Opinião

Cláusula de responsabilidade solidária em consórcio não afasta dever de aplicação individualizada de pena

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  • é advogado doutor (PhD) e mestre em Direito Público e professor de Direito istrativo sócio do Tavernard Advogados e head da área de Direito Público e vice-presidente da Associação Mineira de Direito e Economia.

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7 de março de 2025, 17h24

A responsabilidade solidária dos consorciados em contratos istrativos, infelizmente, vem sendo tratada como um dogma absoluto, trazendo o que, ao nosso ver, é uma grande incongruência jurídica: a penalização indiscriminada com sanções contratuais, sobretudo as mais graves (como o impedimento de licitar e de contratar e a declaração de inidoneidade), a todas as empresas integrantes de um consórcio que venceu uma licitação.

É muito comum haver serviços contratados pela istração pública que, naturalmente, demandem a confluência de empresas para sua execução, seja em razão da complexidade na execução (como grandes obras de infraestrutura), ou por se tratar de serviços interdisciplinares (como uma modelagem de uma concessão de serviço público). Nesses contratos, a previsão da possibilidade de consórcio de empresas é regra cogente, em vista da necessidade de se preservar a ampla competitividade, como também para resguardar a busca da proposta mais vantajosa para o poder público.

Sabe-se que os termos de constituição de consórcio regulamentam a divisão das responsabilidades entre as empresas envolvidas, as quais têm obrigações próprias, com direito a faturamento específico. Neste aspecto, a lei previu a responsabilidade solidária das empresas integrantes “por atos praticados em consórcio, tanto na fase de licitação quanto na de execução do contrato” (artigo 15, V, da Lei nº 14.133/2021). Trata-se de uma regra que busca proteger a istração contratante contra a efetividade de direitos contratuais do poder público, oponíveis à contratada.

Todavia, a cláusula de solidariedade não pode ser deturpada para se aplicarem penalidades, no âmbito de um processo istrativo punitivo, ignorando regras e os princípios do Direito istrativo Sancionador aplicáveis à espécie, que demandam a individualização das responsabilidades, especialmente, diante dos princípios da culpabilidade, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Individualização da pena no Direito istrativo

Sabe-se que o princípio da culpabilidade, aplicável no direito punitivo, possui fundamento constitucional o artigo 5º, incisos XLV e XLVI, da Constituição da República, que determina que “nenhuma pena ará da pessoa do condenado” e que a “a lei regulará a individualização da pena”. Neste aspecto, pelo princípio da culpabilidade, uma responsabilidade punitiva somente pode atingir a pessoa que tenha efetivamente contribuído para a ocorrência do ilícito e do dano gerado. Tal princípio, de natureza repressiva, aplica-se ao Direito istrativo Sancionador, conforme entendimento pacificado na doutrina e na jurisprudência [1]. Neste aspecto, Marçal Justen Filho bem explica por que a penalidade somente pode atingir a pessoa que tenha participado do ilícito, ou que poderia evitar que o mesmo ocorresse:

“Um Estado Democrático de Direito é incompatível com o sancionamento punitivo dissociado da comprovação da culpabilidade. Não se pode itir a punição apenas em virtude da concretização de uma ocorrência danosa material. Pune-se porque alguém agiu mal, de modo reprovável, em termos antissociais. A comprovação do elemento subjetivo é indispensável para a imposição de penalidade, ainda quando se possa pretender uma objetivação da culpabilidade em casos concretos” [2].

Nesse contexto, verifica-se que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), como se deduz dos artigos 20 [3] e 22 [4], determina que a análise individualizada de culpabilidade deve ser aferida pelo agente, quando da aplicação de uma sanção, bem como que a pena a ser aplicada deve ser aferida com base no crivo da necessidade e da adequação.

