Por que a (falta de) teoria mata
31 de maio de 2025, 11h19
Da caça às bruxas ao livre convencimento motivado

É verdade que há boas razões para associarmos a Idade Média a muitos aspectos negativos: autoritarismo teológico, obscurantismo intelectual e práticas brutais que hoje nos chocam. Contudo, por uma confusão persistente e sedimentada no senso comum — alimentada por séculos de simplificações e distorções ideológicas — ainda se costuma atribuir à chamada “Idade das Trevas” o auge da intolerância inquisitorial.
Na realidade, porém, o período em que a inquisição alcançou sua máxima organização e eficácia repressiva foi a Idade Moderna, especialmente entre os séculos 15 e 17. Foi nesse intervalo — já com a emergência do Estado moderno, a ascensão das universidades e, sobretudo, com a popularização do prelo de Gutenberg — que as perseguições sistemáticas às bruxas, hereges e dissidentes se intensificaram. [1]
Paradoxalmente, foi a ampliação do o à informação que permitiu a difusão de conteúdos delirantes em escala inédita, dando tração a crenças como a conspiração satânica e ao pânico moral em torno da feitiçaria. A crença moderna de que um texto impresso poderia ser portador da verdade objetiva — e, portanto, infalível — somou-se à nova lógica estatal de disciplinamento social e produziu os aparatos de vigilância e punição mais eficazes que a Igreja jamais havia possuído.
A inquisição, portanto, não é um fenômeno da ignorância medieval, mas do racionalismo persecutório moderno. Não à toa, o auge da caça às bruxas — símbolo maior da paranoia inquisitorial — ocorreu justamente no Renascimento e na Reforma. E foi nessa mesma época que um dos livros mais infames da história do Ocidente se tornou um estrondoso best-seller: o Malleus Maleficarum (O martelo das feiticeiras), publicado em 1487 por Heinrich Kramer, um inquisidor tirolês frustrado, expulso pelo bispo de Brixen por suas acusações descabidas e suas práticas inquisitoriais violentas.
A obra, escrita com pretensão teológica e fervor doentio, detalhava métodos de identificação, tortura e execução de supostas bruxas, misturando misoginia, fantasia sexual e dogmatismo religioso. O livro, ignorado inicialmente por teólogos sérios, encontrou acolhida no mercado: vendeu como água. Era sensacionalista, escatológico e violento — e, como hoje, isso vendia. [2]
Em decorrência disso, mesmo quando a caça às bruxas atingiu seu ápice medonho no começo do século 17 e muita gente começou a desconfiar de que havia algo visivelmente errado, era difícil rejeitar tudo aquilo como pura fantasia. Um dos piores episódios de caça às bruxas na Europa no começo da era moderna se deu nas cidades de Bamberg e Würzburg, no sul da Alemanha, no final dos anos 1620. Em Bamberg, cidade com menos de 12 mil habitantes à época,” foram executadas cerca de novecentas pessoas entre 1625 e 1631.Em Würzburg, com cerca de 11.500 habitantes, foram torturadas e mortas outras 1.200.
Quando se fala em liberdade de expressão e circulação de ideias, é comum supor que mais informação sempre conduz à verdade e à racionalidade. Mas essa premissa precisa ser qualificada. Em termos concretos, um mercado de ideias completamente desregulado pode, sim, favorecer a proliferação do ressentimento, do medo e do sensacionalismo — muitas vezes em detrimento da busca honesta pela verdade.
A razão é simples: mentiras vendem mais do que verdades áridas
O historiador de Oxford Yuval Harari mostra que impressores e livreiros da Europa moderna lucravam muito mais com os relatos macabros e pornográficos do Malleus Maleficarum do que com obras fundamentais para a ciência moderna, como o De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico. Este último, um dos marcos fundadores da revolução científica, foi publicado em 1543 em uma tiragem inicial de apenas 400 exemplares, que venderam pouco. A segunda edição só viria mais de duas décadas depois, em 1566, com circulação igualmente modesta, e a terceira edição apenas em 1617. Foi provavelmente o maior worst-seller da história.
É central termos em mente que o que desencadeou a revolução científica não foi a simples invenção da imprensa, nem um mercado livre de ideias, mas sim uma mudança epistemológica profunda: a valorização institucionalizada da dúvida, do escrutínio intersubjetivo e do reconhecimento da falibilidade humana.
Contrastando com esse espírito, o que se viu no auge da perseguição às bruxas — já em plena modernidade — foi uma avalanche de informação tóxica, amplificada por uma maquinaria editorial ávida por lucro e por uma sociedade sedenta por explicações fáceis e bodes expiatórios.
Uma carta do chanceler Johann Christoph Haizmann, datada do século 17, descreve com precisão o clima de histeria coletiva:
“Quanto ao caso das bruxas […] recomeçou outra vez, e não há palavras que possam descrever. Ah, o infortúnio e a desgraça disso — há ainda quatrocentas pessoas na cidade, de alta e baixa posições, de qualquer nível e sexo e, ainda mais, até clérigos, tão pesadamente acusadas que podem ser presas a qualquer hora […].
