Opinião

Plágio ou liberdade criativa? Uso de samples na indústria musical

29 de maio de 2025, 20h42

O uso de samples refere-se à prática de incorporar trechos de sons pré-existentes em novas composições, técnica amplamente utilizada na produção musical contemporânea. Esse tema tem gerado debates, suscitando a questão crucial sobre se essa prática configura ou não plágio. Tal discussão envolve questões complexas de natureza legal, criativa e ética, e tem sido objeto de análise entre músicos, produtores, advogados e críticos da indústria musical. Entretanto, ainda não se chegou a um consenso, e uma pergunta permanece: o uso de samples equivale a plágio?

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Primeiramente, é crucial definir o conceito de plágio e compreender suas circunstâncias e manifestações. O plágio é identificado como a imitação servil ou fraudulenta de uma obra criada por outrem, mesmo quando essa imitação é camuflada por artifícios, mas sempre associada a uma intenção maliciosa. Todavia, deve-se ressaltar que a definição de plágio não engloba o uso de pequenas porções da obra.

Segundo Carlos Alberto Bittar em sua obra Direito do Autor, o plágio configura-se quando: “A obra alheia é, simplesmente, apresentada pelo imitador como própria, ou sob graus diferentes de dissimulação. Há absorção de elementos fundamentais da estrutura da obra, atentando-se, pois, contra a personalidade do autor (frustração da paternidade)” (Bittar, 2019) [1].

Em consonância com a perspectiva de Bittar e fazendo referência direta a Antonio Chaves, o jurista José Carlos Costa Netto argumenta que o plágio é uma prática bastante sutil. Pois “apresenta o trabalho alheio como próprio mediante o aproveitamento disfarçado, mascarado, diluído, oblíquo, de frases, ideias, personagens, situações, roteiros e demais elementos das criações alheias” (Costa Netto, 2019) [2].

A partir dessa definição, torna-se difícil afirmar que o uso de samples equivale a plágio, uma vez que ao samplear, o músico não busca apresentar a obra original como de sua autoria, mas sim utiliza alguns de seus elementos na construção de um novo trabalho, incorporando-os como uma espécie de referência ou citação à obra pré-existente. Ainda, é importante frisar que não há um conceito legal de plágio na legislação brasileira e, praticamente, em nenhuma outra, conforme observa Rebeca Garcia:

“(…) não há, porém, um conceito legal de plágio. A lei nem mesmo utiliza essa palavra,  apesar de seu  uso comum e enraizado,  inclusive em  decisões  judiciais. O plágio  não  é,  portanto, definido (ou  assim  nomeado)  no  Brasil  nem  praticamente nenhuma legislação” (GARCIA, 2021) [3].

Outrossim, é fundamental destacar a distinção significativa entre o plágio e a prática de incorporar trechos de outras obras (através do sampling) com o objetivo de criar uma nova. Essa diferença foi habilmente delineada por dois advogados poloneses, Tomasz Rychlicki e Adam Zieliński, em um artigo jurídico, para a Revista da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), sobre uso de samples na música:

“É claro que há uma enorme diferença entre o plágio barato entendido por alguns como “obras derivadas” e o esforço original e criativo em que samples constituem um ponto de partida para a criação de novas obras que poderiam cair sob a regra do “direito de citação” em vez de ser considerados trabalhos derivados. Cada caso requer uma análise minuciosa e individual. Mas a liberdade criativa, como o sampling, pode e deve ser defendida e tratada como parte do progresso da arte, que, por sua vez, promove o desenvolvimento e o enriquecimento da cultura humana” (Rychlicki; Zieliński, 2009, tradução nossa) [4].

Jurisprudência do STJ

Sendo notável que a definição do plágio é um conceito jurídico aberto, sujeito à interpretação de juristas, faz-se necessário uma análise jurisprudencial. Contudo, com base em casos analisados no Superior Tribunal de Justiça, não se pode obter uma conclusão definitiva ou afirmar que o tribunal possui uma posição consolidada sobre o assunto, conforme apontado por Garcia:

“(…) não é possível extrair um entendimento com caráter  definitivo  ou  afirmar  que  o  tribunal  tem  já  posição  consolidada.  Por  um  lado, reforça-se  a  impressão  de  que  o  plágio,  mesmo  como  questão eminentemente  de  fato, ainda  não  contou  com  amadurecimento  e  orientação  jurisprudencial  em  quantidade  e em substância suficiente que permita falar em jurisprudência consolidada – ao menos do STJ. De todo   modo, estes casos apontam para a intenção como  elemento caracterizador do plágio no contexto e para efeitos do direito autoral” (Op. cit., 2021) [5].

