A espada de Dâmocles e a insegurança jurídica trabalhista
20 de março de 2025, 6h09
Nos escritos de Cícero, Dâmocles era um cortesão encantado pelo esplendor da corte de Dionísio, o Tirano de Siracusa. Certo dia, elogiou a grandeza do rei, dizendo que ninguém poderia ser mais feliz do que um homem com tamanho poder e riqueza. Dionísio, intrigado, decidiu conceder-lhe a experiência da realeza. Sentou-o em um trono cercado de banquetes e luxos, mas suspendeu sobre sua cabeça uma afiada espada, presa apenas por um fio de crina de cavalo. Assim que percebeu a lâmina, Dâmocles perdeu todo o entusiasmo pelo poder. A lição era clara: não há prosperidade sem estabilidade; quando o perigo é iminente e imprevisível, a riqueza se torna um fardo.

O ambiente de negócios no Brasil vive sob a mesma espada. A insegurança jurídica, alimentada por decisões conflitantes entre o Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho, cria um cenário onde empreender se torna um ato de risco permanente. O recente debate no Plenário do STF evidenciou essa preocupação. O ministro Luiz Fux criticou a Justiça do Trabalho por decisões que desconsideram a legislação vigente, enquanto Dias Toffoli alertou para os impactos negativos da relativização da reforma trabalhista.
O tema se torna ainda mais alarmante quando se observa que, em 2024, o número de ações trabalhistas voltou a crescer, ultraando 2 milhões — um aumento de 14,1% em relação ao ano anterior. A cada reinterpretação judicial que ignora os marcos legislativos, a espada se aproxima mais do pescoço do empresariado, afastando investimentos e travando a geração de empregos.
Reforma trabalhista e resistência judicial
A reforma trabalhista foi concebida para modernizar as relações de trabalho, incentivando a negociação direta entre empregadores e empregados e reduzindo a judicialização excessiva. Durante décadas, o Brasil figurou entre os países com maior volume de processos trabalhistas no mundo, um fenômeno que encareceu a contratação formal e gerou um ambiente de permanente incerteza para empresas.
No entanto, desde sua promulgação, a reforma tem enfrentado forte resistência dentro da própria Justiça do Trabalho. Tribunais trabalhistas, em diversas ocasiões, adotaram interpretações que esvaziam o propósito das mudanças legislativas. Um dos exemplos mais emblemáticos é a desconsideração da personalidade jurídica, frequentemente aplicada para responsabilizar empresas sem relação direta com o vínculo empregatício.
O ministro Luiz Fux alertou que essa prática gera um “efeito cascata”, tornando incerta a estruturação de negócios no Brasil. Para as empresas, a impossibilidade de prever responsabilidades jurídicas mina a segurança dos investimentos e agrava o chamado “custo Brasil”, reduzindo a competitividade do país no cenário internacional.
Crescimento das ações trabalhistas e o impacto na economia
O aumento de 14,1% no volume de ações trabalhistas em 2024 não pode ser analisado de forma isolada. O crescimento da litigiosidade está diretamente relacionado à redução de mecanismos que desestimulavam ações infundadas. Em 2022, o STF derrubou a obrigação de pagamento de honorários de sucumbência por trabalhadores que perdessem a ação, mesmo quando beneficiários da justiça gratuita. Essa mudança eliminou um dos principais instrumentos de controle da litigância excessiva, incentivando a retomada do crescimento do número de processos.
Estudos internacionais mostram como a previsibilidade regulatória impacta diretamente a produtividade das empresas. Segundo um relatório do Banco Mundial, países com menor incerteza jurídica tendem a ter maior taxa de crescimento econômico e um mercado de trabalho mais dinâmico. No Brasil, a insegurança jurídica trabalhista aumenta os custos operacionais das empresas, reduz a disposição para contratar formalmente e incentiva a adoção de modelos de trabalho mais precários ou informais.
Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) indica que países da América Latina com maior estabilidade regulatória no direito do trabalho, como Chile e Colômbia, possuem menores taxas de informalidade e maior produtividade empresarial. Em contrapartida, na Índia — um dos países do BRICS —, a complexidade da legislação trabalhista foi apontada como um dos principais entraves ao crescimento econômico em um relatório do Fórum Econômico Mundial.
A experiência europeia também reforça essa lógica. Em Portugal, a reforma trabalhista de 2012 foi acompanhada de medidas para garantir segurança jurídica, resultando em um aumento do emprego formal e na redução das disputas judiciais. O contraste com o Brasil evidencia a necessidade de um marco regulatório que equilibre proteção ao trabalhador com previsibilidade para o setor produtivo.
Reflexos econômicos da instabilidade jurídica
A insegurança jurídica não é um conceito abstrato; ela se traduz em menor produtividade, custos mais altos para as empresas e menos oportunidades de emprego. No Brasil, um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre/FGV) apontou que empresas que operam em setores altamente judicializados apresentam um crescimento até 20% inferior àquelas em ambientes regulatórios mais estáveis.
A cada nova decisão que reinterpreta ou relativiza a reforma trabalhista, aumenta-se a percepção de que as regras do jogo podem mudar a qualquer momento. Esse cenário gera desconfiança entre investidores e empresários, travando a expansão da atividade produtiva e impactando negativamente a geração de empregos formais.
Setores como tecnologia e startups são especialmente afetados por essa incerteza. Modelos inovadores de trabalho, que exigem flexibilidade e agilidade regulatória, encontram na rigidez da legislação um obstáculo para o crescimento. Enquanto outras nações ajustam suas normas para acompanhar a transformação do mundo do trabalho, o Brasil permanece preso a uma estrutura anacrônica, marcada pela hiperjudicialização e pela insegurança normativa.
Para onde vamos? Necessidade de um debate qualificado
Se o Brasil deseja avançar, é imprescindível que o Legislativo reafirme o espírito da reforma trabalhista e que o Judiciário respeite seus limites interpretativos. O crescimento sustentável exige previsibilidade regulatória, e isso só será alcançado por meio de um debate qualificado, pautado em evidências, experiências internacionais e dados concretos sobre o impacto da insegurança jurídica na economia.
O momento exige diálogo e responsabilidade. Espaços de discussão que promovam pluralidade e profundidade, sem viés ideológico, são fundamentais para a construção de soluções eficazes. É preciso ir além de narrativas simplistas e compreender que um mercado de trabalho equilibrado não se faz com instabilidade normativa, mas com regras claras e previsíveis.
Legado de Dâmocles
Ao final de sua experiência como rei, Dâmocles implorou a Dionísio para deixar o trono. Preferia a vida simples à constante ameaça da espada sobre sua cabeça. O Brasil não pode cometer o mesmo erro. Nenhuma economia se desenvolve sob a sombra da incerteza, e nenhum país prospera sem regras estáveis e respeitadas.
O recente embate entre o STF e a Justiça do Trabalho não é um episódio isolado, mas um sintoma da fragilidade institucional que afeta nosso ambiente de negócios. Se o Brasil deseja atrair investimentos, gerar empregos e consolidar um mercado de trabalho moderno e competitivo, precisa abandonar a lógica da insegurança jurídica. A estabilidade das regras não é um detalhe burocrático; é a base do crescimento econômico.
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