Opinião

Da necessidade de precedentes nos casos de garantia do juízo na execução em recuperação judicial

Desde a promulgação da Lei nº 11.101/05 [1], identificou-se um aumento considerável do número de empresas em recuperação judicial no Brasil. Segundo o indicador de falência e recuperação judicial da Serasa Experian, o Brasil registrou em 2024 mais de 2 mil pedidos de recuperação judicial feito por empresas. Foi o maior índice contabilizado desde 2014 [2].

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A Lei da Reforma Trabalhista do ano de 2017 (Lei nº 13.467) apresentou um regramento especial, para empresas em condição de recuperação judicial, relacionada à obrigatoriedade de pagamento dos depósitos recursais, exigidos pela Justiça do Trabalho, quando da interposição dos recursos. O artigo 899, §10º, da CLT [3], liberou as empresas em recuperação judicial da obrigatoriedade do pagamento do depósito recursal, na fase de conhecimento

Com a entrada em vigor da reforma trabalhista, surgiu uma nova controvérsia quanto à exigência de garantia do juízo na fase de execução para empresas em recuperação judicial. Embora a reforma tenha expressamente dispensado essas empresas do recolhimento de depósitos recursais na fase de conhecimento, permaneceu silente quanto à fase de execução.

Diante dessa lacuna, parte da jurisprudência entende que a obrigação de garantia integral do juízo, prevista no artigo 884 da CLT, continua aplicável, uma vez que a norma não concedeu expressamente a dispensa. Em contraponto, há entendimento no sentido de que a ausência de previsão específica indica a impossibilidade de tal exigência, especialmente considerando que a execução dos créditos trabalhistas se dá no juízo universal da recuperação judicial, e não exclusivamente na Justiça do Trabalho.

Analogia

Nessa esteira, diversas empresas em recuperação judicial têm recorrido à analogia com o disposto no §10º do artigo 899 da CLT para justificar a dispensa da garantia do juízo na fase de execução. O argumento central é que, assim como foram desobrigadas do depósito recursal na fase de conhecimento, também não estariam sujeitas à exigência de garantia na execução. Além disso, fundamentam essa posição na impossibilidade de dispor livremente de seus bens, conforme previsto no artigo 6º, inciso III, da Lei 11.101/05, que estabelece a preservação do patrimônio da empresa durante o processo de soerguimento [4].

Nesse contexto, após pesquisa nos TRTs das 1ª (RJ), 2ª (SP), 5ª (BA) e 6ª (PE) Regiões, verificou-se a existência de decisões conflitantes. Alguns se posicionam no sentido de não itir essa analogia com o artigo 899, §10º da CLT, e exigem a garantia do juízo, para apreciar os recursos da fase de execução de empresas em condição de recuperação judicial, e outros acatam essa relação e permitem o prosseguimento e análise da matéria recursal. A análise dessas decisões permitiu identificar que não existe entendimento majoritário sobre o tema, pois mesmo em Turmas dentro dos mesmos tribunais há divergência sobre a exigência ou não da garantia do juízo.

Necessidade de precedentes

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A uniformização da jurisprudência desempenha papel fundamental na consolidação da segurança jurídica e na previsibilidade das decisões judiciais. A divergência de entendimentos entre os Tribunais Regionais impõe a necessidade de um posicionamento definitivo do TST, ainda mais no atual momento, em que se firmou como uma corte de precedentes.

A existência de decisões dissonantes entre diferentes TRTs, especialmente em sede de IRDR, demonstra a ausência de um entendimento consolidado sobre a exigibilidade da garantia do juízo para empresas em recuperação judicial. Essa falta de uniformidade gera insegurança jurídica tanto para as empresas que buscam a reestruturação financeira quanto para os credores trabalhistas, cujos direitos podem ser impactados pela incerteza jurisprudencial. Nesse cenário, a atuação do TST como instância uniformizadora mostra-se essencial para garantir a coerência do ordenamento jurídico e evitar a perpetuação de decisões contraditórias nos âmbitos regionais.

