Juízes municipais e ad hoc, promotores municipais e ad hoc e defensor dativo?
17 de março de 2025, 16h24
Houve um tempo em que o Brasil teve juízes municipais e promotores de justiça ad hoc.
Os juízes municipais existiram após a nossa independência de Portugal, instituídos pelo Código do Processo Criminal de 1.832 [1], artigo 5º, que também cuidava dos promotores públicos, prevendo que a sua escolha decorria de lista tríplica das Câmaras Municipais (artigos 36-38). Já a Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, detalha as atribuições dos juízes municipais, artigos 13 a 21, mesma norma que fala da nomeação dos promotores pelo imperador, presidentes de províncias ou pelos juízes (artigos 22 e 23). [2]
Historicamente, não foi há tanto tempo e, nas décadas mais recentes, tanto a magistratura quanto o Ministério Público fortaleceram o seu status constitucional e legal, como também fizeram a Defensoria Pública e a advocacia, pública e privada — estes na Carta Política de 1988, que é a Constituição Cidadã.
Não mais há espaço para se itir juízes municipais ou ad hoc, porquanto o sistema jurídico somente ite a existência do Poder Judiciário no âmbito da União, dos estados e do Distrito Federal. Acompanham essa posição jurídica os demais atores públicos do sistema, como os promotores, os defensores públicos e os advogados públicos, carreiras que só se alcança após submissão e aprovação em concursos públicos. É regra de proteção para o próprio Sistema de Justiça e para os jurisdicionados.
Tripé público com a Justiça
Nesta senda, a paridade de armas entre acusação e defesa não é meramente formal. É instrumental, empírica, intelectual e real. Ao Estado brasileiro, que constitucionalmente optou pela acusação pública e pela defesa pública, formando um tripé público com a Justiça, cabe estruturar profunda e idealmente cada um desses atores.
No enfoque do texto, falamos aqui do processo criminal apenas como símbolo dos demais ramos do direito. Não temos juízes ad hoc, promotores ad hoc ou defensores públicos ad hoc, designados para atuar em caso concreto, por qualquer motivo que seja. Imaginam alguém ser nomeado juiz para julgar o caso de A ou B, ainda que fosse pela inexistência de juiz em certa comarca? O mesmo princípio-garantia dos cidadãos está em incorrer a possibilidade de haver acusação a cargo de promotor ad hoc ou defesa pública que não fosse a cargo da Defensoria Pública.
No que diz respeito à defesa pública, a cargo da Defensoria Pública, é importante se notar que, ao tratar da garantia de o aos hipossuficientes ao Poder Judiciário (Constituição, artigo 5º, inciso LXXIV — o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos), a Constituição vincula a esse dispositivo o seu artigo 134, que regula a Defensoria Pública em âmbito nacional (normativa introduzida pela Emenda Constitucional 80/2014). Essa vinculação é fortalecedora dos laços constitucionais evidentes entre os institutos, com a previsão do o à Justiça, a assistência jurídica integral e gratuita e a instituição pública constitucionalmente vocacionada ao exercício de tal mister e a conferir efetividade ao mandamento constitucional.
Corolário dessa imprescindibilidade, está no que na Constituição introduziu a Emenda Constitucional 80/2014 [3], alterando a redação do artigo 98 da Carta Política para fixar prazo de oito anos para que a União, o Distrito Federal e os estados federados criassem cargos de defensor público, alvitrando que, após este prazo, houvesse um desses profissionais ao lado de cada órgão jurisdicional.
Lamentavelmente, em Direito, não se trata de “norma jurídica”, mas sim de um regramento de princípio ou diretriz, diante da ausência de sanção prevista para o caso de descumprimento — deveria haver previsão para o caso de descumprimento, de sorte que os que não cumprissem a regra perdessem o a empréstimos e recursos ou tivessem outra modalidade de sanção.

