Uma doação confiscatória na reforma do Código Civil?
28 de maio de 2025, 6h30
Continuando a análise das propostas da reforma do Código Civil para a doação [1], o agora a mais algumas normas. Neste artigo, quero chamar a atenção para três problemas estritamente jurídico-dogmáticos: o incorreto uso da categoria jurídica da ineficácia na doação inoficiosa, uma insólita proposta de doação confiscatória e a imprecisão do termo ajuda patrimonial nas hipóteses de revogação da doação.
Doação inoficiosa
O artigo 549 foi completamente alterado. A doação inoficiosa segue vedada, mas o conceito que instrumentaliza essa proibição foi modificado. O caput atual dispõe que “[n]ula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberdade, poderia dispor em testamento”.
A reforma propõe uma alteração no início desse artigo, que rezaria: “[s]alvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação (…)”. Diretamente ligada a essa alteração está a inclusão de um § 3º, cuja redação proposta é a seguinte: “[n]ão sendo proposta a ação de reconhecimento da ineficácia no prazo de cinco anos, a doação considerar-se-á eficaz desde a data em que foi realizada”. Isto é, trocou-se a noção de nulidade pela de ineficácia. Como o nulo jamais poderia convalescer ex artigo 169, CC, a categoria da ineficácia deve ter parecido à comissão um instrumento apto a instrumentalizar esse resultado.
No entanto, os conceitos dogmáticos não podem ser instrumentalizados de tal maneira. Se a finalidade era estabelecer um limite temporal, quadraria melhor utilizar a noção de anulabilidade, prevendo-se ou a aplicação do prazo decadencial geral, ou a criação de prazo específico. De fato, as anulabilidades têm de ser alegadas dentro de determinado prazo, sob pena de convalidação.
Já o regime da ineficácia é muito distinto e não tem, entre seus princípios, a noção de aquisição geral de eficácia pelo decurso do tempo. A noção mesma de uma ineficácia cuja declaração se sujeita a um prazo causa estranheza: não se estaria próximo a uma verdadeira desconstituição? A ineficácia se converteria num direito formativo extintivo?

De fato, a ineficácia é incompatível com a situação. Como regra geral, a ineficácia produz-se inter partes, de modo que, beneficiado pela ineficácia seria apenas o autor da ação declaratória: trata-se de situação semelhante à da fraude à execução, cujo reconhecimento, importando em ineficácia, não faz com o que bem retorne ao patrimônio do executado, mas apenas declara a ineficácia da disposição em face de determinado credor.
Esse resultado seria plenamente insatisfatório por duas razões. Em primeiro lugar, privilegiaria um herdeiro em detrimento de outro, desequilibrando os quinhões. Em segundo lugar, constituiria previsão arriscada para os credores. Afinal, “[s]e, somando-se ao que deixou o falecido o em que importaram as doações, há menos do que a soma das dívidas, legitimados ativos também são os credores, uma vez que no Código Civil [de 1916], artigo 1.176, se concebeu a regra jurídica como de nulidade” [2]. Esse esclarecimento de Pontes de Miranda é fundamental: a nulidade, como impede – perante todos – que o bem saia juridicamente do patrimônio do doador, é a categoria correta para tutelar não apenas o conjunto de herdeiros, mas também terceiros credores que eventualmente tenham de declarar a nulidade parcial da doação inoficiosa. É preciso ter extremo cuidado ao trocar categorias conceituais, pois nem todos os resultados podem ser concebidos desde logo.
ando à aplicação prática de tal princípio, ela causa diversos problemas. Em primeiro lugar, antes da abertura da sucessão, a legitimação como herdeiro é mera expectativa de direito, podendo-se alterar a depender de quando sobrevier a morte para cada pessoa. Em verdade, não há herdeiro de pessoa viva: a legitimidade para suceder apura-se, em regra, no momento da abertura da sucessão. Assim, a legitimidade não seria verdadeiramente atribuída ao herdeiro, mas ao herdeiro presuntivo. A este caberia atuar em benefício dos herdeiros (efetivos) em geral, ainda não determinados; já sua inércia poderia também prejudicar outros herdeiros que, uma vez ado o prazo quinquenal, não teriam mais instrumento para questionar a doação.
O segundo problema prático está em apurar, durante a vida do doador, a inoficiosidade da doação: por vezes, nem mesmo o doador tem plena consciência do montante do seu patrimônio para avaliar a inoficiosidade. Imagine-se, então, que um herdeiro – e, de ordinário, em nítido conflito com o doador – teria de calcular o valor do patrimônio e provar a inoficiosidade em juízo. Considerando que grande parte da documentação dos bens que fazem parte do patrimônio não é pública, e que nem todos os bens permitem fácil estimação pecuniária, qual a probabilidade desse desenho institucional funcionar para além de patrimônios muito limitados, cujos bens sejam facilmente avaliáveis? É por isso que outras normas – como o artigo 550, CC, que trata da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice – fazem iniciar o prazo de anulabilidade após a dissolução da sociedade conjugal, o que abrange também a morte do autor da herança. Caso se aplicasse a anulabilidade ao caso, conviria ser este o termo inicial do prazo decadencial.
