Direito à visita de condenados em regime aberto: mudança paradigmática no entendimento do STJ
19 de março de 2025, 21h26
O direito à visitação no sistema prisional sempre foi um tema controverso, sujeito a restrições impostas por regulamentos internos sem respaldo legal expresso. Durante anos, tribunais superiores validaram a limitação desse direito com base na disciplina e segurança dos estabelecimentos prisionais, sem análise concreta de cada caso.

Reafirmou-se tal situação no julgamento do AgRg no AREsp 1602725/DF, em que a 6ª Turma do STJ decidiu que “o direito do preso de receber visitas, assegurado pelo artigo 41, X, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), não é absoluto e deve ser sopesado de acordo com a situação específica do caso concreto”. A partir dessa posição, istrações penitenciárias adotaram uma interpretação ampla e restritiva, impedindo automaticamente a visita de condenados em regime aberto ou livramento condicional, sem necessidade de justificativa específica. Assim, mesmo indivíduos sem qualquer risco objetivo eram impedidos de manter contato com familiares presos, dificultando a ressocialização e violando o princípio da individualização da pena.
Em reavaliação desse entendimento, a 3ª Seção do STJ, ao julgar os Recursos Especiais 2.119.556-DF e 2.109.337-DF (Tema 1274), em 12 de fevereiro de 2025, fixou um novo posicionamento: o simples fato de um visitante cumprir pena privativa de liberdade em regime aberto ou estar em livramento condicional não impede, por si só, o direito de visita em estabelecimento prisional. Há representação, portanto, de evolução na execução penal, ao estabelecer que restrições à visitação devem ser individualizadas e fundamentadas, não podendo ser aplicadas de maneira genérica. Ressalta-se que isso não torna o direito absoluto, mas reforça a necessidade de motivação baseada em elementos concretos, afastando decisões arbitrárias.
Com isso, o STJ redefine a regulamentação da visitação nos presídios, obrigando as istrações penitenciárias a adequar suas normativas à Constituição Federal e à Lei de Execução Penal. Esse novo direcionamento corrige distorções históricas na execução penal, garantindo que a visitação seja analisada com critérios objetivos, sem influência de um viés meramente punitivista.
Para ilustrar os impactos dessa decisão, imagine a seguinte situação:
Jefferson foi condenado a 10 anos de reclusão por tráfico de drogas e cumpre sua pena em regime fechado. Seu irmão, Carlos, também foi condenado pelo mesmo crime, mas, por possuir bons antecedentes e uma pena menor, já está em regime aberto, trabalhando durante o dia e dormindo em uma casa de albergado.
Carlos, tentando manter os laços familiares, solicita autorização para visitar João na penitenciária. No entanto, a istração do presídio nega seu pedido com base em uma norma interna que proíbe visitas de condenados, independentemente do regime em que se encontrem.

Esse tipo de restrição, aplicada indiscriminadamente em diversas unidades prisionais, era fruto de uma interpretação istrativa que ignorava preceitos constitucionais e infraconstitucionais.
Agora, com a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial, fica reconhecido que a mera condição de condenado em regime aberto ou em livramento condicional não pode ser motivo automático de impedimento da visita, exigindo-se fundamentação específica e individualizada para qualquer restrição.
Fundamentos jurídicos da decisão
A decisão do Superior Tribunal de Justiça se baseia em princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, assegurados pela Constituição e pela Lei de Execução Penal (LEP). A Constituição de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (artigo 1º, III), princípio que deve orientar todas as políticas estatais, inclusive na execução penal.
O artigo 5º, inciso XLIX, garante ao preso o respeito à sua integridade física e moral, enquanto a LEP reforça a necessidade de preservação dos laços familiares. O artigo 41, inciso X, da Lei 7.210/1984 reconhece a visitação como direito do preso, essencial para sua ressocialização. Assim, impedir a visita de condenados em regime aberto sem justificativa razoável impõe restrição desproporcional e sem amparo legal, contrariando a finalidade da pena, que deve punir, mas também possibilitar a reintegração social.