Em vista dessas diretrizes, é comum haver previsão, nos respectivos termos de constituição do consórcio que integram a contratação pública, de cláusula que preveja a individualização de responsabilidade, especialmente porque ilicitudes e inadimplementos podem ocorrer singularmente entre os membros do consórcio, sem que haja a possibilidade de um consorciado controlar eventuais desvios realizados por outra empresa consorciada. Para piorar, há situações em que irregularidades contratuais são cometidas por consorciados posteriormente ao término de execução de obrigações contratuais por outros integrantes.

Spacca

Em casos assim, é possível identificar que o entendimento jurisprudencial sobre a matéria tem caminhado no sentido de que a penalidade deve ser aplicada conforme a conduta específica de cada consorciado. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, já decidiu que, salvo disposição contratual expressa, a responsabilidade solidária dos consorciados deve ser analisada à luz do artigo 278 da Lei das SAs e do artigo 265 do Código Civil, não podendo ser imposta de forma automática a todos os integrantes do consórcio (TJ-DF, AI 0726320-16.2019.8.07.0000 [5]).

Considerando a premissa de que as sanções devem considerar a gravidade da conduta e as circunstâncias agravantes ou atenuantes, tal como referenciado na Lindb, ao aplicador da pena é cogente a apreciação de individualização e/ou de proporcionalidade da sanção frente as circunstâncias que lhe foram impostas, em vista da culpabilidade de cada agente. Com efeito, a função istrativa deve ser exercida validamente na extensão e intensidade ao fato que o demanda. Neste aspecto, como bem pontua Marçal Justen Filho, “a punição, instituída em norma geral e abstrata, é concretizada por meio de decisão que examine ascondições da realidade e permitam a individualização do sancionamento [6].

Adicionalmente, o dever de individualização de penalidades, no âmbito do consórcio de empresas, mesmo diante de cláusulas de responsabilidade solidária, quando possível, é determinante, não apenas, em razão do princípio da culpabilidade, mas, também, em razão de preceitos da segurança jurídica, do princípio da lealdade e da boa-fé objetiva, também aplicáveis à istração pública.

Conforme bem pontua Celso Antônio Bandeira de Mello, durante todo o procedimento istrativo, “a istração deve agir de forma lhana, sincera, ficando, evidentemente, interditos quaisquer comportamentos astuciosos, ardilosos, ou que, por vias transversas, concorram para entravar a exibição das razões ou direitos dos istrados” [7].

Em síntese, a istração pública deve criar um clima de confiança e de previsibilidade, em sintonia com o próprio ideal de segurança jurídica, mencionado anteriormente. A proteção da lealdade e da boa-fé é um aspecto da moralidade istrativa (artigo 37, caput, da CR88) que pressupõe que certas expectativas legítimas suscitadas no istrado, em razão de determinados comportamentos da istração pública, possam dar ensejo a efeitos jurídicos previsíveis.

Se, por pressuposto, a istração pública deve ser confiável, o istrado, nesse como, deve poder ter o direito à estabilidade da situação jurídica, com base na qual tenha agido, quando sua atuação zelosa e de boa-fé decorra de confiança no comportamento do órgão público. A “segurança jurídica” é a própria razão de ser de um Estado de Direito: conferir estabilidade e previsibilidade às relações jurídicas, de forma a coibir injustiças a direitos adquiridos e a situações consolidadas. É em razão de tal princípio que nossa Constituição da República de 1988 consagrou as garantias fundamentais da irretroatividade da lei e de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (artigo 5º, XXXVI).

Tais premissas jurídicas, que influem no dever de proteção da confiança perante o istrado, implicam reconhecer a impossibilidade de extensão dos efeitos de penalidades a todos os consorciados, especialmente aquelas limitadoras de direito (como o impedimento de licitar e de contratar), em razão de eventos praticados apenas por uma, ou algumas, empresas integrantes do consórcio, quando é possível haver a individualização da conduta.

