O tempo das instituições e o tempo dos institucionalizados: entre cuidados, abandonos e invisibilidades
3 de março de 2025, 6h08
“Não é a morte como tal que faz medo. Sobretudo para alguém como eu, que, acho, viveu o suficiente. O que faz medo, ainda mais do que o sentido da angústia, é o eventual sofrimento possível que acompanha o último caminho até a morte. Como você pode imaginar, vivo num mundo povoado por velhos. Sei o que significa a longa espera da morte. Às vezes, é um sentimento terrível. Esses são os casos em que faz medo, e considero que não só para quem está morrendo, mas também para os que nos amam. Quem assistiu à lenta agonia de uma pessoa amada, como assisti à do meu pai, não precisa de outras palavras”.
Norberto Bobbio. Folha de S.Paulo, 12.jan.1997

A relevância social da garantia dos direitos dos idosos, aposentados e pensionistas no que toca ao recebimento de estipêndios e créditos atrasados, é ponto sensível da legislação brasileira. Num cenário de crescente envelhecimento populacional, a prioridade no atendimento a essas demandas não apenas reflete aspecto legal, mas também compromisso ético com a dignidade humana.
Necessário, pois, analisar as barreiras institucionais que minam a efetiva aplicação dessas prioridades, evidenciando negligências que, em última instância, configuram verdadeiro ‘abandono institucional’. A problemática torna-se agravada pela falta de observância das legislações específicas que visam amparar estes vulneráveis e hipervulneráveis, reforçando reflexão e ação concreta por parte dos gestores responsáveis.
O quadro legislativo nacional estabelece mecanismos para assegurar que idosos, aposentados e pensionistas (e aí também são contemplados aqueles acometidos com doenças raras) tenham prioridade no recebimento de seus benefícios, especialmente em casos de atrasos, cujas verbas mesmo que reconhecidas istrativamente são constantemente inadimplidas e ignoradas.
Aqui, cabe advertir a ‘prioridade’ não apenas como direito, senão ‘princípio jurídico’, porquanto utilizada em macrossistemas (direito civil, família, sucessões), leis esparsas (direito istrativo e previdenciário) e microssistemas como as leis de propriedade industrial, recuperação judicial e, destacadamente, o Estatuto da Infância e Juventude e o Estatuto do Idoso. A prioridade que caracteriza crianças, adolescentes e idosos, entretanto, é identitária, porque grupos de vulneráveis e hipervulneráveis, constantemente sujeitos às falhas do mercado, da família, da sociedade e, principalmente, do Estado. [1]
A verificação da ‘prioridade identitária’ amplia-se do simples cumprimento legal, consolidando-se como pilar de proteção aos ‘direitos humanos’. Lamentavelmente, contudo, a prática istrativa e gerencial reiteradamente desconsidera tais comandos legais. A burocracia excessiva, a limitação de recursos e a inércia dos gestores, permitem a conclusão de que a falta de efetividade dessa garantia gera ambiente de frustração da legítimas expectativas normativas, abrindo espaço para severas críticas. Para além de fornecer apoio financeiro, a prioridade identitária (como direito fundamental) é preceito de ‘dever de cuidado’ e ‘inclusão social’. [2]
Idosos, aposentados e pensionistas (muitos deles ainda arrimo de família) enfrentam dificuldades financeiras agravadas pela demora no recebimento de direitos já reconhecidos. O Estatuto do Idoso estabelece prioridade no atendimento e na tramitação de processos istrativos e judiciais que envolvem indivíduos com 60 anos ou mais. Além disso, outras normativas vinculadas à proteção do consumidor e aos direitos previdenciários reforçam a necessidade de tratamento preferencial e célere para evitar o agravamento da vulnerabilidade social vivenciada por este grupo. Em outras palavras: o constantemente negligenciado convive com um ‘direito inservível’. [3]
A Constituição, por sua vez, (re)afirma o compromisso com a proteção dos direitos dos idosos, atribuindo a eles tratamento preferencial e enfatizando a importância do respeito à dignidade humana, nesta porção etária vivenciada por dificuldades físicas, psíquicas, afetivas e, especialmente, de cuidado. As disposições fundamentais evidenciam os idosos não como ‘sujeitos de direitos e centros de imputação jurídica’, senão como ‘pessoas identificadas constitucionalmente’, caracterizadas pela condição humana da vulnerabilidade e pela notória impossibilidade em mitigar os impactos decorrentes da espera prolongada pelo recebimento de valores devidos em detrimento ao digno sustento.