O TST, como corte de precedentes, tem a competência de consolidar entendimentos que orientem os Tribunais Regionais e as partes envolvidas nas lides trabalhistas, a fim de promover a segurança jurídica e a estabilidade das decisões. A criação de um precedente vinculante sobre a exigência de garantia do juízo contribuiria para o aprimoramento da previsibilidade das decisões judiciais, evitando tratamentos desiguais em casos idênticos e resguardando a efetividade do princípio da proteção ao crédito trabalhista, sem desconsiderar a realidade econômica das empresas em crise.

Divergências

O TRT da 1ª Região (RJ), por exemplo, em 09/11/2023, instaurou o IRDR, incidente de número 0107860-08.2023.5.01.0000, com o seguinte tema: “necessidade ou não de garantia do juízo por empresa em recuperação judicial para opor os embargos à execução e subsequente agravo de petição”.

A controvérsia, que gerou a necessidade de uniformização da jurisprudência no âmbito do TRT da 1ª Região se deu, em razão de elevado número de processos com decisões divergentes a respeito do tema. Em 19 de junho de 2024, o Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro fixou tese quanto a necessidade de garantia do juízo por empresas em recuperação judicial, com a seguinte ementa processual:

“INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS

(IRDR). EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NECESSIDADE DE GARANTIA DO JUÍZO. O fato de a empresa encontrar-se em recuperação judicial não a dispensa da obrigação de garantir o juízo na fase de execução, nos expressos termos do art. 884 da CLT, não se lhe aplicando o disposto no §6º do mesmo artigo. Agravo de petição não provido. Tese fixada”.

O TRT da 5ª Região (BA), seguindo a mesma necessidade de uniformização da sua jurisprudência acerca da matéria, instaurou o IRDR 0001434-58.2023.5.05.0000, tendo concluído:

“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO. GARANTIA DO JUÍZO. I – A empresa em recuperação judicial deve garantir o juízo para opor embargos à execução e interpor agravo de petição, salvo: i) quando todo crédito concursal executado já esteja habilitado no Juízo Recuperacional e ii) quando a empresa em recuperação judicial comprovar que, por decisão do juízo da recuperação judicial, todos seus bens não podem ser objeto de apreensão judicial. II – A tese acima firmada tem efeito imediato, aplicando-se aos processos em curso a partir desta data (01/04/2024), cabendo ao juiz ou relator, se for o caso e no que couber, intimar a parte executada para, no prazo mínimo de 5 (cinco) dias, garantir o juízo, inclusive mediante depósito de garantia, sob pena de não conhecimento dos embargos à execução ou da inissibilidade do recurso” – relator: desembargador Tadeu Vieira.

Já no IRDR 0000186-98.2021.5.06.0000, instaurado no âmbito do TRT da 6ª Região (PE), foi adotado mais um entendimento a respeito da matéria, para fins de uniformização jurisprudencial, cuja ementa se deu no seguinte sentido:

“EMENTA: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR). UNIFORMIZAÇÃO DO TEMA “EMPRESA DEVEDORA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DESNECESSIDADE DE GARANTIA DO JUÍZO”. A garantia do juízo, prevista no artigo 884 da CLT, não pode ser exigida das empresas em recuperação judicial, quando figurarem como devedoras em ações trabalhistas, uma vez que a Justiça do Trabalho somente é competente para o seu processamento “até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença ” (artigo 6º, § 2º, da Lei nº 11.101/2005). Reforça esse entendimento o fato de que as executadas em recuperação judicial estão impedidas de dispor de recursos para garantir o juízo, à luz do artigo 172 da Lei nº 11.101/2005, de forma que a exigência do artigo 884 consolidado colide com as garantias constitucionais de o à Justiça, do contraditório e ampla defesa (artigo 5º, XXXV e LV, CF), bem como com o princípio da preservação da empresa (artigo 47 da Lei nº 11.101/2005). À hipótese incide, por analogia, a isenção que beneficia as empresas em recuperação judicial, prevista no § 10 do artigo 899 da CLT, assegurando-lhes a oportunidade de opor embargos à execução, consoante previsão do artigo 884, § 3º, do Texto Consolidado, bem como de interpor agravo de petição em decisões terminativas proferidas em fase de execução, garantindo-lhes o exercício da ampla defesa e do contraditório, sem se olvidar das disposições da Lei nº 11.101/2005.”

