Caso Aguas Acostas vs. Equador: violência policial e tortura na Corte IDH
1 de março de 2025, 13h28
No último dia 11 de fevereiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos notificou [1] o Equador a sentença condenatória proferida em 10 de outubro de 2024, no Caso Aguas Acosta e Outros vs. Equador [2]. O Estado foi considerado responsável pela tortura e consequente morte de Aníbal Alonso Aguas Acosta, praticada por agentes de polícia, pela ausência de punição dos culpados e por violações de direitos dos familiares da vítima.

Em 1º de março de 1997, o proprietário de um estabelecimento comercial realizou uma chamada para a Policía Nacional, em razão de suposto distúrbio. Os agentes que primeiro chegaram ao local encontraram Aguas Acosta já fora do estabelecimento, proferindo insultos — estava desarmado e visivelmente embriagado. Consta na sentença que a esposa dele, Estela Gaona, pediu para que ele não fosse preso e se dispôs a pagar os prejuízos causados. Em vão [3].
Diante da resistência da vítima, os policiais solicitaram reforços, e, com a chegada de mais agentes, lograram êxito em colocá-lo dentro do veículo de patrulha ainda com vida. No entanto, quando o veículo chegou ao quartel, Aguas Acostas estava inconsciente e com diversos ferimentos graves. Segundo consigna a sentença:
“58. Quando Aníbal Aguas chegou ao quartel de polícia, estava inconsciente. Eles [os policiais] o retiraram do veículo, deitaram-no no chão e, diante de sua falta de reação, jogaram água em sua cabeça, lavando assim o sangue que o cobria. Ele foi então levado ao hospital e, chegando ao referido estabelecimento, dois auxiliares de enfermagem confirmaram sua morte ainda dentro da viatura policial. Posteriormente, ele foi transferido para o necrotério do cemitério geral pela polícia. […] Na referida autópsia foram constatadas “lesões múltiplas na cabeça, pescoço, tórax, membros superiores, cavidade craniana, cavidade torácica e cavidade abdominal”. Dos procedimentos judiciais se depreende ainda que, em seus depoimentos, os médicos que realizaram a autópsia indicaram expressamente que o corpo de Aníbal Aguas “estava ‘desnucado’, ou seja, separada a cabeça do corpo.” [4]
Em 3 de março, foi registrado por um tenente do quartel o informe policial sobre os fatos. Não obstante os claros sinais de tortura (conforme posteriormente restou demonstrado no processo), o dito tenente, após oitiva dos policiais envolvidos e de outras testemunhas, “[…] concluiu que a polícia não utilizou armas ou objetos contundentes, usando apenas a força necessária para detê-lo [o sr. Aguas Acostas] e conduzi-lo até o veículo” [5].
O relatório indicou, ainda, que a hemorragia cerebral provavelmente havia sido causada durante o translado até o quartel, tendo a vítima se debatido contra o próprio veículo; e que os ferimentos verificados eram resultado de uma queda do corpo ao chão, quando os policiais foram deixá-lo no necrotério.
Autores do crime
Ao longo do processo que se desenvolveu por anos na jurisdição interna, os policiais José Evergisto Salazar e Julio Alcivar Sandoval Torres, que fizeram o translado da vítima até o quartel, foram apontados como os autores do crime. A conduta foi inicialmente enquadrada como “homicídio simples” [6]; depois, como “homicídio involuntário”, com pena de três anos de reclusão menor [7] e à separação das fileiras policiais; e, em 19 de junho de 2001, como “muerte por tormentos corporales”, sendo a pena aumentada para oito anos de reclusão maior [8].

Os dois policiais condenados, todavia, nunca cumpriram a pena. Segundo a Corte IDH, sequer há informação se as ordens de captura chegaram a ser executadas pelas autoridades equatorianas. Em 18 de setembro de 2019, a Sala Especializada Penal de la Corte Provincial de la Justicia del Guayas declarou “a prescrição da ação penal a seu favor” [9].
O Estado do Equador reconheceu parcialmente sua responsabilidade em relação aos fatos narrados, firmando um acordo de solução amistosa com familiares da vítima. A Corte entendeu, no entanto, que o acordo não contemplava todos os pontos do litígio, persistindo controvérsias em relação à prática de atos de tortura e à falta de adequação normativa pelo Estado.
Qualificação do crime
Conforme exposto, mesmo no âmbito do direito interno a capitulação dos fatos a um tipo penal foi controversa, variando entre homicídio simples, homicídio involuntário e morte por tormentos corporais. A Corte IDH, por sua vez, concluiu que a vítima foi vítima de tortura, verificados os “critérios da intencionalidade, do sofrimento grave e do objetivo específico” [10], uma vez que as agressões foram intencionalmente praticadas com o intuito de controlar e submeter Aguas Acostas. Lembrando que a vítima se encontrava embriagada e desarmada, a Corte aduz que houve uso abusivo da força pelos policiais [11].
Prosseguindo, a Corte aponta que o crime de tortura não estava, à época do ocorrido, adequadamente tipificado no ordenamento equatoriano, sendo “indispensável que o Estado conte com um marco jurídico adequado que regule o uso da força [pelos órgãos de segurança pública] e que garanta o direito à vida” [12].