A reforma propõe ainda a inclusão dos §§ 1º e 2º. O § 1º receberia a seguinte redação: “[o] cálculo da parte a ser restituída considerará o valor nominal do excesso ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da restituição, ainda que o objeto da doação não tenha sido dinheiro”. Já o § 2º teria a seguinte redação: “[e]m casos de doações realizadas de forma sucessiva, o excesso levará em conta todas as liberalidades efetuadas”.
O § 2º traz norma jurídica interessante, pois resolve dúvidas práticas embasadas em estudos doutrinários anteriores [3]. Já o § 1º mostra alguns problemas. Em primeiro lugar, não é preciso explicitar a necessidade de correção monetária, uma vez que, sendo a pretensão aplicável ao caso a do enriquecimento injustificado [4], essa previsão está explícita no artigo 884, parte final, CC. Em segundo lugar, é evidente que a disposição deve se aplicar ainda que a doação não tenha dinheiro por objeto, uma vez que a estimação pecuniária é a forma de avaliação comum a todos os objetos patrimoniais por definição.

Mas há algo mais grave: ao regular o que deve ser devolvido, a norma proposta toma posição a respeito do objeto do enriquecimento injustificado, que não é matéria pacífica no direito brasileiro. No direito estrangeiro, questiona-se se o objeto da pretensão de enriquecimento deve consistir na atribuição realizada, na reversão do efetivo enriquecimento ao patrimônio do donatário, ou em critério misto [5]. Não me parece prudente tomar partido dessa questão sem estudos doutrinários prévios de maior envergadura.
Expropriação confiscatória
O artigo 553, caput, CC, prevê três espécies de doação com encargo, conforme o interesse em sua realização: (a) do doador; (b) de terceiro; (c) do público em geral. Em todos esses casos, pela regulação atual, o donatário é obrigado a cumprir o encargo.
A Reforma amplia essa norma, concedendo ao terceiro interessado e ao Ministério Público não apenas a possibilidade de exigir o cumprimento do encargo em benefício de terceiro e no interesse geral, respectivamente, mas também a de revogar a doação. Assim, prevê o novo § 2º: “[n]as duas últimas hipóteses do caput deste artigo, caberá a revogação da doação pelo Ministério Público ou pelo terceiro beneficiado, e o bem doado será revertido ao fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representante da comunidade, nos termos da lei”.
Essa hipótese causa estranhamento, pois o direito formativo de revogação da doação não é nem mesmo exercitável pelos herdeiros, a não ser que continuem na ação já ajuizada pelo doador (cf. artigo 560, CC) ou em caso de homicídio (artigo 561, CC). O que causa ainda maior estranhamento, porém, é tratar-se de uma revogação em benefício de terceiro, já que o objeto doado, após a revogação a pedido do terceiro ou do Ministério Público, não regressará ao patrimônio do doador ou de seus herdeiros, mas será destinado a um conselho estadual ou federal.
A técnica legislativa causa espécie: se o bem não voltará ao patrimônio do doador ou de seu sucessor, de revogação não se trata. Também não se trata de hipótese de desapropriação, na medida em que não há previsão de indenização, como exigido pelo artigo 5, XXIV, CF. Resta apenas categorizá-la como expropriação confiscatória, à semelhança do que se prevê no artigo 243, CF, medida extrema para o caso de bens imóveis utilizados para cultivo de plantas psicotrópicas ou de exploração de trabalho escravo.
Existem, de fato, hipóteses de expropriação na legislação ordinária, como o caso dos produtos e instrumentos do crime (artigo 91, ), mas tal espécie de confisco está implicitamente autorizada no artigo 5, XLV, CF. De fato, em ambas as espécies, a destinação é bastante clara: a União é a destinatária, ainda que, no artigo 243, CF, se explicite que ela deverá empregar os imóveis expropriados para fins de reforma agrária e de programas de habitação popular.
Já a reforma se limita a cometer a istração desses bens a um Conselho, cuja caracterização nem sequer se debuxa. Além disso, não se prevê a finalidade de emprego do produto da expropriação. É preciso observar, ainda, que as outras espécies de expropriação decorrem, direta ou indiretamente, de condenação criminal ou de situações criminosas; já o descumprimento do encargo constitui mero ilícito civil.
A categoria da revogação foi indevidamente manipulada neste artigo da reforma. A revogação constitui direito formativo extintivo, cuja titularidade é, a princípio, do doador. Exercendo-o, o doador retira a vox [6], isto é, a declaração jurídico-negocial, com eficácia ex tunc, e, com isso, perde-se a causa jurídica que sustentava a atribuição que ele fizera ao donatário. Por essa razão, não há uma relação de liquidação após a revogação: o que há é apenas enriquecimento injustificado ou pretensão reivindicatória.