O bispo-príncipe tem mais de quarenta estudantes que logo serão pastores; entre eles, diz-se que 13 ou 14 são feiticeiros. Poucos dias atrás, foi preso um deão; outros dois que foram convocados fugiram. O notário do consistório de nossa Igreja, um homem muito culto, ontem foi preso e torturado. Em suma, um terço da cidade certamente está envolvido. Os integrantes mais ricos, mais destacados, mais proeminentes do clero já foram executados. Uma semana atrás, foi executada uma donzela de dezenove anos, da qual se diz por toda parte que era a mais bela da cidade inteira e era tida por todos como uma jovem de singular recato e pureza. A ela se seguirão sete ou oito das melhores e mais destacadas pessoas […]. E assim muitas são condenadas à morte por renunciar a Deus e estar nas danças embruxadas, contra as quais nunca ninguém falou uma palavra.
Para concluir esse assunto infeliz, há crianças de três e quatro anos, chegando a trezentas delas, sobre as quais dizem que tiveram intercurso com o Demônio. Vi executarem crianças de sete anos, estudantes promissores de dez, doze, quatorze e quinze […]. Mas não consigo e não devo escrever mais sobre essa desgraça.”
E num pós-escrito ainda mais perturbador:
“Embora haja muitas coisas assombrosas e terríveis acontecendo, não há margem de dúvida de que, num lugar chamado Fraw-Rengberg, o Demônio em pessoa, com 8.000 de seus seguidores, realizou uma assembleia e celebrou missa perante todos eles, ministrando a seus ouvintes (isto é, os bruxos) cascas e lascas de nabo em lugar da Santa Eucaristia. Ocorreram blasfêmias não só repulsivas, mas extremamente hórridas e medonhas, que estremeço em escrever.” [3]
Esse tipo de histeria moral em escala social foi facilitado justamente pela expansão da informação impressa — não pela ignorância medieval, mas pelo poder moderno de transformar ficções populares em fatos sociais, através da repetição, do selo e da aparência de autoridade.
A invenção do prelo, que de fato facilitou a disseminação de ideias transformadoras como as de Copérnico, Thomas Hobbes e Galileu, também serviu como megafone para toda sorte de delírios persecutórios. Se há uma lição duradoura da revolução do prelo, é esta: a simples disseminação de informação não é equivalente à disseminação de conhecimento.
Enquanto livros como o de H. Kramer atingiam dezenas de edições, as obras científicas e filosóficas sérias — os worst-sellers da época — lutavam para circular. Eram complexas, demandavam estudo, e não prometiam revelar conspirações demoníacas ou práticas sexuais proibidas. Obras de Erasmo, por exemplo, de Thomas Hobbes ou mesmo os trabalhos jurídicos fundacionais do humanismo renascentista, circulavam em tiragens modestas e alcançavam uma elite intelectual. O Malleus, por outro lado, era consumido vorazmente pelo público eclesiástico e secular, ávido por justificativas para o medo, a repressão e a tortura.
Um caso especialmente revelador ocorreu em 1453. Na França, um teólogo chamado Guillaume Edelin — homem letrado, doutor em teologia, respeitado no meio eclesiástico — tentou frear o que ainda era um delírio incipiente: a crença na conspiração satânica das bruxas. Edelin defendia, em tom firme, que as histórias de mulheres voando em vassouras à noite para fazer pactos com o demônio não avam de superstições sem fundamento. Ele evocava o Canon Episcopi, um documento canônico de origem medieval que sustentava justamente isso: que a bruxaria era uma ilusão fomentada por engano ou sugestão demoníaca, e que aqueles que acreditavam nesses voos noturnos estavam enganados. [4]
Mas Edelin foi surpreendido pelo novo espírito do tempo. Em vez de ser ouvido, foi acusado de bruxaria. Preso, foi submetido à tortura — uma prática “moderna”, no sentido literal do termo, institucionalizada como meio de “busca da verdade” — e, como tantos outros, acabou confessando absurdos sob pressão. Disse que voara, sim, em uma vassoura. Que fizera pacto com o diabo. E mais: que fora o próprio Satã quem lhe ordenara pregar que a bruxaria era ilusão, como forma de proteger o culto satânico das autoridades.
O caso de Edelin é emblemático porque mostra o colapso da razão diante da histeria social. A ironia final é que, mesmo com uma confissão dessas — que hoje qualquer um identificaria como extraída sob tortura e completamente inverossímil —, os juízes consideraram que ele merecia clemência. Em vez de ser executado, como tantos outros, foi condenado à prisão perpétua. O ponto é este: quando uma ideia absurda encontra um público disposto a acreditar nela, a verdade deixa de ser uma barreira. E quando essa ideia é repetida com autoridade, sistematicamente, ela a a parecer plausível — mesmo se contradiz séculos de razão institucional.