Votos da Corte
Nesse sentido, por quatro votos contra três, a Corte entendeu que o Estado violou também o artigo 2º, c/c artigo 5.2, da Convenção Americanas de Direitos Humanos, em relação à obrigação de adotar disposições de direito interno para tipificar a tortura. Votaram de forma parcialmente dissidente as juízas Nancy Hernández e Patricia Pérez Goldberg, e o juiz Humberto Sierra Porto [13].
Para a atual presidente da Corte, Nancy Hernández, “[…] o Estado cumpriu com esta obrigação à medida em que sua Constituição Política estabelecia a proibição de tortura, existia um tipo pena que sancionava a morte ‘por tormentos’ e avançou na tipificação do delito, evidenciando um progresso gradual em sua implementação”. [14]
Já a juíza Patricia Pérez Goldberg argumentou, em seu voto parcialmente dissidente, que a sentença da Corte não restou adequadamente motivada quanto a esse ponto, carecendo de fundamentação ao deixar de analisar a alegação específica do Estado a respeito da existência do tipo penal “tormentos com resultado morte” [15]. Para Goldberg, o tribunal interamericano somente poderia declarar violação ao artigo 2º da CADH mediante um exercício hermenêutico de análise do tipo penal vigente à época dos fatos, o que não foi realizado na sentença.
Delito de tortura
De fato, ao lermos a decisão (item “B.3. Sobre el deber de adoptar disposiciones de derecho interno” — p. 33 a 34), notamos que o tribunal deixou de apresentar os motivos que levaram à conclusão sobre a inadequação do tipo penal equatoriano. Quem realiza esta análise, de forma pormenorizada, é o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, em seu voto convergente [16].
Segundo Mudrovitsch, os tipos penais imputados aos acusados ao longo do processo na jurisdição interna do Equador não são suficientes frente à gravidade do delito de tortura, cuja ocorrência foi reconhecida in casu pela Corte. O brasileiro lembra que a proibição da tortura é norma de ius cogens, e, ademais, consagrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966; pela Convenção Europeia de Direitos do Homem, de 1950; pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, em seu artigo 5.2; pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981; e, por fim, pela Carta Árabe de Direitos Humanos, de 2004. Aduz:
“14. As normas imperativas de direito internacional (ius cogens) refletem e protegem valores fundamentais da comunidade internacional. São superiormente hierárquicas em relação a outras normas de direito internacional e universalmente aplicáveis. Consistem, portanto, em disposições inderrogáveis, somente podendo ser modificadas por norma posterior de igual hierarquia.” [17]
“17. O caráter absoluto da proibição da tortura significa, como sustenta Robert Esser, que a tortura não tem uma medida em si. Isso quer dizer que a regra de proibição de tortura não pode ser restringida e tampouco flexibilizada, uma vez que a dignidade humana é valor indisponível. As lentes do usual teste de proporcionalidade não são itidas aqui. Não cabem exercícios de ponderação nem elucubrações quanto ao nível de sofrimento ‘tolerável’ ou quanto à finalidade – por mais legítima que seja – perseguida com a tortura.” [18]
Assim, prossegue Mudrovitsch, “a proibição da tortura é exigível para todos os Estados”, e todos os indivíduos estão obrigados a observá-la “ainda que exista autorização legal ou judicial a nível nacional que autorize tal prática” [19]. Não obstante, por faltar às normas de direito internacional a autoexecutoriedade, incumbe aos Estados adotar as medidas necessárias, em âmbito interno, para dar-lhes efetividade.
E, no caso da tortura, dada sua extrema gravidade, conclui que “a prevenção e a punição de tais atos demandam necessariamente o recurso aos instrumentos jurídicos de natureza penal” [20]. O fato de o Equador somente ter ratificado a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura dois anos após o episódio que vitimou Aguas Acostas não afasta o dever do Estado de tipificar a conduta de tortura, visto que, para Mudrovitsch, esta obrigação pode “ser deduzida de forma autônoma do âmbito da CADH” [21].
O vice-presidente da Corte esclarece, ainda, que a jurisprudência do tribunal estabelece distinções entre a tortura e o tratamento cruel, desumano ou degradante — este, diferentemente da tortura, não exige a criação de um delito próprio, conforme consignado no Caso Quispialaya Vilcapoma vs. Perú [22].
Sobre a definição de tortura e os requisitos mínimos de um tipo penal convencionalmente adequado, Mudrovitsch ressalta que não há uniformidade entre os documentos internacionais sobre a matéria, mas elenca alguns critérios, com base nos diversos tratados e na jurisprudência da própria Corte.
A respeito do tipo subjetivo do crime de tortura, aduz que é necessário “o dolo acrescido do elemento subjetivo especial da finalidade ou propósito de causar dor ou sofrimento à vítima”. Quanto ao tipo objetivo, afirma que “todos os instrumentos [internacionais de direitos humanos que regulam a matéria] exigem que a tortura comine dor ou sofrimento à vítima”, devendo, ainda, a dor ou o sofrimento alcançar nível significativo para configurar tortura [23]. E conclui:
“64. Assim, a tortura é definida por seus efeitos (dor e sofrimento físico ou psicológico) e não pelos seus métodos ou práticas. Equivale a dizer que não existem meios legalmente autorizados para a prática da tortura, o que reforça o caráter absoluto de sua proibição.
