF), da garantia pelo Estado de mecanismos para coibir a violência no âmbito de relações familiares (artigo 226, §8o, CF) e do princípio da prioridade absoluta da criança (artigo 227, caput, CF).
Trata-se de uma demanda coletiva que busca evidenciar a necessidade de uma rediscussão da aplicação da Convenção da Haia de 1980 no sistema brasileiro. Tecerei alguns comentários para melhor esclarecer os pontos que evidenciam esse debate e ao mesmo tempo demarco algumas expectativas para esse julgamento.
Primeiro, há de se ponderar que a Convenção da Haia de 1980 possui uma lógica própria, no que tange à indicação de caminhos decisórios que podem ser utilizados por autoridades istrativas e judiciárias ao se depararem com um caso de subtração internacional de crianças. A Convenção orienta, como premissa inicial, que a criança deve retornar ao Estado de residência habitual para que lá seja regulado o exercício dos direitos de guarda e/ou visitas infringidos. Mas, ao mesmo tempo, também orienta, a possibilidade de a criança permanecer no país de refúgio e restabelecer os direitos violados, conforme previsão nas exceções à obrigação de retorno, especificamente artigos 12, 13 e 20 da Convenção.
Nessa linha, a estruturação de ambos os caminhos no plano convencional foi pensada a partir do parâmetro do Princípio do Superior Interesse da Criança, que serve como baliza interpretativa para identificar no caso concreto qual a melhor escolha, diante de um cenário de ruptura familiar, via subtração internacional de crianças.
Proteção aos direitos da criança
Dito isso, destacamos que a Convenção deixa claro que visa a proteger primordialmente os direitos da criança numa subtração internacional. No entanto, isso não significa que ela possa tolerar as violações de direitos humanos decorrentes desse ato. É o caso das violações dos direitos das mulheres, mães e migrantes vítimas de violência doméstica que atualmente são maioria na identificação de um perfil subtrator e que, perante a interpretação rígida da Convenção, não possuem um amparo.
É o que vêm ocorrendo em muitos países, inclusive no Brasil. Vivências com um percurso marcado pela violência doméstica, em que mulheres, mães e migrantes materializam o afastamento físico do genitor e de uma relação abusiva, deslocando a criança do seu Estado de residência, se confrontam com o silenciamento convencional. O artigo 13, (i) ‘b’ da Convenção é um ponto central do debate. Ele afasta a obrigação de retorno da criança ao Estado de residência habitual, uma vez comprovado que, no seu retorno, “existe um risco grave de a criança, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”. Nesse sentido, o seu teor se aproxima do tema violência doméstica, uma vez percebido como aberto e sem objetividade.

A literatura jurídica é bastante divergente quanto à sua exceção, extensão ou exclusão na Convenção. Todavia, darei respaldo para o quadro que a reconhece como um risco grave e também como uma situação intolerável por si só. Bem, ainda que se siga essa linha de entendimento, as dificuldades de provar esses cenários tornam o seu recurso extremamente complexo e difícil quando confrontado num contexto externo e comparado. Ainda, as decisões judiciais no Brasil têm considerado os efeitos da violência unicamente em face da criança, invisibilizando a vítima mãe dessa relação e também reduzindo o debate quanto aos impactos de um ambiente de violências para a saúde mental e psíquica da criança.
Novo posicionamento para violência doméstica
Vale relembrar o caso da mãe Raquel Cantarelli, em que, reconhecida como vítima de violência doméstica e ante a denúncia de abuso sexual em face de uma filha, não obstaculizaram que a autoridade judiciária brasileira determinasse o retorno das crianças para Irlanda. Portanto, diante de um cenário simbólico e relevante que permite a revisão da aplicação da Convenção da Haia de 1980 na nossa Suprema Corte, é central que se discuta um novo posicionamento para os casos em que, comprovada a prática da violência doméstica, se institua novos protocolos para que o retorno imediato ou a repatriação, neste caso, perca a força normativa que se propõe alcançar e, sobretudo, dialogue com a prevalência dos direitos humanos das pessoas envolvidas na relação privada.
Essa perspectiva traz visibilidade para o tema da violência doméstica em âmbito transnacional, bem como fomenta o reconhecimento de um viés interseccional de gênero na subtração internacional de crianças, o que nos conduz a ampliar a proteção normativa para acolher os sujeitos em situações de vulnerabilidade social. Isso demostra nossas falhas atuais e revindica, necessariamente, um papel ativo do direito internacional de família e dos Estados que se propõem a cooperar para proteger primordialmente, os direitos das crianças, mas não excluir e/ou restringir os direitos das mulheres na relação transnacional marcada por violências.
Princípio do superior interesse da criança
Nessa linha, estima-se que o julgamento reconheça as dimensões sociojurídicas da subtração internacional de crianças para que seja possível questionar decisões que são interpretadas de maneira restritiva e incompatíveis com os nossos preceitos constitucionais, que sedimentam a estruturação e cultura jurídica da dignidade da pessoa humana. Assim, estamos diante de um cenário que precisa ampliar o modelo de interpretação do artigo 13, (I) ‘b’ para que a violência doméstica seja um tema reconhecido nos casos de subtração internacional, conduzindo novos movimentos aplicativos no sistema brasileiro.
Por via de consequência, espera-se também, dar os primeiros os num debate que inclua a proteção jurídica convencional para mulheres, mães subtratoras, vítimas de violências, materializando o princípio do superior interesse da criança e o direito de convivência da criança com ambos os pais. Vivências com violências ou com suspeita de violências não materializam, em nenhum contexto, o superior interesse da criança. Assim, ante desenvolvimento do arcabouço jurídico brasileiro de proteção dos direitos das mulheres, o Brasil aparece no cenário global como um protagonista para mudanças em um contexto tão duro e opressor.
O julgamento das ADIs poderá consolidar a demanda por uma rediscussão e atualização da aplicação da Convenção da Haia de 1980 e estruturar novos paradigmas para o superior interesse da criança. Ampliar os vieses de análise, considerando tanto aspectos teórico-práticos, quanto aspectos empíricos que revelam a subtração internacional de crianças na atualidade é medida que se impõe junto da tecnicidade do direito internacional. As dificuldades no confronto com outras culturas jurídicas são imensas, mas dar os primeiros os com o propósito de rediscussão do estado atual é um ponto fundamental para dar luz a mais um espaço social que se desresponsabiliza por violações dos direitos das mulheres e das crianças. O horizonte não está nítido, mas o presente reverbera múltiplas vozes que buscam mudanças.
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