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A lei do tombamento foi recepcionada pela Constituição de 1988?

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15 de março de 2025, 8h00

Sob a ótica constitucional, o ponto de partida para a efetiva preservação do patrimônio cultural no Brasil deu-se por meio da Constituição Federal promulgada em 16 de julho de 1934, que instituiu, pioneiramente, no ordenamento jurídico brasileiro, a função social da propriedade (artigo 133, inciso XVII), bem como estabeleceu os primeiros comandos constitucionais impondo a proteção do patrimônio cultural, nos seguintes termos:

“Art. 10 – Compete concorrentemente à União e aos Estados:

III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte;

Art. 148 – Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.”

Essas inovações constitucionais assentaram as bases para a criação de instrumentos legais capazes de garantir eficazmente a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, que tratava da estrutura do Ministério da Educação, o governo de Getúlio Vargas criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), com o objetivo de promover, no território nacional, o tombamento, a conservação e a divulgação desse patrimônio.

Na Carta do Estado Novo, outorgada em 10 de novembro de 1937, a matéria foi regulamentada pelo artigo 134, nos seguintes termos: Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

Cumprindo a vontade constitucional, o Estado Novo editou, com apenas 20 dias de sua existência, o seu 25º Decreto-lei, no dia 30 de novembro de 1937, organizando a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, norma que ou a ser popularmente conhecida como “Lei do Tombamento”.

Entende-se que o Decreto-lei nº 25/37, na quadra atual do ordenamento jurídico brasileiro, possui status de lei ordinária, tem força vinculante em todo o Estado federal e aplica-se, indistintamente, à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, enquadrando-se no conceito de “Lei Nacional”, que estabelece normas gerais sobre a “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”, nos termos do artigo 24, VII, da Carta Magna [1].

A natureza geral da norma impede que outros entes federativos desnaturem o regime jurídico do tombamento mediante a edição de leis desconformes com o regramento matriz, de âmbito nacional.

Entretanto, teria sido o Decreto-Lei nº 25/37 recepcionado integralmente pela Constituição de 1988?

Sobre o assunto é preciso relembrar que, com a ruptura da ordem constitucional anterior, surge a questão de saber como ficam as normas infraconstitucionais que integravam o ordenamento jurídico pretérito.

Spacca

Pela teoria da recepção, uma Constituição nova, resultante da ruptura do ordenamento jurídico, recebe para a composição do novo ordenamento todas as normas  integrantes do sistema anterior que não sejam com ela materialmente incompatíveis.

Tal medida mostra-se imprescindível, pois  “não é razoável pretender-se elaborar todo o ordenamento que terá como fundamento de validade a Constituição nova, porque isto seria impraticável, pelo menos no curto espaço de tempo necessário a eliminar a insegurança resultante do enorme espaço vazio de normas. É evidente, assim, a necessidade do preenchimento desse vazio de normas, que se faz com a recepção das normas infraconstitucionais que integravam o ordenamento anterior. Normas que tinham fundamento de validade na Constituição anterior e que são materialmente compatíveis com a nova Constituição” [2].

Feitas tais introduções, pelo cotejo do texto do Decreto-lei nº 25/37 com o da Constituição da República vigente, temos que a Lei do Tombamento foi parcialmente recepcionada pela nova Carta Magna.

Com efeito, embora a grande maioria dos dispositivos guardem observância e compatibilidade com o texto constitucional, o que já foi objeto de reconhecimento genérico pelo Supremo Tribunal Federal [3], entendemos que dois dispositivos se chocam com as novas regras estabelecidas, de sorte que não foram recepcionados e, logo, não são aplicáveis.

O primeiro deles é o § 1º do artigo 1º da Lei do Tombamento, que dispõe:

§1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.

Tal previsão, que exige a inscrição nos Livros do Tombo para que os bens em a integrar o patrimônio cultural nacional, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que no artigo 216, § 1º, estabelece: § 1º – O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Segundo a nova ordem constitucional, vários são os instrumentos de proteção ao patrimônio cultural, sendo o tombamento apenas um deles e não mais o único. Desta forma, descabido exigir-se a inscrição de um determinado bem em um dos Livros do Tombo para considerá-lo integrante do acervo de bens culturais merecedores de tutela. Com efeito, a ação estatal de salvaguarda do patrimônio cultural do Brasil não se confunde mais com a mera aplicação do tombamento.

Como já tivemos a oportunidade de escrever alhures [4]:

“O art. 216, § 1º  da CF/88 instituiu o princípio da não taxatividade dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural brasileiro ao enumerar, de maneira exemplificativa, alguns instrumentos de proteção (tombamento, inventário, registro, vigilância, desapropriação) e inserir uma cláusula de abertura no sentido de que para se alcançar tal objetivo poderão ser utilizadas outras formas de acautelamento e preservação.

Desta forma, não existe taxatividade acerca dos instrumentos que podem ser utilizados para se proteger o patrimônio cultural brasileiro. Ao contrário, qualquer instrumento que seja apto a contribuir para a preservação dos bens culturais em nosso país (mesmo que não se insira entre aqueles tradicionais, a exemplo do tombamento) encontrará amparo no art. 216, § 1º, parte final, da CF/88.

Vige, em nosso país, a máxima amplitude dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural.”

Outro dispositivo que, a nosso sentir, não restou recepcionado pela Constituição Federal é o artigo 5º da Lei do Tombamento, que prevê o chamado “Tombamento de ofício”, assim dispondo:

“Art. 5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada, a fim de produzir os necessários efeitos.”

Ante a ordem constitucional vigente, entendemos que tal modalidade de tombamento não mais subsiste, uma vez que, sob pena de malferimento ao postulado da isonomia dos entes constitucionais (artigo 18 da CF/88), sustentado pela estrutura federativa do Estado brasileiro, deve-se assegurar aos entes federativos o direito de impugnar a pretensão do órgão tombador, mesmo que o bem seja de propriedade da União.

Vale lembrar que, quando da edição do Decreto-lei nº 25/37, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional integrava a própria estrutura da União, sem personalidade jurídica própria. Atualmente, as competências daquele antigo Serviço são de responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que é uma autarquia federal [5].

Por isso, o tombamento envolvendo bens culturais de propriedade da União, estados, Distrito Federal e municípios pressupõe, para sua validade, obediência aos princípios do contraditório e da ampla defesa, facultando ao proprietário da coisa cuja proteção se pretende o direito de se opor à constrição.

Enfim, mostra-se necessária a correta leitura do Decreto-lei nº 25/37 sob as luzes da Constituição vigente, que, por sua hierarquia superior, prepondera sobre os dispositivos acima citados, razão pela qual não eles foram recepcionados pela nova ordem constitucional.

 


[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do tombamento comentada. Belo Horizonte: Del-Rey, 2014. p. 2.

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Teoria da recepção no direito intertemporal. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 17, n. 89, p. 15-24, jan./fev. 2015.

[3] A ordem constitucional vigente recepcionou o Decreto-Lei nº 25/1937, que, ao organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, estabeleceu disciplina própria e específica ao instituto do tombamento, como meio de proteção de diversas dimensões do patrimônio cultural brasileiro. (STF – ACO 1.966 AGR/AM, rel. min. Luiz Fux, DJ 24/11/2017).

[4] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i. 2021. p. 71-72.

[5] O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é uma  autarquia federal constituída pelo Decreto nº 99.492, de 3 de setembro de 1990, com base na Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, vinculado ao Ministério da Cultura.

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