'Pacta sunt servanda': a solução!
18 de março de 2025, 8h00
Um pouco sobre ‘pacta sunt servanda’
“Pacta sunt servanda”, expressão em latim para designar que os acordos devem ser cumpridos, é um dos princípios jurídicos internacionais mais importantes, a ponto de Dionisio Anzilotti entendê-lo como o próprio fundamento do Direito Internacional [1].
A origem da expressão aponta para diversas direções, podendo ser identificados vestígios em Cicero (De Officiis 3.92 – “pacta et promissa semperne servanda sint” – “acordos e promessas sempre devem ser cumpridos”), e na pioneira obra de Direito Internacional “De jure belli ac pacis” (Do “Direito da guerra e da paz”), de Hugo Grotius, como aponta Kaius Tuori [2], ou em regras morais e religiosas (havendo expressões correspondentes no Alcorão e na Bíblia), na cultura egípcia, romana, chinesa e islâmica, como destaca Hans Wehberg [3].
A avença internacional mais relevante já acordada sobre o Direito dos Tratados, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados — entre Estados — (CVDT), de 1969, consagra o princípio em seu artigo 26: “Pacta sunt servanda: Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé” [4].
No próprio preâmbulo do “Tratado dos Tratados”, afirma-se que os (hoje) mais de 110 Estados Partes na CVDT consideram que “os princípios do livre consentimento e da boa-fé e a regra pacta sunt servanda são universalmente reconhecidos”.
De fato, a simples positivação do pacta sunt servanda na CVDT não altera, mas apenas registra, em endosso, a importância do cumprimento de tratados pelos Estados na ordem internacional. É difícil imaginar uma comunidade (de pessoas físicas ou de Estados) na qual se conviva naturalmente com a desnecessidade jurídica de cumprir o acordado em contratos ou em tratados.
Kelsen e o ‘pacta sunt servanda’
Uma das publicações menos conhecidas de Hans Kelsen ganhou uma curiosa versão em espanhol, denominada “El Contrato y el Tratado Analizados desde el Punto de Vista de la Teoría Pura del Derecho”. Convidado a ministrar um curso de inverno na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), em janeiro e fevereiro de 1943, Kelsen preparou um material para os alunos, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, acabou não podendo viajar ao México. Ao pedir desculpas, o “pai da Teoria Pura” enviou o texto original das conferências que faria, em francês, e autorizou a publicação, dedicando a obra ao professor licenciado Eduardo García Máynes, que foi responsável pela tradução.
Recebi graciosamente um exemplar dessa clássica raridade das mãos do professor José Roberto Vieira, durante suas orientações a minha tese de doutorado, em 27/6/2016, Dia de São Cirilo de Alexandria, e li ainda na mesma semana o prazeroso texto de 164 páginas, aproveitando agora, na redação desta coluna, quase uma década depois, algumas das marcações que fiz a lápis.
Já de início, Kelsen destaca que com o termo “contrato” se designa um estado de fato da ordem jurídica interna, e esse mesmo estado de fato existe com o nome de “tratado”, em Direito Internacional, e que, em ambos os casos se apresentam, em princípio, os mesmos problemas, pelo que usa a terminologia única de “convenção”, para se referir, em conjunto, a ambos [5].
Para Kelsen, ao concluir uma “convenção”, os sujeitos aplicam uma regra de Direito, o pacta sunt servanda – a uma situação concreta, e se servem dela para regular suas relações recíprocas, criticando a doutrina que não reconhecia o papel “criador do direito” nas convenções [6]. E o fundamento de validade da “convenção” fica reduzido à lei ou à norma consuetudinária que institui a convenção com a situação de fato criadora de direito (pacta sunt servanda) [8].

As diferenças entre a criação de normas pela lei e pela convenção não é absoluta, sendo uma das distinções o fato de que a norma da convenção obrigaria apenas as partes, e a norma da lei obrigaria a terceiros, o que também seria relativo, v.g., à luz da teoria que remete a um “contrato social” para designar a lei fundamental ou Constituição do Estado.