Outro princípio que fundamenta a decisão é o da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da Constituição), determinando que a punição deve ser aplicada e executada de forma proporcional ao caso concreto. A proibição automática de visitas para condenados em regimes menos gravosos viola essa diretriz, ao impor restrições sem qualquer análise individual. Restrições ao direito de visitação não podem se basear em presunções genéricas de risco à segurança, mas sim em elementos concretos e justificáveis.
Além disso, a LEP não contém norma que proíba, de forma automática, a visita de condenados em regimes menos rigorosos. Ainda assim, diversas unidades prisionais criaram regulamentos internos restritivos, muitas vezes fundamentados em interpretações equivocadas sobre segurança institucional. A decisão do STJ reafirma que qualquer limitação ao direito de visita deve ser individualmente justificada e fundamentada, evitando restrições arbitrárias que extrapolem o que a legislação permite.
Incoerência das restrições automáticas
A regulamentação interna, oriunda do regimento de cada unidade prisional, proibia visitas de indivíduos que cumpriam pena fora do regime fechado sob o argumento genérico de segurança e garantia da ordem pública. No entanto, essa proibição era aplicada sem análise concreta, ferindo a principiologia base da execução penal.
O condenado em regime aberto já se encontra sob supervisão estatal, com regras específicas para sua progressão e reintegração. Logo, não poderia ser tratado como uma ameaça automática ao sistema prisional apenas por sua condição jurídica.
Dessa forma, a decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida em sede de recurso especial se alinha a entendimentos internacionais que reforçam a importância do contato familiar no contexto da execução penal. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no julgamento do Caso López y Outros vs. Argentina (sentença de 25 de novembro de 2019), destacou que a finalidade essencial da pena deve ser a readaptação social do condenado e que a manutenção do vínculo com a família e o mundo exterior é um fator essencial para esse processo. Nesse sentido, a restrição de visitas sem justificativa adequada não apenas compromete a ressocialização do apenado, mas pode afetar sua integridade pessoal e a de seus familiares.
Além disso, a Corte IDH entendeu que a separação injustificada do preso de sua família pode configurar violação ao artigo 17.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), que assegura a proteção da unidade familiar, e, em determinadas circunstâncias, pode também infringir o artigo 11.2, que trata da proteção contra interferências arbitrárias na vida privada e familiar. Essa interpretação reforça que a visitação prisional não é um privilégio, mas um direito fundamental vinculado à dignidade da pessoa humana.
Impactos da decisão e desafios na implementação
A nova orientação do STJ trará impactos diretos ao sistema prisional, exigindo a revisão de regulamentos internos e a eliminação de restrições genéricas às visitas de condenados em regimes menos gravosos. No entanto, para que essa mudança seja efetiva e não apenas um precedente teórico, alguns desafios precisam ser superados.
O primeiro é a fiscalização e o cumprimento efetivo da medida, uma vez que muitos regulamentos prisionais continuam desatualizados e mantêm uma lógica punitivista que restringe direitos sem amparo legal. Para evitar a perpetuação de práticas inconstitucionais, será fundamental a atuação constante do Ministério Público e da Defensoria Pública na supervisão das unidades prisionais, garantindo que a jurisprudência seja respeitada.
Outro ponto essencial é a capacitação dos, hoje, policiais penais, que devem ser treinados para compreender que a manutenção dos vínculos familiares é um direito fundamental do preso e um fator crucial para sua ressocialização. Sem essa mudança na cultura institucional do sistema penitenciário, há o risco de que o novo entendimento seja aplicado de forma equivocada ou até ignorado, sob alegações de dificuldades operacionais ou questões de segurança.
A nova diretriz não impede restrições às visitas quando houver risco concreto à segurança da unidade, mas exige que qualquer limitação seja fundamentada individualmente e baseada em critérios objetivos. Isso estabelece um novo padrão de rigor na análise dos pedidos de visitação, evitando negativas arbitrárias ou motivadas por conveniências istrativas. Para garantir sua aplicação efetiva, será necessário definir regras claras e mecanismos eficientes de revisão, assegurando que cada caso seja tratado com justiça e compatibilidade com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Portanto, a implementação dessa orientação exigirá um esforço coordenado entre órgãos de fiscalização, istração penitenciária e Poder Judiciário, garantindo que o direito de visita dos presos seja efetivamente respeitado sem comprometer a segurança das unidades prisionais. Sem essa articulação, há o risco de que a mudança se torne apenas um precedente ignorado no cotidiano do sistema carcerário, perpetuando práticas ilegais que violam direitos fundamentais e enfraquecem os objetivos da execução penal.
