Opinião

Crônica de uma nulidade anunciada: sobre arbítrio e direito à prova

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19 de março de 2025, 6h37

1. Prolegômenos

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A advocacia criminal é meio ingrata. É um trabalho silencioso, estratégico. Encontrar o timing processual de “acelerar” a defesa é uma arte. Normalmente somos obrigados a lidar com pedidos sucessivamente indeferidos. Muitas vezes, sequer examinados. Atuamos contra tudo e todos. Mas a experiência nos mostra que a viabilidade da defesa tem um momento de maturação processual. Até lá, apanhamos (no sentido processual) em silêncio – ou “respeitosamente”, como costuma constar de forma inútil no primeiro parágrafo de modelos de petições.

O cliente de um advogado criminal não gosta de ser exposto. Não quer comentar os detalhes do seu caso no almoço de domingo. Alguns sequer querem ser informados da tramitação do processo; preferem esquecer que ele existe. E mesmo quando finalmente conseguimos um resultado favorável, ainda assim temos de tomar o máximo cuidado com a divulgação de uma defesa bem feita, da qual nos orgulhamos tanto. Tudo em respeito ao cliente. Por isso, não conseguimos entender a advocacia-ostentação dos dias de hoje, com advogados fazendo selfie na porta de um presídio. Tem uma pessoa lá dentro. Trancada e sofrendo. Mas enfim, talvez nós é que estejamos errados por preferirmos a solidão da profissão.

Abaixo, iremos tratar publicamente de um caso com a concordância do cliente. Alguém que teve sua vida empresarial, familiar e pessoal destroçada por mais um exemplo de exercício jurisdicional irresponsável. Pior: mais um exemplo de tragédia processual ocorrida na 1ª Vara Federal de Florianópolis. A decisão de dar publicidade ao caso vem na tentativa de restabelecer tardiamente a verdade dos fatos [1].

2. O caso

Tudo começou em 2013, quando a Polícia Federal decidiu investigar o suposto pagamento ilegal, em moeda estrangeira, de DJs em evento promovido por uma casa noturna sediada em Camboriú. Eduardo Paul Cunha (o cliente) era um dos sócios da empresa que gerenciava aquelas festas. Daí veio o nome da operação policial: “line up”.

A Polícia Federal pediu monitoramento telefônico e de dados, indeferido porque insuficiente. Novo pedido complementado, agora deferido. Após dois períodos de quebras, outro pedido de renovação. Dessa vez, indeferido por insuficiência probatória.

O caso ficou parado um ano. Do nada, apareceu uma nova representação policial, porém direcionada à Multimoney Corretora de Câmbio, de propriedade de Eduardo Paul Cunha. A alegação: operações de câmbio ilegais. Pedido novamente indeferido, pois carente de provas e focado em empresa com sede em São Paulo.

Em 2016 (ou seja: após três anos), assumiu o caso nova autoridade policial. Requentou o que já havia sido exposto e formulou pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal da Multimoney. Apesar de nenhuma prova nova ser produzida, o pedido foi autorizado judicialmente. Logo em seguida, a juíza federal Janaína Cassol Machado assumiu a condução do caso. Daí em diante, todos os pedidos de quebra de sigilo (telefônico, telemático, fiscal, bancário etc.) foram impreterivelmente acolhidos.

Em junho de 2018, a operação “line up” foi deflagrada, com prisão de Eduardo Paul Cunha e um diretor da Multimoney. Alegação geral era a de haver indícios de operações de câmbio ilegais (não identificadas, descumprindo limites legais de câmbio comercial etc.). Pagamento de Djs? Nem uma linha. Numa dada representação policial, o delegado de Polícia Federal sacou uma decisão de Sergio Moro na “lava jato”, falando de operações de câmbio ilegais atribuídas a Eduardo Cunha (o parlamentar), para magicamente justificar a existência de operações ilegais por Eduardo Paul Cunha (o cliente). Qualquer criatura minimamente bem intencionada iria perceber a safadeza. Segue o baile.

No combo-deflagração, obviamente, sequestro de valores. A Polícia Federal pediu o bloqueio de R$ 190 milhões (!). Ministério Público Federal opinou por reduzir para R$ 5,7 milhões (!). Bloqueio deferido neste limite. Resultado? Capital de giro da corretora integralmente bloqueado, alcançando inclusive operações de câmbio que estavam em andamento.

