Opinião

Dialética do patrimônio cultural alimentar: controle e resistência à mesa

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  • é doutora pela Université Paris-Saclay mestre pela Université Panthéon-Sorbone professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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31 de maio de 2025, 15h24

A comida é, antes de tudo, uma necessidade biológica. Mas quando olhamos pela lente da cultura, da pizza à feijoada, ela carrega símbolos, tradições, representa identidade, modos de vida, territórios e memórias.

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Na culinária vemos a transformação da comida em práticas cotidianas fundamentadas “em conhecimentos, rituais e gestos que surgem de uma mistura cultural e social de hábitos culinários”. Essa mistura de tradição comum com um modelo de identidade sociocultural, valorizando a diversidade biocultural dos territórios, fez com que, em março de 2023, o Ministério da Cultura juntamente com o Ministério da Agricultura, Soberania Alimentar e Florestas da Itália lançassem a culinária italiana para a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco.

Tal candidatura — apresentada oficialmente como “La cucina italiana tra sostenibilità e diversità bioculturale” — será examinada pelo Comitê Intergovernamental da Unesco em sua 20ª sessão em dezembro, do presente ano, na Índia, e, se aprovada, a Itália se somará à França, Japão, México e outros países que já tiveram suas tradições culinárias reconhecidas pela Unesco.

A Itália já possui outras tradições pertencentes ao patrimônio alimentar igualmente reconhecidas em lista semelhante: a cozinha napolitana, a dieta mediterrânea e a arte do pizzaiolo napolitano, mas a candidatura atual tem escopo mais amplo. Ela abrange toda a cozinha italiana como um complexo sociocultural nacional, visando reconhecer riqueza de técnicas, ingredientes, rituais e valores que compõem o universo alimentar Italiano, criando um elo entre família, comunidade, escola e sociedade civil.

O dossiê apresentado à Unesco, expressa que a culinária italiana representa “um sistema relacional estruturado e unificador que transforma o tempo compartilhado à mesa em casa, nos refeitórios comunitários ou escolares, durante festas ou cerimônias, em uma ferramenta para expressar sentimentos, dialogar ou compartilhar sugestões”. Assim, para o professor Pier Luigi Petrillo, diretor da cátedra Unesco da Universidade Unitelma Sapienza e professor de Patrimônio Cultural, se a culinária italiana se tornasse patrimônio mundial, seria colocada no mesmo nível do David de Michelangelo ou do Coliseu, porque seu valor cultural e identitário seria reconhecido institucionalmente e mundialmente.

Observa-se que, no campo jurídico, temos cada vez mais o reconhecimento e a consolidação do conceito de direitos culturais como parte essencial dos direitos fundamentais, tanto pelos órgãos institucionais nacionais como internacionais. A cultura é, assim, mais do que arte ou patrimônio tangível; ela abrange também as práticas cotidianas, os saberes, os modos de vida e, especialmente, as práticas alimentares tradicionais.

‘Dieta fascista’

Contudo, é essencial compreender que as práticas alimentares, como a cozinha italiana, são vivas. Elas nascem de uma construção histórico-social, do encontro (e do conflito) de classes sociais, religiosas, migratórias, saberes camponeses, e até mesmo de formas de resistências a imposições ditatoriais. Exemplos eloquentes são os episódios da “dieta fascista” e da “batalha pelo grão” na história da culinária italiana.

Spacca

Por volta do final de 1935, o regime fascista viu-se isolado comercialmente e o suprimento de alimentos dos italianos começou a ficar escasso, principalmente do pão e da pasta pela falta de trigo. Diante dessa carência, Mussolini ou a defender uma estratégia política para alcançar a autossuficiência alimentar a partir de não somente aumento da produção agrícola, mas da influência direta nos hábitos alimentares da população.

Para isso, a propaganda fascista declarou guerra à própria identidade culinária. A famosa pasta italiana virou alvo de indignação e desprezo pelo governo, sendo incentivado o consumo de arroz e polenta que eram mais baratos e de produção nacional. “As mesas das famílias italianas tornaram-se trincheiras do nacionalismo econômico”, escreve Laforgia.

Produtos importados aram a ser evitados ou banidos, enquanto se exaltavam alimentos considerados “patrióticos”. Na “dieta fascista”, comer pouco era uma virtude, buscar produtos estrangeiros era traição. A carne vermelha, por exemplo, foi parcialmente substituída por frango e coelho e a pasta italiana era algo a ser destruída – distruggiamo la pasta, bradava um dos maiores filósofos da época, Filippo Tommaso Marinetti.

A alimentação foi, assim, na Itália durante o regime fascista, usada como instrumento de propaganda e controle do Estado. Tanto é assim, que no dia da morte e queda de Mussolini, 25 de julho de 1943, uma família partigiana e antifascista da Região da Emília-Romagna, os irmãos Cervi, como um ato político de resistência ao fascismo, distribuiu à população mais de 380 quilos de pastasciutta (um prato simples de massa branca com manteiga e queijo).

Se por um lado, o ato de consumir pasta durante os anos de guerra na Itália transformou-se em um gesto carregado de significado político — funcionando como símbolo de resistência cotidiana —, por outro lado, alguns dos hábitos alimentares desenvolvidos ou reforçados nesse contexto bélico continuam hoje profundamente enraizados até hoje na cultura culinária italiana.

Assim, o ado histórico fascista da alimentação em contraste com a atual da candidatura da culinária italiana à Unesco, nos convida a refletir sobre a dialética do patrimônio cultural alimentar tradicional dos povos: onde a comida transcende a mera nutrição e assume uma dimensão simbólica e social profunda, sendo, inclusive, usada como instrumento por regimes políticos.

Autores

  • é doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

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