Chegou a hora de falar sobre dano existencial no Direito de Família
15 de março de 2025, 11h22
Amplamente reconhecido na Justiça do Trabalho [1] e, cada vez mais, no Direito do Consumidor [2], o dano existencial começou a ser tratado recentemente como uma espécie autônoma de dano, que não se confunde com o dano moral, tal qual ocorreu, em um ado recente, com o dano estético, consagrado na Súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça.

No âmbito trabalhista, o dano existencial se configura quando a atividade laboral priva o trabalhador de realizar escolhas fundamentais para sua vida pessoal, como ar tempo com a família, desenvolver-se intelectualmente ou exercer atividades de lazer. Esse conceito se ancora no princípio da dignidade humana e na ideia de que a vida não se resume à esfera profissional. Cada vez com maior frequência, os tribunais analisam certas situações concretas em que trabalhadores têm a sua existência atingida, na medida em que o trabalho a que se submeteram impactou negativamente sobre sua qualidade de vida e sua realização pessoal.
De forma semelhante, no Direito do Consumidor, a teoria do desvio produtivo [3] tem sido utilizada para acolher a ideia de dano existencial e reconhecer o direito à indenização de situações em que o consumidor precisa despender tempo e esforço excessivos para resolver problemas causados por fornecedores de produtos ou serviços, afetando sua rotina e seu bem-estar. Nessa medida, o dano existencial se refere à lesão sofrida pelo consumidor quando ele é privado de usufruir de aspectos essenciais da sua vida, como o lazer, o convívio familiar ou o desenvolvimento pessoal, devido a uma falha no produto ou serviço contratado.
Feitas essas considerações, problematizamos por que não estamos debatendo o dano existencial no âmbito do Direito Civil em geral e no direito de família em especial, pois é difícil não pensar no quanto as relações familiares não são terreno fértil para esse tipo de dano, que muitas vezes a sutilmente desapercebido pelo nosso cotidiano e pela normalização de situações que vão se tornando abusivas ao longo do tempo.
Carlos Fernandez Sessarego (2022) defende que o direito deve reconhecer e reparar os danos que afetam a existência da pessoa, ou seja, aqueles que impedem ou dificultam o desenvolvimento pleno de suas potencialidades e projetos de vida. Ele introduz o conceito de dano existencial como uma categoria autônoma de dano, distinta do dano material e do dano moral, que ocorre quando uma pessoa é privada de sua liberdade de autodeterminação, de sua capacidade de escolha e de sua possibilidade de realizar-se como ser humano [4].
A seu turno, para Diniz (2020), o dano existencial é constituído não pelo dano direito à moral de um sujeito de direitos, isto é, ao conjunto de valores do indivíduo, tanto consigo mesmo quanto com os outros atores do campo social; mas, ao contrário, ele é auferido a partir de um dano que atinja seu estilo ou projeto de vida, ferindo sua autonomia privada.
Conferindo uma expansão ao princípio do mínimo existencial delineado pelo ministro Luiz Edson Fachin (2001) para descrever o núcleo patrimonial mínimo que uma pessoa precisa ter resguardado para uma vida digna [5], propomos que esse conceito seja expandido para abranger a tutela de direitos extrapatrimoniais, ampliando, assim, seu significado e seu alcance para que se projete no campo da responsabilidade civil e permita a melhor caracterização e a quantificação do chamado dano existencial.
Visão da doutrina
Como se sabe, o dano extrapatrimonial atinge os direitos da personalidade do indivíduo, como a honra, a imagem e a liberdade (Bodan de Moraes, 2006). Nesse sentido, o dando existencial não deixa de ser uma espécie de dano extrapatrimonial, mas que precisa ser tratado de modo independente para melhor tutelar seus efeitos jurídicos. Isso porque se entende que o dano existencial pode compreender, também, danos patrimoniais íveis de indenização, conforme amos a expor.
Verbicaro e Cruz (2018) associam a responsabilidade civil existencial ao dever de reparação que surge a partir do momento em que o dano existencial ocorre, isto, na medida em que um sujeito de direitos influencia na esfera existencial do outro — a esfera existencial é um conceito complexo, de difícil definição; para o argumento apresentado no artigo, entende-se dano existencial aquele apresentado acima: quando um sujeito impede que outro possa executar o seu projeto de vida, o que pode decorrer de um ato ilícito ou lícito.