Em 2024, também houve a instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas no âmbito do TRT da 2ª Região e, embora não itido, a resultar precedente obrigatório no âmbito do Regional da capital paulista, trouxe mais um posicionamento divergente quanto ao tema, já que o processo que ensejou a discussão (AP – 1001419-33.2018.5.02.0711), não houve a issão do recurso da empresa em razão da ausência da garantia do juízo.

Nesse sentido, da análise da jurisprudência atual no âmbito dos Tribunais Regionais, verifica-se posições contraditórias a respeito do mesmo tema, em que o TRT da 1ª Região, filiado ao entendimento majoritário do TST, se pauta pela necessidade da garantia do juízo, na fase de execução trabalhista, por empresas em recuperação judicial. O TRT da 5ª Região, traz ponderações a respeito da necessidade de garantia do juízo na fase de execução, considerando a natureza concursal do crédito ou mesmo a impossibilidade de a empresa, em recuperação judicial, ter bens livres para oferecer em garantia, na forma exigida pela CLT.

Já o TRT da 6ª Região, acenado aos princípios constitucionais da preservação da empresa e contraditório e ampla defesa, amplia a interpretação dada ao § 10 do artigo 899 da CLT, para garantir às empresas em recuperação judicial o direito de discussão na fase de execução, sem garantir o juízo, já que dispor do seu patrimônio, significaria afrontar os termos do artigo 172 da Lei 11.101/2005.

Dessa forma, a inexistência de um entendimento pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho sobre a necessidade de garantia do juízo por empresas em recuperação judicial, na fase de execução trabalhista tem gerado um ambiente de incerteza jurídica.

Além do aumento da litigiosidade, essa falta de uniformidade compromete a celeridade processual, sobrecarregando o Poder Judiciário com demandas repetitivas que poderiam ser evitadas com a fixação de um precedente vinculante. Enquanto alguns Tribunais Regionais adotam uma interpretação mais restritiva, exigindo a garantia do juízo nos termos do artigo 884 da CLT, outros flexibilizam essa exigência com base na legislação falimentar e princípios constitucionais.

Nesse contexto, a fixação de um precedente obrigatório pelo TST sobre essa matéria contribuiria significativamente para a redução de controvérsias e para a efetividade da prestação jurisdicional. Um entendimento consolidado permitiria que empresas em recuperação judicial e credores trabalhistas tivessem clareza sobre seus direitos e deveres, evitando decisões contraditórias e garantindo maior segurança nas relações processuais. Assim, o alinhamento jurisprudencial promoveria a isonomia no tratamento das empresas em recuperação judicial perante a Justiça do Trabalho, atribuindo maior confiabilidade do sistema jurídico como um todo.

 


Referências

ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores: precedentes no direito brasileiro. São Paulo-SP: Thomson Reuters Brasil. 2018.

AMARAL, Felipe Marinho; Precedentes judiciais no processo do trabalho. Leme-SP: MIZUNO, 2022.

DUXBURY, Neil. The Nature and Authority of Predecent. Cambrige University Press. 2008.

MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trads. Fernando Henrique Cardoso, Leoncio Martins Rodrigues. Brasília: Universidade de Brasília. 1982.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais. 2014.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais. 2016.

MOLINA, André Araújo. Compreensão e aplicação dos precedentes na justiça do trabalho. Disponível aqui.

_______. Lei 11.101 de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial, e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível aqui.

_______. Lei 13.467 de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível aqui. o em: 30 jan. 2025.

_______. Decreto Lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível aqui.

_______. Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (__ª Turma). Processo: ___________. Data: 26/06/2024. Relator: ____________.

VALOR ECONÔMICO. Volume de Pedidos de recuperação judicial bate recorde histórico em 2024. Disponível aqui.

[1] _______. Lei 11.101 de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial, e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível aqui.

[2] VALOR ECONÔMICO. Volume de Pedidos de recuperação judicial bate recorde histórico em 2024. Disponível aqui.

[3] Lei nº 13.467/17. Art. 899, §10º. São isentos do depósito recursal os beneficiários da justiça gratuita, as entidades filantrópicas e as empresas em recuperação judicial.

[4] Lei nº 11.101/05. Art. 6º, III – proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.

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