A evolução do tema standard probatório perante o STJ
31 de maio de 2025, 8h00
Nos últimos anos, as duas Turmas Criminais do Superior Tribunal de Justiça têm promovido uma notável primavera epistêmica. Trata-se, como bem definiu o ministro Rogerio Schietti, de uma “onda renovatória do direito probatório” [1], ou, nas palavras do professor Geraldo Prado, de uma “revolução em favor do Estado de Direito” [2].
Essa transformação tem se manifestado por meio de uma série de julgados que buscam uniformizar a aplicação da lei processual penal nos tribunais brasileiros. Dentre as contribuições significativas da corte, destaca-se a formulação de critérios mais objetivos para a determinação do método de constatação probatória, ou standards probatórios, especialmente em contextos que envolvem a restrição de direitos fundamentais.
A importância da fixação de standards probatórios
Se a tomada de decisão é caracterizada pelo percurso desenvolvido no ato de julgar, torna-se importante analisar o método do raciocínio decisório, a fim de reduzir possíveis riscos que lhe são intrínsecos e permitir o controle intersubjetivo da justificação adotada.
Há necessidade, portanto, de uma estrutura teoricamente objetivável que indique as condições e os limites para se reconhecer uma hipótese como provada. Na expressão de Ferrer Beltrán, “uma teoria que nos diga quando ou sobre que condições os elementos de juízo disponíveis são suficientes para que resulte racionalmente em aceitar uma proposição como verdadeira no raciocínio decisório” [3]. Daí a importância de definir, com clareza, o standard probatório, pois, na sua ausência, não há como pretender uma valoração racional da prova, tampouco exercer um efetivo controle da atividade valorativa realizada [4].
Consequentemente, não há espaço para a fixação de um standard que estabeleça critérios exclusivamente subjetivos e dependentes do convencimento do julgador. Por isso, é necessária a máxima fixação de standards probatórios objetivos, caracterizados pela possibilidade de referência explícita sobre a estrutura dos elementos de prova que devem ser propostos pelas partes e submetido ao julgador [5].
Metodologia da pesquisa
A fim de analisar a evolução do tema no âmbito do STJ, empreendemos uma pesquisa de natureza quantitativa e qualitativa, focada em decisões que trataram expressamente sobre standards probatórios. Na plataforma de jurisprudência da Corte, adotamos como critério de busca os termos “standard probatório” ou “standard de prova” e selecionamos todas as decisões publicadas até 31 de dezembro de 2024 [6]. Diante das restrições de espaço e oportunidade, optamos por limitar o recorte exclusivamente aos acórdãos, excluindo-se o extenso contingente de decisões monocráticas [7].
É crucial reconhecer, no entanto, as limitações metodológicas inerentes à execução desta pesquisa.
Primeiro, a ferramenta de busca disponível no sítio eletrônico do STJ restringe-se a examinar informações constantes na ementa e/ou na indexação dos acórdãos, não abrangendo seu inteiro teor. Consequentemente, acórdãos que empregaram os termos “standard probatório” ou “standard de prova” apenas no corpo da decisão, sem destaque na ementa ou na indexação, não foram capturados pela pesquisa.

Em segundo lugar, e de forma mais relevante, nem toda decisão que aborda a discussão referente aos standards probatórios necessariamente menciona esse termo de forma expressa. Não raras vezes, a análise do órgão colegiado se dá por meio da referência direta ao nome do respectivo standard (fundada suspeita, fundadas razões, além da dúvida razoável etc.). Por isso, tais casos também não foram capturados nessa amostra.
Evolução quantitativa dos acórdãos no STJ
Uma primeira análise quantitativa revela a crescente tendência do Superior Tribunal de Justiça em tratar sobre standards de prova. Conforme ilustrado no gráfico abaixo, identificamos um total de 333 acórdãos que, até o final de 2024, abordaram expressamente a temática.
Esse expressivo crescimento na incorporação da teoria dos standards probatórios ao léxico decisório da Corte evidencia sua importância contemporânea na construção de critérios individualizadores aplicáveis a matérias sensíveis do cotidiano forense. Vejamos, a seguir, como se desenvolveu tal evolução.
O marco inicial da análise de standards probatórios no STJ foi o REsp nº 1.632.750/SP – único acórdão de 2017 que tratou expressamente da temática em sua ementa. Tratava-se de um caso de investigação de paternidade no qual se pleiteava a realização de nova perícia por DNA em face da alta probabilidade de fraude no exame anterior que havia afastado a paternidade.