Limitar a influência de poderosos
Avançando, é necessário destacar o fato de que as garantias de inamovibilidade que ao juiz se concede para que poderosos não possam “trocar de juiz” também está na raiz da inamovibilidade dos promotores e dos defensores, para que nem o presidente, os governadores ou poderosos capitalistas influenciem a ponto de decidir quem julga, quem acusa e quem defende a qualquer um. O sistema jurídico se protege em prol da isenção, da seriedade, da postura e de julgamentos justos no cotidiano das comunidades das nossas cidades. Somos um país infinitamente bom e com boas pessoas, mas mesmo isso não nos livra de quem pretendesse burlar o sistema em proveito próprio.
Noutro prisma, o que se está a considerar não é haver ou não advogado para a defesa do mais carente. Esse tema não está sob enfoque, aqui, estando a prestigiosa classe a merecer todos os elogios e louvores. O único aspecto — e de relevância constitucional — sob exame é a vocação do texto constitucional para que não haja atuação ad hoc na magistratura ou ministério público ad hoc ou defensoria pública ad hoc — por não se a itir e por simetria. Qualquer substituição poderia ser vista como assistemática.
Ademais, já escrevemos: [4]
“ADPF – AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: CABIMENTO E NATUREZA JURÍDICA A ADPF, por vocação constitucional, NÃO é avocatória de qualquer ação ou competência ordinária de órgão judicante e nem é substitutiva de qualquer ação. “A ADPF não substitui o agravo regimental, a reclamação, os recursos ordinários e extraordinários, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança individual e coletivo, o mandado de injunção, a ação popular e a ação civil pública. Também não pode ser ajuizada no lugar da ação direta de inconstitucionalidade por ação ou omissão, da ação interventiva ou da ação declaratória de inconstitucionalidade.” (UADI LAMMÊGO BULOS, Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, 2021, p. 333).
Na mesma linha é o pensamento do jurista Clémerson Merlin Clève. A ADPF tem algo do recurso constitucional alemão — Verfassungsbeschwerde — e os institutos estrangeiros não podem ser simplesmente inseridos em nosso Sistema (mesmo porque aqui já existe o recurso extraordinário, que serve para aquela mesma finalidade). Nesse sentido, não será itida “sempre que houver outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado” (STF, ADPF 3/CE, ADPF 12/DF e outras — Uadi Lammêgo Bulos, fonte citada, p. 332).
Orçamento dos municípios
Salvo melhor juízo, a hipótese de não ter natureza avocatória desafiaria ação declaratória de nulidade ou com pretensão rescisória, mas isto é tema para outro artigo. Outrossim, se não é vocação municipal atividade jurisdicional e se esta carece da postulação que, na seara pública, é cometida constitucionalmente às Defensorias Públicas, como ficaria o orçamento dos municípios para obter recursos e regularmente destiná-los para estes gastos?
Também a respeito refletimos, no citado artigo: “Ademais, sob a ótica dos gastos públicos, estes só se justificam se e quando estiverem de acordo com orçamento, previsão legal e as regras de finanças públicas aplicáveis. Nesta senda, não seria suscetível a questionamento a criação de um serviço municipal que não encontre autorização na Constituição? A ideia é se proteger os gestores públicos e o erário. Estaria autorizado o município a gastar dinheiro público na realização de uma atividade que a Constituição não se lhe atribua? A questão poderia até parecer ser solucionada por edição de norma municipal e na ótica do orçamento municipal, mas talvez possa representar um bis in idem concorrente com gastos públicos estaduais e federais — estes de acordo com a expressa previsão da Constituição. De toda sorte, mesmo norma municipal a respeito tem de estar em consonância com a Carta Federal e com observância da repartição constitucional de competências, simetria e respeito ao pacto federativo.”
Ao sugerir a possibilidade de serviço municipal público e remunerado com verbas que seriam destinadas às Defensorias Públicas, subverte-se a ordem constitucional, esvazia-se o vigor da Emenda Constitucional 80/2014, introduz-se um serviço de justiça no âmbito dos 5.700 municípios e… quiçá, assim, se inaugura um futuro caminho para que voltem a existir os promotores de justiça ad hoc e os juízes ad hoc, também, inclusive, além disso, como órgãos das estruturas dos municípios. Para quem achar que não ocorreria, basta ver que o primeiro o se dá com a municipalização do o à justiça e esse caminho dos dativos nos municípios onde não houver Defensoria Pública … Quem dirá, com absoluta segurança, que esse movimento pela municipalização da Justiça não chegará aos promotores do tipo ad hoc e municipais e aos juízes do tipo ad hoc e municipais? Aliás, há mais um elemento importante, pois esse movimento já chegou à advocacia pública, na medida em que o Código de Processo Civil inclui entre estes os procuradores municipais (C, artigo 182) — algo que a Constituição não o fez (CF, artigos 131 e 132). Seria assistemática e inconstitucional a previsão do C, que contraria a Constituição, óbvio — mas ainda não há notícia de questionamento ou decisão a respeito.