Neste aspecto, não se pode deixar ao alvedrio da istração a aplicação da penalidade de forma indiscriminada e não individualizada para a pessoa jurídica que foi responsável pelo ilícito, até porque, como se sabe, o consórcio não detém personalidade jurídica e, logo, não é detentor de direitos e de obrigações autônomos dos direitos dos consorciados. Dessa forma, além das implicações na segurança jurídica, não há como ver algum sentido racional (princípio da razoabilidade) para a aplicação não individualizada da penalidade, quando é possível aplicar, de forma efetiva e exata, a penalidade à empresa infratora.

Portanto, é de se ter em mente que, independentemente de cláusulas que prevejam a responsabilidade solidária por atos do consórcio, o direito istrativo sancionador – em razão de normas de natureza constitucional – exige a individualização das sanções, garantindo que apenas os consorciados responsáveis pelos atos ilícitos sejam punidos.

 


[1]  Com efeito, Marçal Justen Filho, bem explica essa relação entre Direito Penal e Direito istrativo Repressivo: “Embora não seja possível confundir Direito Penal e Direito istrativo (Repressivo), é inquestionável a proximidade dos fenômenos e institutos. Como ensina George Dellis, reconhece-se que “a ideia clássica de autonomia pura e simples da ação istrativa e da ação penal está muito bem ultraada: a concepção da unidade do domínio repressivo ganha progressivamente terreno”. Por isso, os princípios fundamentais de Direito Penal vêm sendo aplicados no âmbito do Direito istrativo Repressivo, com a perspectiva de eventuais atenuações necessárias em face das particularidades do ilícito no domínio da atividade istrativa. Mas a regra é a de que os princípios fundamentais do Direito Penal devem ser respeitados, especialmente pela impossibilidade de distinção precisa e absoluta entre sanções istrativas e penais” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos istrativos. 16ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014,  p. 1.138 e ss.).

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Op cit. p. 1144.

[3] “Art. 20.  Nas esferas istrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma istrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

[4] “Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos istrados […] § 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a istração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.” (g. n)

[5] Vide ementa da decisão: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO EMPRESARIAL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. CONSÓRCIO TIISA-CMT EXTINTO. EMPRESA LÍDER E RESPONSÁVEL PELAS OBRIGAÇÕES DO CONSÓRCIO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUSPENSÃO DO CURSO DO PROCESSO. PEDIDO DE INCLUSÃO DA SEGUNDA CONSORCIADA NO POLO IVO. ARTIGO 278, INCISO I, DA LEI Nº 6.404/73. ARTIGO 265 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. INDEFERIMENTO. DECISÃO MANTIDA. 1. Os consórcios não são dotados de personalidade jurídica própria, e as sociedades consorciadas apenas se obrigam nas condições previstas no contrato de constituição, respondendo cada uma por suas respectivas obrigações, sem presunção de solidariedade, consoante o disposto no artigo 278, §§ 1º e 2º, da Lei nº 6.404/76. 2. Salvo disposição contratual em sentido diverso, a solidariedade das consorciadas nos termos do artigo 33, V, da Lei nº 8.666/93, diz respeito apenas aos atos praticados em consórcio, decorrentes de contratos públicos e licitações celebrados com a istração Pública. 3. Estabelecido no Contrato de Constituição do Consórcio que à empresa líder caberá a representação do Consórcio e das Consorciadas perante o cliente e terceiros, bem assim a assunção de todas as responsabilidades bem como receber citação, responder istrativamente e judicialmente pelas Consorciadas, além de responder, inclusive em nome próprio perante terceiros pelas obrigações assumidas pelo Consórcio, não é possível reconhecer a responsabilidade solidária da segunda empresa consorciada. 4. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-DF 07263201620198070000 DF 0726320-16.2019.8.07.0000, Relator: CARLOS RODRIGUES, Data de Julgamento: 18/03/2020, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 04/05/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)”

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações istrativas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 1662.

[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito istrativo. 27ª ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2010pag. 481.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Público., sócio do escritório Tavernard Advogados e coordenador da área de Direito Público e professor de Direito istrativo.

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