Neste contexto, a ministra Nancy Andrighy, em voto divergente ao relator, determinou a realização do referido exame, salientando que “o problema, pois, coloca-se no campo da valoração das provas produzidas pelo recorrente e nos standards probatórios exigíveis da parte nessas circunstâncias”. O enfrentamento da matéria – cível – pela ministra é digno de análise, não apenas pela utilização do standard probatório para a tomada de decisão, mas pela intrínseca relação entre a aferição do standard aplicável ao caso e a conduta processual das partes envolvidas. A julgadora apontou que “na definição sobre o standard probatório mais adequado à espécie – se o critério é de uma ‘prova clara e convincente’ ou de uma ‘preponderância da prova’ – para fins de afastar a coisa julgada material e reabrir a discussão acerca da identidade genética do recorrente, a postura e a participação do recorrido na atividade instrutória também devem ser examinadas e levadas em consideração”.
No que se refere ao ano de 2018, não foram encontrados acórdãos expressivos referentes a standards probatórios a partir da metodologia empregada. Já em 2019, identificamos dois julgados que abordaram, direta ou indiretamente, essa temática.
O primeiro caso envolveu o debate sobre a distinção entre dolo eventual e culpa consciente em crimes de trânsito (REsp nº 1.794.695/PR). A 6ª Turma, ao dar provimento ao recurso especial do Ministério Público, reformou o acórdão do TJ-PR para pronunciar o acusado pelo crime de tentativa de homicídio doloso. A decisão fundamentou-se na condução de veículo automotor sob sinais de embriaguez, com carteira de habilitação vencida, e no atropelamento de ciclistas em via pública, com aceleração do veículo enquanto uma das vítimas estava sob o carro.
O fundamento desta decisão não se pautou no princípio do in dubio pro societate, amplamente utilizado à época (e atualmente rechaçado pelo STJ), mas sim no enfrentamento do standard probatório que seria exigido para a desclassificação do delito imputado para outro de competência diversa do júri. Conforme fundamentou o ministro relator Nefi Cordeiro, “a sentença de desclassificação exige standard probatório de convencimento (art. 419 do Código de Processo Penal), certeza jurídica de que o crime praticado é diverso daquele doloso contra a vida imputado”. Isso significa que a decisão não versou precisamente sobre o standard probatório exigido para a pronúncia pela prática de crime doloso contra a vida, mas sim sobre a ausência de atingimento da constatação probatória necessária à desclassificação para crime culposo.
Nesse mesmo ano, encontramos também um outro julgado, referente ao sensível enfrentamento da prova quanto à comprovação do dolo eventual em virtude de direção de veículo automotor por motorista supostamente embriagado e em excesso de velocidade (AgRg no AgRg no AREsp 1.473.769/SP). A decisão faz referência ao ARE nº 1.067.392/CE, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que abordou pela primeira vez no âmbito do STF um standard probatório definido para a decisão de pronúncia [8]. Embora o voto condutor do ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca tenha reconhecido a prevalência do princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia, destacou que “cabe ao julgador, na primeira fase do júri, implementar um filtro processual com o objetivo de obstar a manutenção de imputações que não possuem lastro probatório mínimo”. Dessa forma, concluiu-se que não seria possível submeter o recorrente a julgamento pelo Tribunal do Júri, haja vista a ausência de elementos técnicos quanto à embriaguez e à velocidade, o que esvazia o dolo eventual narrado na inicial acusatória.
Quanto ao ano de 2020, apenas um acórdão foi identificado com o termo “standard probatório” em sua ementa (RHC nº 120.491), caso esse em que a 6º Turma abordou o tema do standard probatório exigido para o recebimento da denúncia. A ministra relatora Laurita Vaz apontou que “no momento do recebimento da denúncia o standard probatório [é] menos rigoroso”, mas ressaltou a impossibilidade de análise do mérito em sede de Habeas Corpus. Em seu voto, a ministra afirmou a inviabilidade de avaliar detida e antecipadamente o elemento subjetivo do tipo na via eleita. Em suma, embora houvesse uma análise minuciosa da questão em debate, não se estabeleceu um critério definidor quanto ao juízo de issibilidade da pretensão acusatória a partir de um standard probatório individualizado [9].