É preciso deixar isso claro antes de tratar de certas doutrinas jurídicas que, embora populares, não são populares porque são boas. São populares porque são simples. Porque dizem ao público — e aos juízes — aquilo que eles gostariam de ouvir. E porque, num ambiente democrático mal compreendido, há uma tendência perigosa de confundir popularidade com legitimidade.
O chamado “livre convencimento motivado”, por exemplo, é uma dessas ideias. Mas antes de abordar diretamente esse tema, convém examinar como as ideias ruins, quando se tornam virais, produzem consequências devastadoras — mesmo (ou sobretudo) quando vestidas com a roupagem da autoridade.
Assim como no século 15, há muito lixo circulando por aí, sustentado não por sua verdade, mas por sua capacidade de reforçar preconceitos, de simplificar complexidades e de gerar lucro — seja financeiro, político ou simbólico.
Não se trata, portanto, de proibir a circulação da informação, mas de construir redes de responsabilidade epistemológica. No Direito, isso significa valorizar a hermenêutica, o método, o debate honesto, e resistir à tentação de fórmulas fáceis ou de gurus que prometem as “10 leis infalíveis para ser aprovado em concurso” ou “os 5 segredos da jurisprudência de sucesso”. Quem consome isso sem crítica está, mais uma vez, assinando confissões de bruxaria para agradar a lógica do mercado.
Martelo das convicções
O título deste item é propositalmente medieval. Porque é exatamente de um resquício medieval que se trata: a ideia de “livre convencimento motivado” — uma expressão que, na prática forense brasileira, se converteu em um oxímoro perigoso. De “motivação” só tem o nome. De “livre” só tem a arbitrariedade. E seus efeitos, como se verá, são trágicos.
Vejamos o caso de Edmilson Félix da Silva. Foi amplamente divulgado pela imprensa e ganhou destaque graças ao trabalho incansável das brilhantes advogadas Dora Cavalcanti e Flávia Rahal, que vêm desvelando os horrores de condenações judiciais baseadas em erros grotescos.
Edmilson foi condenado a 170 anos de prisão, dos quais cumpriu 12. Em um dos processos, sua condenação baseou-se unicamente em reconhecimento fotográfico — prática já criticada por sua altíssima margem de erro — e teve como justificativa a “certeza” do promotor de que “sósias de Brad Pitt não cometem estupros”. Acredite se quiser. E o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao examinar os recursos, simplesmente recorreu ao velho expediente do “livre convencimento do juiz” para manter a condenação.
Como registrou o professor Lenio Streck em sua coluna nesta ConJur, esse caso escancara o risco letal de uma dogmática jurídica permissiva com ficções conceituais como o “livre convencimento”. O STJ, felizmente, encerrou os processos e anulou todas as condenações, provando que Edmilson ainda por cima era inocente — decisão comentada aqui.
Mas a pergunta que fica é: e os 12 anos da vida de Edmilson? Quem os devolve? E esse é apenas um caso.
O “livre convencimento motivado” tornou-se, no Brasil, uma pedra filosofal da irracionalidade jurídica: serve para tudo e, ao mesmo tempo, para nada. É o álibi perfeito para decisões desprovidas de racionalidade, descoladas dos fatos e, sobretudo, da responsabilidade epistêmica que deveria reger qualquer ato de julgamento.
É urgente revisitarmos os fundamentos que ensinamos nas faculdades e programas de pós-graduação em Direito. Não é issível que a maioria dos manuais ainda trate conceitos como “livre convicção” e “livre convencimento” como dogmas intocáveis. A verdade é que esses mitos matam. Prendem inocentes. Arruínam vidas. Esse é apenas um exemplo problemático que chamo para a atenção das leitoras e leitores, mas esse texto é um chamado mais amplo, um chamado para a responsabilidade que os profissionais do direito têm.
Conhecimento é poder, sim — mas também é responsabilidade. Juízes, promotores, defensores e advogados mexem com a vida e os bens das pessoas. Uma decisão ou uma fundamentação errada acaba com vidas. temos em mãos o destino de seres humanos reais, e por isso devemos ser tão rigorosos, criteriosos e comprometidos com a técnica quanto um cirurgião no centro de uma sala de operações.
Não se trata de um capricho teórico. Trata-se de vida ou morte.
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[1] Yuval Noah Harari. 2024. Nexus: Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à IA. São Paulo: Companhia das Letras.)
[2] Hans Broedel. The “Malleus Maleficarum” and the construction of witchcraft: theology and popular belief. Manchester: Manchester University Press, 2003.
[3] Yuval Noah Harari. Nexus: uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à IA. São Paulo: Companhia das Letras, 2024. p.119
[4] Gareth Medway. Lure of the sinister: the unnatural history of Satanism. New York: New York University Press, 2001.
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