De outra banda, para Rampazzo (2009), a lesão que caracteriza o dano existencial “é uma afetação negativa, total ou parcial, permanente ou temporária, seja a uma atividade, seja a um conjunto de atividades que a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano, e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realização, ou mesmo suprimir esta sua rotina” (2009, p. 44).
Assim, o dano existencial, no âmbito geral da responsabilidade civil, é aquele ligado ao dano direto ao projeto de vida. O evento danoso atua de maneira a prejudicar o complexo relacional do sujeito, inviabilizando, diminuindo ou anulando seus afazeres costumeiros da vida, o que pode se manifestar biologicamente (por meio de efeitos na saúde mental do indivíduo), moralmente (afetando profundamente todo o plexo de concepções que o sujeito tem de si mesmo) e patrimonialmente (afetando a vida financeira e sua carreira).
Logo, ainda que haja, em grande medida, uma intersecção entre dano moral e existencial, é preciso ressalvar que este último é mais amplo, isto é, não afeta apenas o âmbito moral do indivíduo, causando danos a seus direitos da personalidade, mas afeta o seu projeto de vida como um todo, impedindo que seja funcional nas esferas cotidianas, o que significa repercussão patrimonial mais significativa do que a que ocorre no dano moral.
Conforme apontam Hatoum e Colombo (2022), a defesa do dano existencial na doutrina brasileira, em conformidade com o direito comparado, pode ser realizada a partir do “centralismo da axiologia constitucional”, no contexto da constitucionalização do Direito Civil, categorizando-se ele como dano autônomo que necessita de investigação singular (2022, p. 03).
Cuidar é dever
Nesse sentido, ando à definição de seu objeto. O bem jurídico que sofre a lesão é o projeto de vida constituído pelo indivíduo, o qual se estabelece como o conjunto, autêntico, de escolhas que ele realizou por meio de sua autonomia da vontade, exercendo todos os direitos garantidos pelo mundo do direito. A existência, assim, permite que cada um conduza a própria vida, em vez de se deixar levar ou limitar-se por elementos externos. Toda vez que essa condição é retirada por um ato de um terceiro, pode-se dizer que existe dano existencial.
Ora, se há dano existencial nas relações de trabalho e de consumo, com maior razão há, também, nas relações familiares, haja vista que estas estão na centralidade da realização do projeto de vida dos indivíduos. Afinal, é na família que o indivíduo é introduzido ao mundo e a todos os direitos relacionados ao exercício de sua autonomia, além do que é nela que ele se realiza intimamente e desenvolve seu projeto de vida e de conjugalidade.
Os pais têm, nesse aspecto, não só o dever, mas a responsabilidade de conduzir o indivíduo em direção a efetividade do seu projeto, garantindo sua autonomia. Para Hans Jonas, filósofo Alemão e autor do Princípio Responsabilidade (2006), a responsabilidade dos pais em relação aos seus filhos “visa à pura existência e, em seguida, visa a fazer da criança o melhor dos seres”, isto é, “a responsabilidade [dos pais] abarca o Ser total do sujeito, todos os seus aspectos, desde a sua existência bruta até seus interesses mais elevados” (2006, p. 180).
De outro modo, os cônjuges têm não só deveres, mas a responsabilidade de respeitar e contribuir para o desenvolvimento do projeto de vida comum. O artigo 1.566 do Código Civil estabelece os deveres recíprocos do casamento, incluindo fidelidade, vida em comum, mútua assistência e respeito, o que reforça a ideia de que a quebra dessas obrigações pode gerar impactos existenciais e repercussões patrimoniais.
A propósito, a jurisprudência do STJ tem reconhecido, em alguns casos, o dever de reparação civil quando há abuso emocional ou comportamentos que inviabilizam o pleno desenvolvimento da pessoa no âmbito das relações familiares. Talvez o caso mais emblemático seja o do abandono afetivo entre pais e filhos, que foi reconhecido pela jurisprudência e pode ser enquadrado como um exemplo dano existencial. Em julgamento paradigmático, o STJ, no REsp nº 1.159.242/SP, consagrou a máxima de que “amar é faculdade, cuidar é dever” e a reforçou a possibilidade de indenização quando há omissão injustificada no dever de cuidado, considerando o impacto direto na dignidade e no desenvolvimento do indivíduo afetado.