Foi a partir de 2021 que o tema dos standards probatórios realmente adentrou no debate perante o STJ. O leading case é o HC nº 598.051/SP, julgado pela 6ª Turma, sob relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz. No capítulo referente aos limites (justa causa) para o ingresso policial em domicílio, ressaltou o ministro que “[o] Brasil caminha, posto que ainda lentamente, rumo à adoção da teoria dos standards de prova como meio de fornecer segurança jurídica aos profissionais do direito, na averiguação da hipótese fática e sua comprovação”. Na análise do caso concreto, entendeu que não havia elementos objetivos, seguros e racionais que justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porque a simples avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a diligência. Esse entendimento se mostra necessário para que haja uma parametrização decisória em casos que envolvam a restrição de direitos e liberdades.
Embora o referido julgado não tenha inaugurado formalmente o debate sobre standard probatório no STJ, uma rápida análise quantitativa da evolução dos casos revela que o crescimento significativo das decisões sobre o tema teve início em 2021. Foi justamente a partir desse julgamento que diversas questões relacionadas ao método de constatação probatória aram a ser identificadas e desenvolvidas pela corte.
A partir de 2022, observa-se uma inflexão ainda mais acentuada no volume de decisões sobre o tema na jurisprudência do STJ. Esse aumento pode ser atribuído, em grande medida, ao paradigmático julgamento do RHC nº 158.580/BA, que veio a se consolidar como leading case da 6ª Turma sobre o standard probatório necessário para a realização de busca pessoal sem mandado judicial prévio. Nesse ponto, a decisão contribuiu para delimitar a discricionariedade em abordagens policiais, exigindo que a fundada suspeita da posse de corpo de delito esteja “baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto”. Desde então, conforme afirmou o ministro Rogerio Schietti Cruz, “seguiu-se a esse julgamento uma profusão de decisões sobre o tema neste Superior Tribunal, nas quais, gradativamente, caso a caso, o conceito de fundada suspeita de posse de corpo de delito foi sendo concretizado em diversos contextos” [10].
Nos dois últimos anos, o aumento no número de casos envolvendo essa temática tem se mantido expressivo. Observa-se, inclusive, que entre o final de 2021 e o final de 2024, o número acumulado de acórdãos das Turmas Criminais sobre standards probatórios saltou de 24 para 333, representando um aumento superior a 1.300%. Apenas no ano ado, os dois órgãos prolataram 149 decisões colegiadas sobre essa matéria, atingindo seus maiores patamares históricos até então.
Mas a análise dessa “primavera epistêmica” não se esgota nesse ponto. Diante desse cenário, é igualmente relevante examinar com maior detalhamento sobre temas individualizados se os acórdãos têm concluído pelo preenchimento ou não do standard probatório previamente definido.
Esses resultados serão apresentados no próximo dia 5 de junho, durante a 2ª edição do Michele Taruffo Girona Evidence Week e aprofundados em artigos futuros.
[1] SCHIETTI, Rogerio. A jurisdição do STJ em busca da racionalidade probatória. In: VÁZQUEZ, Carmen; RAMOS, Vitor de Paula (orgs). Debatendo com Ferrer: standards de prova e subjetivismo em xeque. Londrina: Thoth, 2024, p. 93
[2] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova digital: desafios decorrentes das novas tecnologias. In. BORGES, Ademar; VERANO, Cristiano; SICILIANO, Benedito (org.). Homenagem ao Ministro Rogerio Schietti. 10 anos de STJ. São Paulo: Migalhas, p. 379.
[3] FERRER BELTRÁN, Jordi. Prueba y verdad en el derecho. 2d. ed. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 78 (trad. livre)
[4] FERRER BELTRÁN, Jordi. Motivación y Racionalidade de la prueba. Lima: Grijley, 2016, p. 241).
[5] Tema que já analisei nos capítulos VI e VII do livro A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022,.
[6] Foram habilitadas as funções de busca por sinônimos e variações de plural.
[7] Cada acórdão foi individualmente analisado e teve suas principais informações registradas em uma planilha específica no formato Microsoft Excel.
[8] Além disso, o caso também resvala na temática da perda de uma chance probatória – embora não faça referência expressa –, bem como na ausência de provas do excesso de velocidade.
[9] No caso concreto, houve trancamento da ação penal pela inépcia da denúncia, o que foge da análise proposta neste artigo.
[10] STJ, Terceira Seção, HC nº 877.943/MS, rel. Min. Rogério Schietti, julgado em 18/4/2024, DJe de 15/5/2024
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