Movimento de municipalização
Como se vê, parece que há um movimento sutil de municipalização que já inclui a advocacia pública (vez que nem todos os municípios têm procuradores municipais concursados) e que pretende atingir a Defensoria Pública — com a figura dos dativos, não concursados e atuando ad hoc em âmbito municipal — e que, doravante, se não se reverter a tendência, atingirá, também, inexoravelmente, o Ministério Público e a magistratura. A forma de proteção do sistema é que magistratura e Ministério Público protejam e impeçam a Defensoria Pública de ser atingida por tal medida, protegendo-se, também, a partir do fortalecimento da Defensoria Publica e cumprimento da diretriz da Emenda Constitucional 80/2014.
Fechar os olhos, hoje, pode significar o pranto de amanhã. O poder fora do poder formal caminha como quer e manipula e influencia, pelas sombras e de longe e de fora, decidindo rumos aqui dentro, como, aliás, ocorreu com a reforma do Judiciário, fortemente influenciada pelo Documento Técnico 319, de 1996, do Banco Mundial [5], e enfraquecer os mecanismos e órgãos de controle e o serviço público a a lhe ser interessante, assim como exaurir a nossa democracia, a soberania e o nacionalismo no povo brasileiro.
[1] BRASIL. IMPÉRIO. Código do Processo Criminal. Lei de 29 de novembro de 1832. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-29-11-1832.htm consulta em 12.3.2025, às 23:11h.
[2] BRASIL. IMPÉRIO. Lei 261, de 03.12.1841. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM261.htm consulta em 12.3.2025, às 23:24h.
[3] BRASIL. Emenda Constitucional 80/2014. Trecho destacado: “§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo”
[4] DEVISATE, Rogério Reis. Seria a ADPF 279 um ponto fora da curva em direção à municipalização do sistema de justiça? Site Juristas, 23.11.2021. https://www.bing.com/ck/a?!&&p=4ea1ea81dfb217045921f8f61e91920dc13aca4244dc80eccb64da3f04aa4ffbJmltdHM9MTc0MTU2NDgwMA&ptn=3&ver=2&hsh=4&fclid=12a7ae56-2f0a-6673-2a5e-bb7f2ec4677d&psq=adpf+devisate+JURISTAS&u=a1aHR0cHM6Ly9qdXJpc3Rhcy5jb20uYnIvYXJ0aWdvcy9zZXJpYS1hLWFkcGYtMjc5LXVtLXBvbnRvLWZvcmEtZGEtY3VydmEtZW0tZGlyZWNhby1hLW11bmljaXBhbGl6YWNhby1kby1zaXN0ZW1hLWRlLWp1c3RpY2Ev&ntb=1 – consulta em 10.3.2025.
[5] BRASIL. ANAMATRA. Banco Mundial: Documento Técnico 319. https://www.bing.com/ck/a?!&&p=17e71fed7ce3d6b9b5b7063add3bb5fc4c5a70fba6bf88d598f54e7fa4dc0736JmltdHM9MTc0MTczNzYwMA&ptn=3&ver=2&hsh=4&fclid=12a7ae56-2f0a-6673-2a5e-bb7f2ec4677d&psq=documento+tecnico+319+banco+mundial&u=a1aHR0cHM6Ly93d3cuYW5hbWF0cmEub3JnLmJyL2F0dGFjaG1lbnRzL2FydGljbGUvMjQ0MDAvMDAwMDM0MzkucGRm&ntb=1 – Consulta em 12.3.2025, às 23:40h
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