Conclusão
A decisão da 3ª Seção do STJ representa um avanço significativo na proteção dos direitos dos presos e na consolidação de um sistema penal que se orienta pela dignidade da pessoa humana e pelos princípios constitucionais da individualização da pena e da legalidade.
Ao afastar a proibição automática de visitas para condenados em regime aberto ou livramento condicional, a Corte não apenas corrige uma distorção histórica na execução penal brasileira, mas também reafirma a importância da ressocialização e da manutenção dos laços familiares como diretrizes fundamentais do cumprimento de pena.
O entendimento fixado impõe um necessário freio às práticas arbitrárias que, por meio de regulamentos internos e portarias istrativas, restringiam direitos fundamentais sem qualquer respaldo na legislação federal. Essa realidade ilustra um problema crônico do sistema penitenciário: a ampliação indevida do poder disciplinar das unidades prisionais, que frequentemente extrapolam sua função istrativa e impõem regras excessivamente rígidas, muitas vezes sem fundamento jurídico adequado.
Além disso, a decisão assume um papel pedagógico importante ao consolidar uma interpretação que reafirma a necessidade de fundamentação concreta e individualizada para qualquer restrição ao direito de visita. O princípio da legalidade estrita, essencial ao Estado democrático de direito, impede que o Estado crie proibições genéricas que extrapolem o que está expressamente previsto na legislação.
A LEP não prevê a vedação automática de visitas para condenados em regimes mais brandos, e qualquer restrição a esse direito deve estar respaldada em um risco objetivamente demonstrado, jamais em meras presunções genéricas de perigo ou conveniência istrativa.
Sob a perspectiva da ressocialização, é incontestável que a manutenção de vínculos familiares desempenha um papel essencial na reintegração social do apenado. Diversos estudos criminológicos apontam que indivíduos que preservam relações familiares durante o período de reclusão têm menores índices de reincidência, pois contam com uma estrutura de e ao deixarem o sistema penitenciário. Restringir visitas sem justificativa plausível não apenas desrespeita um direito fundamental, mas também compromete um dos objetivos centrais da execução penal, que é a reintegração do apenado ao convívio social de maneira produtiva.
Por outro lado, a decisão não deve ser interpretada como um salvo-conduto para qualquer tipo de visitação irrestrita. O Estado ainda possui o dever de garantir a segurança dos estabelecimentos prisionais, o que significa que casos concretos que demonstrem riscos reais e específicos podem justificar restrições individuais. Contudo, a grande inovação desse entendimento é a exigência de motivação concreta para essas restrições, afastando a imposição de barreiras automáticas que, por décadas, serviram apenas para aprofundar a desumanização do sistema prisional brasileiro.
A fixação do precedente, por si só, não garante sua eficácia. É fundamental a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário para assegurar sua aplicação. Além disso, a decisão reflete uma tendência dos tribunais superiores de humanizar a execução penal. Embora persistam desafios para a garantia dos direitos fundamentais no sistema carcerário, há indícios de que o Judiciário está mais atento ao equilíbrio entre repressão penal e proteção das garantias constitucionais.
Se o objetivo do da execução da pena é, de fato, a reintegração do condenado à sociedade, então impedir visitas sem justificativa clara não apenas desrespeita direitos individuais, mas também compromete a própria lógica do sistema punitivo. Cabe, agora, ao Estado e aos órgãos de controle garantir que essa decisão não seja apenas um precedente judicial, mas uma mudança real na forma como o sistema penitenciário encara a ressocialização e o respeito aos direitos fundamentais.
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Referências
BRASIL. Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 13 jul. 1984.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 1.602.725/DF. Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro. 6ª Turma. Julgado em 20 out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recursos Especiais n.º 2.119.556-DF e 2.109.337-DF (Tema 1274). Relator: Ministro Otávio de Almeida Toledo. 3ª Seção. Julgado em 12 fev. 2025.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CORTE IDH). Caso López y outros vs. Argentina. Sentença de 25 de novembro de 2019.
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