Mas de que forma o pacta sunt servanda e Hans Kelsen, pai do monismo internacionalista (que prega, em síntese, a primazia dos tratados sobre o Direito interno, em um mesmo sistema jurídico) [8], se relacionam ao tema da nossa coluna, “Território Aduaneiro”? A resposta é: em tudo! Como veremos adiante, revisitando colunas de 2025.
Multilateralismo e o ‘pacta sunt servanda’
A metade dos artigos do “Território Aduaneiro”, em 2025, tocou no tema da nova geopolítica internacional. Em 28/1/2025, Fernanda Kotzias apontou que o sistema multilateral está em crise e que isso não seria necessariamente uma novidade, e tampouco uma sentença de morte ao livre comércio e à globalização, mas que está em processo uma reconfiguração, com possíveis cenários antagônicos (de efeitos minimizados ou de escalada de guerra tarifária) [9]. Na coluna seguinte, de 4/2/2025, acentuamos esse segundo cenário, tratando de expressão que acabou sendo bastante utilizada recentemente: “tarifas retaliatórias” [10].
Algumas das ameaças tarifárias dos Estados Unidos, que rompem com o multilateralismo estruturado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), em inobservância a tratados como o Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio), já ensejaram reações de outros países, que vão desde negociações objetivando a mitigação das medidas, até contramedidas unilaterais ou apresentação de reclamações à OMC.
Em 11/2/2025, Liziane Meira destacou, na análise desse cenário ainda incerto, uma crise antecedente, justamente no órgão de Solução de Controvérsias da OMC, que sequelou o braço forte multilateral que garantia a implementação de decisões contra os Estados que contrariassem acordos, ou a adoção de contramedidas apropriadas [11]. E, na última semana, em 11/3/2025, Fernanda Kotzias trouxe algumas das consequências desses recentes ataques contra o “pacta sunt servanda”, fazendo referência a estudos que revelam, v.g., que os Estados Unidos tendem a ser fortemente impactadas de forma negativa pelas próprias medidas que creem estar prejudicando terceiros [13].
A tendência da ruptura do “pacta sunt servanda” se apresenta nesses casos, como típica manifestação do jogo do “perde-perde”, no qual perde a população e o governo dos Estados Unidos, com iminente pressão inflacionária provocada pelo aumento (ainda indefinido) de tarifas e pela insegurança jurídica, e perdem os países que exportam para os Estados Unidos, em relação ao universo de produtos afetado (mutante e de amplitude incerta), e até com desvio de comércio.
A troca do multilateralismo por um sistema imprevisível, que não contempla a desigualdade material, não ouvindo a voz dos países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo (o que afeta sobremaneira a atividade de organizações como a Unctad), e ignora tratados internacionais vigentes, em um momento de dificuldade jurisdicional da OMC, está longe de traduzir a nova ordem internacional, que encontrará seu patamar de estabilização em uma entre duas soluções: (a) a correção de rumos, com a volta do “pacta sunt servanda”; ou (b) o estabelecimento de uma nova ordem, fundada em arranjos internacionais que venham a sobrepor os atualmente existentes. Qualquer alternativa fora dessas é insustentável a médio prazo.
Greve na RFB e o ‘pacta sunt servanda’
Na coluna de 25/2/2025, Fernando Pieri tratou das Aduanas brasileiras, paradas (naquela data) há 91 dias, e apresentou números que indicavam que a greve na RFB poderia gerar prejuízo de R$ 3,3 bilhões à economia brasileira, apontando que os operadores de comércio exterior aguardavam comunicado que pudesse selar o término da anomalia no fluxo do comércio internacional, com o restabelecimento de diálogo por parte do ministério com competência para negociar a questão [13].