O ‘abandono institucional’ de idosos e aposentados no contexto do recebimento de estipêndios e créditos atrasados revela lacuna ética abissal de descaso e desobediência às legislações vigentes que garantem prioridades fundamentais. Apesar da existência de dispositivos legais específicos, esses grupos permanecem à margem de políticas efetivas de atenção e e, enfrentando obstáculos institucionais que retardam ou até mesmo inviabilizam o o a direitos. A negligência reflete não apenas a inadequação das práticas istrativas, mas também séria e grave desconexão entre as diretrizes legais e a realidade enfrentada.
No âmbito do Ministério Público o retardamento no atendimento aos vulneráveis, membros e servidores inativos e idosos, ressoa com pior desconforto já que referida instituição, na disposição ‘leque’ transcrita no artigo 127 da Constituição revela deveres fundamentais a serem cumpridos num verdadeiro ‘guarda-chuva’ de atribuições vinculadas que não ficam presas apenas à promoção do regime democrático (regime das diferenças) e do cumprimento da ordem jurídica (cumprimento da lei), senão ao resguardo dos interesses sociais e individuais indisponíveis, onde justamente radicam ‘ossos’, ‘peles’ e ‘fósseis’ daqueles esfacelados pelo tempo devastador e que não encontram abrigo naquele que é o destinatário de deveres.
É dizer: negando-se a dignidade, nega-se a pessoa. [4]
Abandono institucional
O abandono institucional dos idosos e aposentados se reflete em várias manifestações problemáticas, incluindo a marginalização desses grupos em processos eleitorais internos, istrativos e judiciais. A falta de observância das legislações vigentes por parte dos gestores responsáveis impede que usufruam de seus direitos básicos, como o recebimento prioritário de salários e créditos atrasados, ampliando desigualdades e debilitando a qualidade de vida.
Também se diz abandono, porquanto especificamente aos aposentados sequer são cumpridos os deveres de informação mais básicos, derivados da boa-fé objetiva. [5] Desligados pela aposentadoria desconhecem a dimensão dos próprios direitos: uma vez em inatividade perdem a identidade e comunicação institucional, permanecendo equidistantes dos debates internos. Com a plataformização das instituições, aos aposentados é mitigado o direito a ‘logar’ e receber notícias essenciais, devido o cancelamento dos canais de comunicação, especialmente os correios eletrônicos. Eis outra patologia: a ‘invisibilidade institucional’.
Ao se aposentarem, os membros do Ministério Público perdem tanto o direito de votar quanto o de ser votados, o que configura forma de exclusão do espaço fundamental de representação e manifestação de seus interesses. Essa situação gera isolamento e desvalorização, como se, ao deixar a atividade, seus direitos e vozes se tornassem irrelevantes no contexto institucional.
Este fenômeno pode ser interpretado sob a perspectiva da temporalidade do Ministério Público. Enquanto a instituição é concebida como uma entidade perene, cuja missão e valores subsistem independentemente dos seus membros, a experiência dos indivíduos é finita e marcada pela agem do tempo. O ciclo de vida dos institucionalizados é, portanto, inversamente diferente do tempo institucional. Os membros do Ministério Público, ao longo de suas carreiras, dedicam-se de maneira intensa e comprometida, mas ao se afastarem da atividade, se deparam com a invisibilidade institucional e com o ‘esquecimento proposital’, verdadeiro ‘apagamento’ de suas contribuições e legados.
Os impactos sociais e econômicos do ‘abandono institucional’ são evidentes, afetando diretamente a estabilidade financeira e o bem-estar dos idosos, pensionistas e aposentados. A negligência contribui para o aumento do empobrecimento e enfraquecimento desses grupos, pois o inadimplemento e atraso na recepção de estipêndios e créditos essenciais compromete a capacidade de arcar com diversas despesas e compromissos familiares.