Outro exemplo é a alienação parental, em que um dos genitores manipula a consciência dos filhos para afastá-los do outro. Essa prática não apenas prejudica a relação entre pais e filhos, mas também interfere no projeto de vida do genitor alienado, que perde a possibilidade de exercer a paternidade ou maternidade de forma plena. O impacto vai além do sofrimento emocional, atingindo a própria dinâmica existencial desse indivíduo.
A aplicação da teoria do dano existencial ao Direito de Família também pode ser relevante nos casos de relações abusivas e de violência psicológica. O cônjuge que é sistematicamente desvalorizado, impedido de trabalhar ou de manter relações sociais sofre um prejuízo muito mais amplo do que um simples dano moral: sua própria existência é afetada. A falta de liberdade para decidir sobre sua própria vida e a imposição de um isolamento forçado são elementos caracterizadores do dano existencial. Disso emerge um dano moral, que atinge a personalidade do sujeito, mas também pode emergir um dano material, consubstanciado no que a pessoa deixou de fazer profissionalmente em prol da família, conectando-se, em alguma medida, com a ideia já consagrada de alimentos compensatórios, que essencialmente buscam reparar a perda do poder aquisitivo e reestabelecer o equilíbrio financeiro de um dos cônjuges.
Considerações finais
Em suma, é possível afirmar que o dano existencial no Direito de Família merece ser reconhecido para que seja amplamente debatido, pois afeta diretamente a autonomia e os projetos de vida dos indivíduos.
Sem prejuízo disso, e empolgação à parte, o dano existencial nas relações familiares deve ser analisado com o cuidado que exigem as nuances de cada situação particular, sobretudo para não ressuscitar a “culpa” no âmbito das relações conjugais e permitir, com isso, a indevida interferência do estado no âmbito das famílias.
Com efeito, a proteção de vulnerabilidades e a reparação integral do dano não podem servir de pretexto para que perspectivas morais sobre a família ressurjam e sejam utilizadas para intervir sobre a liberdade das pessoas. A reparação do dano existencial deve ser excepcional e se reservar o papel de tratar daquelas situações que transbordam o que se pode enquadrar como um dissabor cotidiano e que, dada sua gravidade, afetam a existência das pessoas, como ocorre nos casos de abandono afetivo, alienação parental e sobrecarga desproporcional de responsabilidades conjugais.
Referências
DINIZ, Maria Helena. Proteção Jurídica da existencialidade. Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade,Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001
HATOUM, Nida Saleh; COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Da necessidade de identificação do dano existencial na responsabilidade civil. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 1–19, 2022. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/701. o em: 5 fev. 2025.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: Ensaios de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto ; Ed. PUC RIO, 2006.
KHATIB, Milagros Koteich. La dispersión del daño extrapatrimonial em Italia. Dano biológico vs. “daño existencial”. Revista de Derecho Privado, n. 15, 2008.
MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação. Revista da faculdade de direito da UFRGS, v. 19, março 2001.
MELLO, Fernando de Paula Batista. O dano não patrimonial transindividual. Revista de Direito do Consumidor: RDC, v. 23, n. 96. p. 41-74, nov./dez. 2014.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v. 9, n. 29, jul./dez. 2006.
SESSAREGO, Carlos Fernández. Il diritto come libertà. Macerata: Quodliet, 2022.
SESSAREGO, Carlos Fernández. É possível proteger, juridicamente, o projeto de vida? In: Revista Eletrônica de Direito e Sociedade, Canoas, v. 5, n. 2, p. 41-57, nov. 2017.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009
[1] Citem-se o RR-20813-45.2016.5.04.0812 e o ARR-927-97.2015.5.02.0441, ambos do TST.
[2] Cita-se, a título de exemplo, o RI 0649244-23.2021.8.04.0001 do TJAM.
[3] Cita-se o caso emblemático de dano moral coletivo no REsp n. 1.737.412/SE, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/2/2019, DJe de 8/2/2019.
[4] SESSAREGO, Carlos Fernández. Il diritto come libertà. Macerata: Quodliet, 2022.
SESSAREGO, Carlos Fernández. É possível proteger, juridicamente, o projeto de vida? In: Revista Eletrônica de Direito e Sociedade, Canoas, v. 5, n. 2, p. 41-57, nov. 2017.
[5] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001
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