E, no caso da primeira, não exatamente a condictio indebiti, mas a condictio ob causam finitam, já que a causa atributiva existiu, mas deixou de existir após a revogação. Como as condicções seguem a ordem da prestação [7] — realizada, por sua vez, entre doador e donatário – não há como o terceiro ser beneficiado: o bem doado tem de regressar ao patrimônio do doador, seja ele titularizado ainda pelo doador ou por seus herdeiros. Logo, uma revogação em benefício de terceiro é um contrassenso jurídico, que viola as regras estruturais de extinção dos negócios jurídicos, bem como as do enriquecimento injustificado. Na verdade, o termo “revogação” está aí apenas como eufemismo: o que há, de fato, é expropriação confiscatória.
Nesse sentido, o regime de execução do encargo torna-se excessivamente rigoroso com a reforma. Na hipótese do interesse ser de terceiro, a previsão carece mesmo de sentido: qual o interesse que o terceiro teria em pedir a revogação da doação, se o bem doado será destinado a um Conselho de que ele nem sequer participará? Haveria muitas outras formas, mais convenientes e eficazes, do que a previsão da expropriação confiscatória — que constitui, a bem da verdade, a forma mais radical para lidar com ilícitos relativos à propriedade. É o caso, por exemplo, da execução específica por meio de astreintes, da previsão de indenização por perdas e danos pela inexecução do encargo ou, mais radicalmente, da execução manu militari dos encargos em que tal espécie couber.
Em conclusão, as alterações propostas para o artigo 553, CC, geram uma espécie de expropriação confiscatória de constitucionalidade bastante duvidosa, sendo melhor manter a previsão genérica do atual artigo 562, CC, que concede ao doador a revogação da doação por inexecução do encargo. Além disso, o conceito de revogação não se presta à intenção da previsão normativa da reforma.
Ajuda patrimonial
O artigo 557, CC, prevê as hipóteses de revogação por ingratidão. A formulação legislativa atualmente vigente implica que as hipóteses de ingratidão são típicas. No entanto, a reforma prevê antepor ao texto atual a seguinte oração: “[e]ntre outras hipóteses de especial gravidade (…)”, explicitando que os fundamentos de revogação am a constar de rol aberto.
Essa alteração, por si só, já causa estranhamento. Se as razões para revogação são tão graves, como não é possível prevê-las? Aqui se nota mais um problemático aspecto da reforma: o excessivo papel concedido à concretização judicial das hipóteses normativas. Especialmente em casos graves, como a perda de um direito, é conveniente que as hipóteses venham elencadas na lei. Há também falta de sistematicidade: a alteração do inciso II — adicionando que a ofensa física pode se voltar “(…) contra algum membro de sua família” é desnecessária, pois prevista já no artigo 558, CC.
No entanto, o que causa maior estranheza é o conceito empregado no inciso IV: “ajuda patrimonial”. Este conceito visa a substituir a noção de “alimentos”. Aqui há mais um traço comum da Reforma: a substituição de um conceito dogmático com grande densidade por outro sem nenhuma densidade dogmática. Afinal, o que pode ser considerado “ajuda patrimonial”? Se o doador pedir dinheiro mutuado ao donatário, trata-se de ajuda patrimonial? E, se pedir para morar gratuitamente em imóvel desocupado do donatário, o comodato seria ajuda patrimonial?
Em rigor, a resposta positiva seria issível, na medida em que, em ambos os casos, o patrimônio do doador ou aumenta, ou deixa de se reduzir mesmo recebendo uma benesse. Parece, porém, excessivo permitir a revogação da doação diante da negativa do donatário em aceitar a conclusão de tais “contratos”, se é que assim poderiam ser chamados diante da ameaça de revogação em caso de negativa. Já o conceito de alimentos, forjado no binômio possibilidade e necessidade, é muito mais adequado, pois permite ponderar judiciosamente a situação de ambas as partes envolvidas. Com a troca, não apenas não se ganha nada, mas, em verdade, se perde a clareza conceitual.
[1] METTLACH, J. C. A doação na reforma do Código Civil. Conjur, 30/04/2025. o aqui.
[2] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 330.
[3] Quanto ao § 2º, cf. PONTES DE MIRANDA, F. C., Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 329.
[4] Emprego o termo enriquecimento injustificado como gênero, abrangendo os capítulos do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa, e trato-os como concretizações do mesmo instituto jurídico.
[5] Para um panorama geral, cf. REUTER, Dieter; MARTINEK, Michael. Ungerechtfertigte Bereicherung. Tübingen: Mohr, 1983, pp. 518-20.
[6] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 351.
[7] WIELING, H. J. Bereicherungsrecht. 3ª ed. Berlin: Springer, 2004, pp. 89. As razões são plenamente aplicáveis ao direito brasileiro.
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