Posto isto, observa-se que a questão do plágio ainda não alcançou um amadurecimento e uma orientação jurisprudencial consolidada. No entanto, os casos existentes indicam a intenção consciente do plagiador de se fazer ar como real autor da obra, como um elemento caracterizador do plágio.

Em decisão recente, que tratou sobre o uso não autorizado de uma música como fundo musical em um comercial, enfatizou-se a importância de não confundir o uso não autorizado de uma obra intelectual com plágio. Contudo, a própria decisão apresenta o uso não autorizado de trechos de músicas de outro artista em uma composição própria, como exceção à regra.

“É infundada a alegação de plágio quando não demonstrada a atribuição, explícita ou mesmo implícita, pela parte demandada, da autoria da obra intelectual do demandante, sendo, ademais, de pequeno vulto as coincidências entre as obras postas em confronto. (…) Diferente é a situação daquele que, em uma tese de doutorado, inclui trechos de obra alheia sem aspas e sem indicação da fonte: na capa da tese, consta o nome do doutorando, o qual, portanto, a si próprio atribui aquilo que está na sua tese, sem aspas nem indicação de fonte. Ou o caso de um cantor/compositor que, em disco ou álbum, se atribui a autoria de música alheia ou de música própria com trechos de alheia. (…) Por outro lado, o plágio deve caracterizar-se pela evidente malícia, sendo excessivo considerar-se como tal coincidências tênues ou de pequeno vulto (…). Fica, pois, afastado o alegado ‘plágio’. (…) Uma última vez, cabe lembrar que não se confunde a utilização não autorizada de uma obra intelectual com o seu plágio (constituindo este, e não aquela, a situação lamentada pelo demandante na inicial) (…)” (AgInt no AREsp 1815468/PB, rel. ministra Maria Isabel Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 22/11/2021, DJe 25/11/2021 – g. n.) (Grifo do articulista)

Curiosamente, em uma decisão sobre paródias, o STJ reconheceu que não é necessário indicar o nome do autor da obra original, destacando também a liberdade para a realização dessas criações, desde que não sejam reproduções idênticas da obra originária. Esse entendimento poderia muito bem ser aplicado no caso dos samples, uma vez que a técnica de sampling nada mais é que utilizar um trecho de uma gravação musical existente e incorporá-lo em uma nova, criando algo totalmente novo, o que é bastante diferente das paródias, que usam toda a estrutura da obra parodiada.

“A paródia, a par de derivar de obra preexistente, constitui criação intelectual nova, dotada de autonomia em relação à obra originária. Precedentes. 5. O art. 47 da Lei 9.610/98 estabelece que ‘são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito’. 6. Não há, na Lei de Direitos Autorais, qualquer dispositivo que imponha, quando do uso da paródia, o anúncio ou a indicação do nome do autor da obra originária. 7. O direito moral elencado no art. 24, II, da LDA diz respeito, exclusivamente, à indicação do nome do autor quando do uso de sua obra, circunstância diversa da que se verifica na espécie. 8. Quando a legislador entendeu por necessária, na hipótese de utilização de obra alheia, a menção do nome do autor ou a citação da fonte originária, ele procedeu à sua positivação de modo expresso, a exemplo do que se verifica das exceções constantes no art. 46, I, ‘a’, e III, da LDA. 9. Diante disso, reconhecido que, em se tratando de paródia, inexiste obrigação de divulgação do nome do autor da obra originária e que pertencem apenas ao seu criador o direito moral de ter o nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização dessa obra, não há fundamento jurídico apto a sustentar a tese sufragada pelo Tribunal de origem, no sentido de que a ausência de menção da autoria da obra parodiada viola os direitos do criador desta.” RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ, Resp nº 1.967.264/SP (2021/0229247-3). Rel. min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Data do julgamento: 15/2/2022.) (Grifo do articulista.)

Direitos morais, direitos patrimoniais e a exceção na lei

Conforme mencionado anteriormente, não há uma definição de plágio explicitamente estabelecida na legislação brasileira. Entretanto, ela adota um sistema de natureza dúplice, que visa garantir direitos ao autor da obra, dividindo-os em direitos morais e direitos patrimoniais. Essa divisão encontra-se respaldada na Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais), que é o principal marco regulatório para a proteção de obras intelectuais no Brasil.

