Mães de Haia: uma proteção proverbial à infância e juventude
6 de março de 2025, 6h30
A globalização trouxe uma maior integração econômica, social e cultural entre os povos, gerando movimentos migratórios que possibilitam a convivência entre pessoas de diversas nacionalidades e o surgimento de uniões multiculturais e famílias transfronteiriças.

Nesse contexto, surge também um drama social complexo: mães vítimas de violência doméstica que, por autopreservação e proteção aos filhos menores, retornam em fuga para o Brasil e são acusadas, pelo parceiro abusador, de sequestro internacional da própria prole, sujeitando-se ao risco – quase sempre concretizado – de perderem a guarda e acabarem afastadas dos filhos.
Em casos tais, o genitor prejudicado invoca a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças, de 25 de outubro de 1980, um tratado multilateral do qual o Brasil [1] e outros 102 países são signatários até a este momento.
A norma prevê o compromisso entre os Estados signatários de protegerem os menores de até 15 anos de idade dos efeitos nocivos da transferência não autorizada do seu país de residência habitual e/ou da sua retenção arbitrária em outro país, praticada por um dos genitores.
Uma vez acionada a cooperação internacional pelo genitor prejudicado, o Estado signatário requerido fica obrigado a ordenar, seja mediante solução amigável entre os genitores ou não, o imediato retorno do menor ao país de sua residência habitual, por força do chamado princípio do retorno imediato, previsto nos artigos 1º, 7º e 12 da Convenção.
O Estado requerido somente não fica obrigado a emitir uma ordem de regresso nas hipóteses previstas nos artigos 12, 13 e 20 da Convenção, que consistem basicamente nas seguintes situações devidamente comprovadas: (1) o menor já está inteiramente integrado ao seu novo meio social; (2) há fundadas razões para crer que o menor foi levado para outro país; (3) o requerente não exercia a guarda à época da transferência ou da retenção, (4) o requerente consentiu ou concordou posteriormente com a transferência ou retenção; (5) risco grave de o menor, no seu retorno, ficar sujeito a perigos de ordem física, psíquica, ou em situação intolerável; (6) o retorno não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Como se observa, a Convenção de Haia de 1980 tem enfoque na pessoa do menor e não estabelece nenhuma exceção ao seu retorno baseada em violência parental contra a sua genitora.
Trata-se de uma omissão normativa perniciosa porque as exceções dos artigos 12, 13 e 20 da Convenção “devem ser interpretadas restritivamente diante da regra geral de retorno à residência habitual, visto que o regresso imediato do infante ilicitamente subtraído de seu país de origem representa a providência que melhor atende aos interesses da criança” [2].
Engessamento
Essa lacuna fragiliza o compromisso de proteção à infância e juventude na medida em que abre brechas para o intolerável e não oferece segurança jurídica em situações de violência parental, a qual normalmente ocorre às escuras, longe do olhar de testemunhas e, por vezes, com o endosso cultural.
Com efeito, sobretudo quando a família reside em países onde fatores culturais e religiosos conferem ao gênero tratamento discrepante, mulheres abusadas acabam duplamente vitimizadas, pois além de vítimas de violência doméstica, são acusadas de sequestro internacional dos seus próprios filhos, deparando-se com uma verdadeira via crucis para defender o direito de permanecerem com eles.

O fato é que a Convenção de Haia de 1980 permanece engessada desde sua criação, não acompanhando as transformações sociais e globais dos últimos 45 anos. Aliás, quando da aprovação da convenção, a maioria dos casos de subtração de menores era cometida por homens. Hoje, o cenário é inverso.
O retrato brasileiro desenhado a partir da análise de 44 processos nos Tribunais Regionais Federais e no Superior Tribunal de Justiça, entre 1º/1/2017 e 30/8/2018, revelaram que (1) em 88% dos casos, as mães eram as subtratoras; (2) destes, em 19 casos a mãe alegou violência doméstica contra a criança ou contra ela; e (3) em apenas 4 casos, a decisões judiciais determinaram o não retorno da criança [3].
Diante desse cenário, a eficácia da norma tem sido amplamente questionada. Por exemplo, desde julho de 2024, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.686/DF, que busca a aplicação da Convenção de Haia em casos de violência doméstica [4]. Em junho de 2024, foi realizado na África do Sul o Fórum sobre a Violência Doméstica e a Operação do Artigo 13(1)(b) da Convenção de Haia, que discutiu a violência doméstica na operacionalização da Convenção [5]. No meio acadêmico, Rocha e Pereira defendem que “a Convenção não abarca a realidade sistêmica da sociedade contemporânea globalizada com sua vivência intercultural carregada de peculiares, contingências e aspecto polissêmico” [6], sendo necessária uma abordagem disruptiva do sistema dogmático e legalista para dar lugar à “produção de um novo direito, oriundo de um pluralismo jurídico, de um olhar pragmático-sistêmico sobre a complexidade das demandas da sociedade globalizada do século XXI” [7].
‘Situação intolerável’
Embora não concordemos com a ruptura do sistema em nome de revoluções, defendemos a ampliação do texto normativo para arrolar a violência doméstica contra a mãe como uma exceção à regra do retorno do menor ao seu país de residência habitual. Mas reconhecemos, todavia, a complexidade da questão por envolver a realidade multifacetada das diversas nações signatárias, cada qual com padrões culturais, jurídicos e religiosos que nem sempre, infelizmente, enxergam a mulher sob o prisma da igualdade.