65. É possível concluir, dessa forma, que, para ser considerado como crime de tortura, o ato deve compreender os tipos subjetivo e objetivo acima delineados: i) intencionalidade; ii) ser cometido com determinada finalidade ou propósito; e iii) causação de dores e sofrimentos físicos ou psicológicos de alguma gravidade.” [24]
Violação à CADH
Com base em tais critérios, o voto convergente afirma que o tipo penal equatoriano, de “tormentos corporales”, viola a CADH, uma vez que: sua aplicação restringe-se a pessoas presas ou detidas, limitando indevidamente o seu âmbito de incidência; não prevê o requisito subjetivo especial acima exposto, aplicando-se, portanto, a outras condutas além da tortura; restringe a dor ou sofrimento da vítima ao aspecto físico, desconsiderando outras formas de violação igualmente graves. Em suma, Mudrovitsch aduz:
“80. Nomear determinada conduta como ‘tortura’ e identificar seus agentes como torturadores apresenta efeitos práticos sobre os casos concretos, na medida em que ganham atenção no espaço público. Neste caso, o enquadramento da morte do Sr. Aguas Acosta como consequência de sua tortura poderia ter levado a desfecho distinto em relação à prescrição que beneficiou os autores do crime.
81. Dessa forma, embora o Estado não seja responsável pela violação ao artigo 6 da CIPST [25] em relação à tipificação da tortura porquanto os fatos são anteriores à ratificação daquela Convenção, compartilho do entendimento da Sentença de que o Estado do Equador violou a obrigação de adequar o seu ordenamento interno, conforme previsto nos artigos 2 e 5.2 da CADH. Como visto, o tipo penal de ‘tormentos corporales’ é, de um lado muito mais – pois se restringe a pessoas presas e detidas e não abrange a dor ou sofrimento psicológico – e, de outro, muito mais amplo – pois não exige necessariamente o dolo. O conteúdo mínimo da definição de tortura segundo o direito internacional, definitivamente, não está atendido por tal formulação típica, incapaz de expressar com nitidez o injusto corporificado na tortura.” [26]
O Caso Aguas Acostas trata-se de mais um processo julgado pelo tribunal interamericano tendo como plano de fundo a violência policial contra cidadãos; o próprio Brasil foi recentemente condenado por 12 assassinatos cometidos por policiais militares do estado de São Paulo durante a denominada “Operação Castelinho”, no Caso Horonato e outros vs. Brasil, julgado no ano ado [27].
Considerando, ainda, o histórico já reconhecido pela Corte IDH de regimes autoritários em nosso continente, que utilizaram-se da tortura contra cidadãos que lhe faziam oposição, parece crucial que, em um próximo julgamento, ao se deparar novamente com a questão da tipificação deste tipo de delito, o tribunal incorpore à fundamentação da sentença os argumentos expostos por Mudrovitsch em seu voto, a fim de fortalecer os standards protetivos em nossa região.
[1] Acto de notificación de sentencia en el Caso Aguas Acosta y otros Vs. Ecuador. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qawHEZsdtdA . o em: 24/02/2025.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO AGUAS ACOSTA Y OTROS VS. ECUADOR. SENTENCIA DE 10 DE OCTUBRE DE 2024 (Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_540_esp.pdf . o em: 24/02/2025.
[3] SENTENCIA, p. 17.
[4] SENTENCIA, p. 18. Tradução livre.
[5] SENTENCIA, p. 18.
[6] SENTENCIA, p. 21.
[7] SENTENCIA, p. 22.
[8] SENTENCIA, p. 23.
[9] RESUMEN, p. 02.
[10] SENTENCIA, p. 32.
[11] Idem.
[12] SENTENCIA, p. 33.
[13] SENTENCIA, 48.
[14] SENTENCIA, p. 51.
[15] SENTENCIA, p. 58.
[16] VOTO CONCORRENTE DO JUIZ RODRIGO MUDROVITSCH. CASO AGUAS ACOSTA Y OTROS VS. EQUADOR. SENTENÇA DE 10 DE OUTUBRO DE 2024 (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_540_esp_por.docx. o em: 24/02/2025.
[17] VOTO, p. 21.
[18] VOTO, p. 22.
[19] VOTO, 23.
[20] VOTO, 23.
[21] VOTO, p.
[22] VOTO, p. 27-28.
[23] VOTO, p. 31-32.
[24] VOTO, p. 32.
[25] Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
[26] VOTO, P. 35.
[27] MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA. Corte IDH conden22. a Estado brasileiro em razão de violência policial promovida pela PM em rodovia de São Paulo. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2024/marco/corte-idh-condena-estado-brasileiro-em-razao-de-violencia-policial-promovida-pela-pm-em-rodovia-de-sao-paulo . o em: 24/02/2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!