A prisão foi revogada após quase três meses, por ordem de Habeas Ccorpus deferida pelo ministro Gilmar Mendes (HC 161.410). Naquele writ, a pedido do ministro, foi juntada informação do Banco Central explicando que a Polícia Federal estava fazendo interpretação equivocada dos limites de câmbio comercial a que estavam sujeitas as corretoras de câmbio.

A Multimoney Corretora de Câmbio encerrou suas atividades em 2019, fechando dezenas de lojas em todo o país e demitindo centenas de funcionários. Quando deflagrada a operação, ocupava a posição de quinta maior corretora de câmbio do Brasil. Fechou por decisão de seu proprietário, já que os bancos fornecedores de moeda se recusavam a seguir com o serviço em razão da operação policial. A corretora e seus es jamais foram processados pelo Banco Central.

Naquele momento, iniciou-se o problema processual que iria sepultar o caso. Precisávamos montar a defesa para rebater as alegações de câmbio ilegal. Todas as operações eram formais e regulares. Jamais falou-se em câmbio paralelo ou dólar-cabo. O fluxo das operações de câmbio fluía por comunicações telemáticas internas entre istração (São Paulo) e lojas (grande parte, em Santa Catarina). A Polícia Federal pinçou e distorceu o conteúdo de alguns e-mails. Para rebater isso, precisávamos da íntegra da interceptação telemática, que não mais estava disponível porque a corretora não seguiu custeando o seu servidor de e-mails após encerrar as atividades. Pedimos para o juízo oficiar os servidores de e-mail para enviarem a íntegra da quebra. Primeiro pedido, deferido. Autoridade policial fez corpo-mole. Mandou ofício dizendo que a defesa já tem a prova. Juízo voltou atrás e indeferiu o pedido. Defesa pediu reconsideração, alegando ofensa a contraditório e devido processo legal (par conditio). Todos pedidos foram negados. Malditos advogados! Sempre fazendo chicanas!

Spacca

Parquet ofereceu denúncia por gestão fraudulenta (artigo 4°, parágrafo único, da Lei 7.492/86). Depois de um vaivém (juíza queria que a acusação fosse além do que o MPF selecionou), abriu-se prazo para resposta à acusação. Como proceder? Apresentar defesa sem o à prova? Thoreau neles: contra o arbítrio, resistência civil. Processo é nulo por violação do direito à prova. Deve ser franqueado à defesa tudo o que a Polícia Federal bisbilhotou, pouco importando se relevante, ou não, para a opinio delicti – algo tão óbvio quanto a inviabilidade de condenação sem acusação. Sem essa prova, impossível fazer a defesa de mérito.

Mas a juíza não entendeu assim. Instrução teve início, com outros arbítrios cujos pormenores não caberiam nesse texto. No fim do processo, Sua Excelência foi afastada por decisão do CNJ [2].

No prazo do 402, reiteramos pedido para oficiar servidores de e-mail. Desta feita, o juiz que assumiu o caso deferiu o pedido, com a concordância do MPF. Vem a resposta: backup de e-mails não existia mais, em razão do tempo transcorrido. Petição da defesa alegando nulidade ab initio do processo, por violação ao contraditório e devido processo legal, com ênfase nos oito (sim, oito) pedidos de o à prova (os dois primeiros, antes mesmo do início da ação penal). Parecer favorável do parquet. Juiz decretou nulidade do caso e abriu vista ao MPF para analisar derivação da nulidade. Procurador da República peticionou dizendo que não sobraram provas válidas, pois todas as demais estavam contaminadas pelos e-mails que foram extraviados. Juiz acolheu o pedido e mandou arquivar o feito. Tudo nulo. Não sobrou nada em pé.

3. O mérito

Vale uma breve nota final breve sobre um dilema enfrentado pela defesa.

Todas as operações de câmbio eram legais. A investigação — por razões que efetivamente gostaríamos de entender — distorceu normativas e provas. Tudo ou no bigode da jurisdição, sem ninguém (inicialmente) questionar.

Basicamente eram duas acusações principais: (1) teriam sido localizadas 38 mil operações de câmbio sacado (manual, no balcão) que, apesar de informadas ao Bacen, não continham a identificação do titular; (2) foram localizadas 586 operações de câmbio comercial ilegalmente fracionadas (corretoras tinham o limite operacional de US$ 100 mil para câmbio comercial; alegou-se que a Multimoney fracionou contratos de câmbio de clientes para contornar o limite) [3].