Nesse sentido, por exemplo, conforme Flávia Piovesan, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 foi aderida por 186 Estados (até 2010) e, no entanto, foi ao mesmo tempo a Convenção sobre direitos humanos que mais recebeu reservas substanciais por parte dos Estados signatários, havendo países como Bangladesh e Egito que “acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher de praticar ‘imperialismo cultural e intolerância religiosa’, ao impor-lhes a visão de igualdade entre homens e mulheres, inclusive na família” [8].
Podemos citar o caso até mesmo do Brasil, que havia aderido à referida Convenção apenas em 20 de março de 1984, através do Decreto n. 89.460/1984, e com reservas em relação aos artigos 15, §4º [9], e 16, §1º, alíneas “a”, “c”, “g” e “h” [10], que tratavam de simples direitos e liberdades das mulheres quanto à locomoção, à escolha de domicílio e à propriedade privada [11].
Portanto, em matéria de tratados internacionais multilaterais sobre direitos humanos das mulheres, ainda paira uma inclinação ao sacrifício da integralidade da norma para maximizar a sua aplicação.
Assim, enquanto não operam-se a inovação legal e a mudança de mentalidade, urge-se que o Brasil, como signatário da Convenção de Haia de 1980, e por força dos artigos 1º, incisos II e III, 5º, inciso I, 226 e 227 da Constituição de 1988, adote exegese materialmente alinhada à proteção à infância e juventude, o que necessariamente a pela proteção à família, aos direitos humanos e à cidadania da mulher – a rigor, direitos humanos são básicos e independem de sexo, gênero, raça, cor, etnia, crença religiosa ou convicção política e filosófica.
Nessa linha, já podemos observar atualmente julgados no Superior Tribunal de Justiça interpretando o artigo 13, “b”, da Convenção de Haia, para considerar a violência doméstica contra a mãe, como o abuso sexual, um fato caracterizador da “situação intolerável” prevista naquele dispositivo [12].
Para nós, trata-se do óbvio, pois é certo que, conforme Armenta, Rodríguez e Romero, assim como sofrer na pele os maus tratos, testemunhar a violência contra a mãe no ambiente familiar repercute diretamente na conduta delitiva e comportamentos antissociais dos menores [13].
Ou seja, ainda que o menor não sofra diretamente a violência parental, a exposição a ela gera efeitos psicológicos nocivos e perturbadores, configurando assim a “situação intolerável” prevista no artigo 13, “b”, da Convenção de Haia.
Sob essa interpretação teleológica e coerente com seus objetivos, a Convenção de Haia de 1980 se mostrará um instrumento eficaz, pois permitirá que o Estado requerido negue o retorno do menor ao seu país de residência habitual e, por conseguinte, seja concretizado o fim da própria Convenção, que é proteger a infância e juventude – o que pressupõe a proteção da instituição familiar em todos os seus aspectos.
Diz Provérbios 17:13: “quanto àquele que paga o bem com o mal, não se apartará o mal da sua casa”. Trazendo a lição para o contexto das Mães de Haia, estas jamais deveriam ser criminalizadas e martirizadas, pois em verdade são mulheres vítimas da opressão e, mesmo assim, encontram coragem para, a duras penas, protegerem a prole – a mesma destinatária da proteção internacional.
[1] No ano 2000, o Brasil aderiu ao Tratado por meio do Decreto n. 3.413, de 14 de abril de 2000.
[2] STJ, AREsp 2525844/RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, T1, j. 17/12/2024.
[3] CORRÊA DE MELO, Ana Cristina; SEBALHOS JORGE, Mariana. A violência doméstica e familiar na aplicação da Convenção da Haia de 1980. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, Brasil, v. 15, n. 3, 2022. Disponível em: https://ojs.unialfa.com.br/index.php/pensamentojuridico/article/view/616. o em 26 fev 2025.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6985097. o em 27 fev 2025.
[5] HCCH. Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado. Disponível em https://assets.hcch.net/docs/1c00fde2-6656-49cb-9f58-d12899a2114b.pdf. o em 27 fev 2025.
[6] ROCHA, Leonel Severo; PEREIRA, Magda Helena Fernandes Medina. O paradoxo jurídico das Mães de Haia: de vítimas a sequestradoras internacionais de seus filhos, Revista CNJ, v.8, n.2, jul./dez. 2024, p. 155.
[7] Idem, p. 161.
[8] PIOVESAN, Flávia. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista de Magistratura, São Paulo, ano 15, n. 38, p. 21-34, Janeiro-Abril/2014. p. 25.
[9] O dispositivo prevê a igualdade entre homem e mulher quanto à “liberdade de movimento e à liberdade de escolha de residência e domicílio”.
[10] O dispositivo prevê a igualdade entre homem e mulher quanto ao “direito de contrair matrimônio”, aos “direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução”, aos “direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome, profissão e ocupação” e aos “direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, istração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto à título oneroso”.
[11] As reservas foram levantadas apenas em 20 de dezembro de 1994, mediante notificação do Estado brasileiro ao Secretário Geral das Nações Unidas.
[12] Por exemplo: STJ, AREsp 2525844/RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, T1, j. 17/12/2024; REsp 1723068/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, T2, j. 8/9/2020.
[13] ARMENTA, Martha Frías; RODRÍGUEZ, Irma; ROMERO, José Concepción Gaxiola. Efectos conductuales y sociales de la violencia familiar em niños mexicanos. Revista de Psicología de la PU, v.21, n.1, 2003.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!