De fato, a greve atual na RFB, assim como a anterior, remete ao “pacta sunt servanda” [14].
A Lei 13.464/2017, resultante da conversão da Medida Provisória 765/2016, instituiu um bônus de eficiência, que, conforme a Exposição de Motivos da norma, objetivava o aperfeiçoamento das atividades da RFB, destacando que, “excepcionalmente, nos meses iniciais de vigência da norma”, o bônus seria pago em valores fixos e, a partir de março de 2017, de acordo com índice de eficiência institucional definido em regulamento [15]. Ocorre que esses “meses iniciais” aram de cinco anos, sendo o regulamento que permitiu o pagamento ditado apenas pelo Decreto 11.545/2023, que, apesar de fixar limites não previstos na lei, acabou, depois de adaptado pelo Decreto 11.938/2024, permitindo subtetos escalonados que foram aceitos pelos representantes dos servidores em um documento que pôs fim à greve, em 2024. Em tal documento, a cláusula sexta aclara que o Acordo “refere-se exclusivamente aos valores e percentuais do Bônus de Eficiência”, “não comprometendo o direito das entidades sindicais em apresentar outras pautas nos foros adequados” [16]. Recorde-se que a Lei 13.464/2017, que tratou do referido bônus, em seu artigo 24, estabelece que o valor do bônus de eficiência “…não integrará o vencimento básico, não servirá de base de cálculo para adicionais, gratificações ou qualquer outra vantagem pecuniária e não constituirá base de cálculo de contribuição previdenciária”. Portanto, a via crucis referente à implementação do bônus de eficiência, sem qualquer relação com o vencimento básico, e sem qualquer consequência em férias ou décimo terceiro salário, ou em aposentadoria, e dependente de desempenho institucional, iniciada em 2016, foi concluída em 2024.
Ainda em 2024, foram abertas pelo governo negociações com “todas” as categorias do serviço público, concedendo-se reajuste linear de vencimento básico (esse sim com impacto em férias, décimo terceiro salário…), o que acabou plasmado na Medida Provisória 1.286, de 31/12/2024, que foi assim noticiada pelo governo: “Governo publica MP que reestrutura salário de 100% dos servidores” [17]. O “todas” ficou entre aspas porque aos servidores da RFB não foi permitido participar das mesas de negociação, sob o argumento de que a regulamentação referente a 2016, relativa ao bônus, anularia a negociação sobre o vencimento básico de 2024 (o que se agrava em relação aos aposentados, pouco afetados pelo bônus, na primeira, e impossibilitados de discutir vencimento básico, na segunda). Essa é, de forma sucinta, a razão-mor da greve atual, cuja solução remete ao “pacta sunt servanda”, tendo em conta a observância do artigo 24 da Lei 13.464/2017 e a cláusula sexta do acordo que pôs fim à greve anterior.
A solução é ‘pacta sunt servanda’
A melhor solução para a estabilidade em um Estado de Direito, e para a própria civilização, é sempre o respeito ao pacta sunt servanda. Nos exemplos aqui citados, baseados na colunas do “Território Aduaneiro” de 2025, percebemos que a imprevisibilidade que domina os ambientes em que não há respeito aos acordos (na ordem internacional ou nacional), tende a ocasionar lesões com potencial superior ao eventual benefício que se consiga com os descumprimentos unilaterais.
Como salienta Hannah Arendt, cada pessoa nascida em uma comunidade com leis pré-existentes as obedece por não haver outra forma de entrar no grande jogo do mundo, com a seguinte reflexão: “…eu poderia desejar mudar as regras do jogo, como o revolucionário faz, ou abrir uma exceção para mim mesmo, como o criminoso faz; porém, negá-las por princípio não significa mera ‘desobediência’, mas a recusa de entrar na comunidade humana”, pois a “…última garantia de validade é contida na velha máxima romana pacta sunt servanda” [18].