A explicação para isso beirava o ridículo. As 38 mil operações de câmbio manual não identificadas foram obtidas em planilha fornecida pelo Bacen com a íntegra das operações feitas pela corretora ao longo dos anos. De fato, existiam 38 mil operações que, apesar de os valores, data, moeda etc. estarem registrados no Sisbacen, não continham o nome do titular. A razão disso: as 38 mil operações eram exatamente aquelas realizadas por estrangeiros no Brasil junto à Multimoney. A planilha do Bacen não aceitava identificação que não fosse de F. Estrangeiro não tem F. Logo, seu nome não constava na planilha. Mas constava nos boletos das operações e na base de dados do Bacen. Localizamos os 38 mil boletos, todos com o nome e o número do aporte ou RG do titular. A autoridade policial chegou ao cúmulo de sustentar que essa alegação era falsa porque não havia o registro de entrada dos estrangeiros no Brasil, no controle de alfândega. Nós contamos ou vocês contam? (Não há registro alfandegário de entrada de estrangeiro em fronteira seca, caminho normalmente feito por argentinos e uruguaios que se dirigem a SC).

Sobre o limite de US$ 100 mil para corretoras realizarem operações individuais de câmbio comercial: o Bacen respondeu ofício do ministro Gilmar Mendes explicando que o limite se referia a cada negócio individual (invoice ou declaração de importação). Se uma empresa, p. ex., exporta mercadoria para três destinatários diferentes, cada invoice não poderia superar US$ 100 mil, mas as três invoices abaixo desse limite poderiam ser liquidadas em contratos de câmbio, no mesmo dia, ainda que o somatório fosse superior ao limite. Essa lógica aplica-se, inclusive, para exportações/importações com o mesmo cliente. Qual a razão disso? Reserva de mercado: se o valor da invoice individualmente superasse US$ 100 mil, a liquidação da operação não poderia ser em corretoras de câmbio, mas sim no sistema bancário. Hoje, normativa em vigor aumentou esse limite para US$ 300 mil.

Nada disso interessou à autoridade policial e ao juízo. Durante as audiências, o próprio membro do MPF reconheceu estar convencido da legalidade das operações.

Então, o dilema ou a ser o seguinte: enfrentamos o mérito (com a convicção pessoal de que a absolvição seria muito provável)? Ou levantamos a nulidade acima descrita, com prejuízo de uma sentença de mérito?

O cliente clamava por uma decisão absolutória, por questão de honra. Mas foi convencido de que a estratégia era não perder uma oportunidade no jogo processual que estava posto. Não era recomendável abrir mão de um erro processual tão escancarado.

Essa explicação é fundamental para que todos entendam que, além da nulidade grosseira, o caso sequer confirmava a viabilidade das acusações.

aram-se 12 anos entre o início da operação e a decretação da nulidade do caso. Não, a defesa não teve culpa alguma disso. Uma investigação que se valeu do anzol de uma fishing expediction para selecionar atividade regulatória de elevada complexidade normativa embaralhada na retórica de linguagem policial tendenciosa. Uma mistura de ignorância, ardil e ranço. Fica fácil montar uma investigação sigilosa, sobre operações que quase ninguém entende bem, para tachá-las de criminosas. Embaralha tudo isso, põe na mídia e está feito o estrago: no colo da autoridade judiciária certa, o caso ganha o contorno de um grande escândalo criminal.

A operação “line up” é um dos maiores absurdos que já vivenciamos em nossa experiência na advocacia criminal. Trata-se de um bom exemplo do desfecho final que se observa quando temos uma persecução penal infantilizada, arbitrária e sem controle algum.

Estrago feito, dedo na língua, vira a página. Que lição tirar disso? Quem se responsabiliza pela desgraça pessoal, familiar e profissional de todos que foram envolvidos no caso? Quem paga essa conta?

 


[1] A ConJur publicou, há alguns dias, informações sobre o desfecho do caso: /2025-mar-09/perda-de-provas-digitais-leva-justica-a-derrubar-acao-apos-seis-anos/

[2] Em detalhes: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/08/21/cnj-afasta-juiza-federal-de-santa-catarina.ghtml

[3] O restante das acusações dizia respeito a problemas pontuais observados em algumas lojas, inclusive envolvendo funcionários que realizavam, por conta própria, operações de câmbio no balcão.

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