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Notadamente em seu artigo 22, estabelece que ao autor pertence tanto os direitos morais quanto os patrimoniais sobre a obra que criou [6]. O primeiro deles, o direito moral está intrinsecamente ligado ao criador da obra, pois reflete não apenas a autoria, mas também a personalidade e as habilidades do autor, são a expressão da conexão íntima entre o autor e sua criação, em outras palavras, representam a paternidade da obra.

Enquanto que os direitos patrimoniais dizem respeito à exploração econômica da obra por meio de todas as formas disponíveis. Estes direitos compreendem um conjunto de prerrogativas financeiras que surgem junto com a criação da obra e se concretizam quando ela é disponibilizada ao público, conferindo ao autor, ou autores, o poder de distribuir a obra como desejar, inclusive de maneira comercial.

Apesar de grande parte dos autores concordarem que compete ao criador da obra decidir onde, como e por quem ela deve ou pode ser utilizada, a Lei de Direitos Autorais apresenta algumas exceções para o uso de obras de terceiros sem autorização prévia [7], dentre as quais se destacam, nesse contexto, aquelas previstas no artigo 46 e no artigo 47.

O artigo 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais reconhece que a reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, não constitui violação de direitos autorais, desde que tal uso não represente o objetivo principal da nova obra, não prejudique sua exploração normal e tampouco cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. O que favorece o uso do sample, pois este, de sua própria maneira, promove a obra original, podendo até ser benéfico para o autor, ao contrário do plágio, que representa uma fonte potencial de prejuízo. (ZIMMERMANN; BUSNELLO, 2018, p. 1118-1119) [8].

Ademais, é relevante observar que o artigo 47 da referida lei considera livres todas as paráfrases e paródias que não reproduzam fielmente a obra original e que não a prejudiquem em termos de reputação,[9] o que poderia ser aplicado, por analogia, à utilização não autorizada de samples na cena musical. Além disso, permitir o uso de samples significa ampliar o repertório criativo disponível para artistas e produtores, oferecendo-lhes uma vasta gama de recursos para a elaboração de novas composições, sem que haja escassez de material.

Por fim, não se pode afirmar, de forma categórica, que a utilização de samples sem a devida autorização configura, por si só, uma violação aos direitos de autor, especialmente quando não há má-fé ou intenção de apropriar-se da obra original como se fosse criação própria. Além disso, conforme exposto anteriormente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o artigo 47 da Lei de Direitos Autorais, firmou o entendimento de que a paródia — ainda que derivada de obra preexistente — constitui criação intelectual nova, dotada de autonomia em relação à obra originária.

Assim, por analogia, pode-se sustentar que o uso de samples também configura uma manifestação legítima da liberdade artística, desde que não haja má-fé, nem tentativa de apropriação da obra original, tampouco reprodução ipsis litteris. Tal como na paródia, não se exige a menção ao autor da obra base, o que reforça a inexistência de ofensa aos direitos morais ou patrimoniais, desde que respeitados os limites da boa-fé.

 


[1] BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR, Eduardo C. B. Direito de Autor. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[2] COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. E-Book.

[3] GARCIA, Rebeca. O papel da intenção na caracterização do plágio no direito autoral brasileiro. civilistica. com, v. 10, n. 1, p. 1-21, 2021.

[4] RYCHLICKI, Tomasz; ZIELIŃSKI, Adam. Is Sampling Always Copyright Infringement? WIPO Magazine, Geneva, Issue 6, p. 20-21, November 2009. Disponível aqui.

[5] GARCIA, Rebeca. O papel da intenção na caracterização do plágio no direito autoral brasileiro. civilistica. com, v. 10, n. 1, p. 1-21, 2021.

[6] Art. 22 da Lei nº 9.610/1998 – Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

[7] “(…) essa autorização é necessária mesmo que se trate de utilização sem fins lucrativos (ressalvando-se as limitações dos arts. 46 a 48 da Lei n. 9.610/98) ou que o usuário seja o Poder Público.” (COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. E-Book, p. 39).

[8] ZIMMERMANN, Natália; BUSNELLO, Saul José. O fair use e a regulamentação do uso de samples e covers em obras musicais no direito autoral brasileiro. In: Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, 12., 2018, Curitiba. Anais… Curitiba: Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da Universidade Federal do Paraná, 2018. p. 1104-1127. Disponível  aqui.

[9] Art. 47 da Lei nº 9.610/1998 – São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.

Autores

  • advogado e atualmente estagia no Núcleo de Conciliações Previdenciárias da Procuradoria Regional Federal da 4ª Região (PRF4), da Advocacia-Geral da União (AGU). Possui interesse em direitos autorais e estuda a relação jurídica do uso de samples em obras musicais.

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