[1] ANZILOTTI, Dionisio. Cours de Droit International. Trad. sa de Gilbert Gidel. Paris: Panthéon-Assas, 1999, p. Receuil Sirey, 43-44. No mesmo sentido, sobre Anzilotti, e fazendo ainda referência a Hans Kelsen, em sua segunda fase (que eleva o “pacta sunt servanda” ao caráter de “Grundnorm”, posicionamento depois mitigado pelo autor da “Teoria Pura do Direito”): VASCONCLOS, Arnaldo. A norma básica em Direito Internacional Público. Revista de Ciência Política, v. 28, n. 2, Rio de Janeiro, maio/ago. 1985, p. 17-24, disponível em: https://periodicos.fgv.br/r/article/view/60228; e MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 152.
[2] TUORI, Kaius. Pacta sunt servanda. Annales Academiae Scientiarum Fennicae, 2(1), 44–57. Disponível em: https://doi.org/10.57048/aasf.130107.
[3] WEHBERG, Hans. Pacta Sunt Servanda e Política Internacional. Trad. Cassio Vieira Romeiro. Revista de Ciência Política, v. 28, n. 3, Rio de Janeiro, jul./set. 1969, p. 57-69, disponível em: https://periodicos.fgv.br/r/article/view/59009/57481.
[4] Sobre o longo (de 1992, quando submetido ao Congresso Nacional, até 2009, com a promulgação pelo Decreto 7.030, de 14/12/2009) processo de incorporação da CVDT ao ordenamento jurídico brasileiro, com reservas aos artigos 25 e 66., remete-se a: CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. O poder de celebrar tratados: competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados, à luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 1995, p. 273-276; e a TREVISAN, Rosaldo. Tratados internacionais e o direito brasileiro. In: BRITTO, Demes; CASEIRO, Marcos Paulo (Coords.). Direito tributário internacional: teoria e prática. São Paulo: RT, 2015. p. 363-403.
[5] KELSEN. Hans. El Contrato y el Tratado analizados desde el punto de vista de la Teoría Pura del Derecho. Trad. Eduardo García Máynes. México: UNAM, 1943, p. 1.
[6] Idem, p. 3-10.
[7] Idem, p. 55-57.
[8] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 124.
[9] Disponível em: /2025-jan-28/geopolitica-e-comercio-internacional-o-que-esperar-em-2025/.
[10] Disponível em: /2025-fev-04/as-tarifas-estao-de-volta/.
[11] Disponível em: /2025-fev-11/trump-e-o-novo-cenario-global-pode-a-omc-responder-ao-aumento-abusivo-de-tarifas/.
[12] Disponível em: /2025-mar-11/o-peso-invisivel-do-protecionismo/.
[13] Disponível em: /2025-fev-25/marchinhas-carnavalescas-e-a-greve-na-aduana/.
[14] Importante esclarecer que se trata aqui da questão com propósito acadêmico, com a máxima isenção possível, buscando vestir o véu da ignorância proposto por Rawls e tecer um olhar externo e técnico sobre a greve.
[15] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv765.htm.
[16] Disponível em: https://www.anfip.org.br/carreira/politica-de-classe-e-salarial/auditores-fiscais-da-rfb-e-governo-assinam-acordo-sobre-bonus/.
[17] Disponível em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/governo-publica-mp-que-reestrutura-salario-de-100-dos-servidores.
[18] Adaptado de ARENDT, Hannah. On Violence. San Diego: Harcourt, Brace and World, 1972, p 193-194. No original: “Every man is born into a community with pre-existing laws which he ‘obeys’ first of all because there is no other way for him to enter the great game of the world. I may wish to change the rules of the game, as the revolutionary does or to make an exception for myself, as the criminal does; but to deny them on principle means no mere ‘disobedience’, but the refusal to enter the human community. (…) And the ultimate guarantee of their validity is contained in the old Roman maxim Pacta sunt servanda”.
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