Economicamente, a desconsideração de suas prioridades agrava as desigualdades, sobrecarregando ainda mais os sistemas previdenciários e sociais, criando ciclo vicioso de exclusão e vulnerabilidade, sem prejuízo de aumentar a dívida pública em detrimento da responsabilidade fiscal que vincula o gestor: a ele cumpre diminuir o ivo e os encargos do ivo.
Algumas decisões judiciais são fortes modelos de proteção aos direitos dos vulneráveis no contexto da prioridade no recebimento de créditos atrasados, como é o caso do julgamento do REsp 1.648.305, no qual o STJ que reafirmou essa garantia fundamental, baseando-se em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. [6] Decisões tais não contribuem apenas para o reconhecimento teórico das prioridades legalmente estabelecidas, mas também reforçam a obrigação prática de sua observância, servindo como referência para outras instâncias do judiciário e para a sociedade em geral, alertando sobre a importância da proteção dos direitos de grupos vulneráveis.
O pragmatismo gerencial, entretanto, fulmina por vezes a distinção feita pela Constituição Federal e estatutos identitários, simplesmente igualando onde a legalidade constitucional fez questão de diferenciar. E nesse ponto, indevidamente, por normas secundárias equipara membros ingressos e membros egressos, até porque os primeiros ainda compõem o estafe deliberativo, firmes no palco das decisões, ante ausência daqueles sem voz. Um forte caminho para clivagem, para separação, para a crise institucional.
A discussão sobre os direitos dos aposentados, pensionistas e idosos (também do Ministério Público) é mais do que uma questão legal; envolve análise crítica da relação entre a instituição e seus membros. O abandono percebido por muitos aposentados após a inatividade é reflexo da necessidade de rever as políticas de inclusão e reconhecimento das contribuições anteriores, promovendo diálogo contínuo entre a instituição e aqueles que dedicaram suas vidas a ela.
É crucial que se estabeleçam mecanismos que assegurem aos aposentados, pensionistas e idosos não apenas seus direitos resguardados, mas também um espaço efetivo de participação e valorização. Isso pode incluir a criação de conselhos ou fóruns de discussão, onde os ex-membros possam compartilhar suas experiências e continuar contribuindo para a evolução da instituição, reafirmando seu valor e importância, mesmo após a inatividade ou a idade avançada. Talvez, desse modo, possamos reverter a percepção de abandono e fomentar ambiente de respeito e gratidão àqueles que dedicaram suas vidas à defesa da justiça e do bem comum.
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[1] Ver ABBOUD, Georges. Democracia e forbearance: reflexões acerca das regras implícitas no jogo democrático. In: Revista de Processo. v. 299. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 17 – 40.
[2] BRUGÉRE, Fabienne. A ética do cuidado. Trad. Ercilene Vita. São Paulo: Contracorrente, 2023, p. 63. Com apoio em Joan Tronto: “uma definição global de cuidado como uma atividade genérica que compreende tudo que fazemos para manter, perpetuar e reparar nosso ‘mundo’, de modo a quele nele possamos viver tão bem quanto ao possível. Esse mundo compreende nossos corpos, nós mesmos e nosso meio ambiente, todos os elementos que tentamos reunir em uma rede complexa, como apoio para vida”.
[3] RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 48.
[4] CAMPOS, Diogo Leite de Pessoa; ANDRIGUI, Fátima Nancy. Pessoa, direitos e Direito. São Paulo: Thomson Reuters.
[5] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito istrativo brasileiro. Porto Alegre, Fabris, 2002.
[6] Excerto do julgado: 7. “Deve-se proteger, com absoluta prioridade, os destinatários da pensão por morte de Segurado do INSS, no momento do infortúnio decorrente do seu falecimento, justamente quando se veem desamparados, expostos a riscos que fazem periclitar a sua vida, a sua saúde, a sua alimentação, a sua educação, o seu lazer, a sua profissionalização, a sua cultura, a sua dignidade, o seu respeito individual, a sua liberdade e a sua convivência familiar e comunitária, combatendo-se, com pertinácia, qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput da Carta Magna)”.
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