Redução da violência exige atuação conjunta de órgãos, diz defensor-geral do Rio
26 de março de 2025, 8h58
Os limites para as operações policiais no Rio de Janeiro, fixados pelo Supremo Tribunal Federal na arguição de descumprimento de preceito fundamental 635, ajudaram a reduzir a letalidade estatal em 61% sem engessar as ações das forças de segurança. A atuação do STF no caso é positiva, mas a diminuição da violência no estado exige uma ação integrada entre diversos órgãos, sob comando do Executivo. É o que afirma Paulo Vinícius Cozzolino Abrahão, defensor público-geral do Rio.

Paulo Vinícius Cozzolino Abrahão, defensor público-geral do RJ
Segundo ele, o aumento de penas não é eficaz para reduzir a criminalidade. E o problema também não está nas audiências de custódia, como alegam punitivistas.
“Pelo contrário, diversos estudos mostram que a audiência de custódia é um case de sucesso. A cada quatro pessoas presas submetidas a audiência de custódia, três são mantidas presas, e só uma é liberada. De cada quatro pessoas que são levadas para custódia, três são primárias. Então não é verdade que pessoas reincidentes estão sendo soltas.”
Eleito em 8 de novembro com 63,4% dos votos dos defensores do Rio, Abrahão comandará a Defensoria no biênio 2025-2026. Ele tem quatro principais objetivos em seu mandato. O primeiro é ampliar e otimizar o atendimento individual. O segundo é otimizar a tutela coletiva, reduzindo a judicialização e aumentando a celebração de acordos. O terceiro ponto é investir na estrutura física. E o quarto é melhorar o cuidado com a saúde física e mental dos servidores.
Para atingir essas metas e elevar a eficiência da Defensoria, Abrahão pretende investir em ferramentas de inteligência artificial. Ele busca usá-las para agilizar o atendimento ao público, ajudar a sintetizar informações processuais e a elaborar minutas das petições iniciais.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais são os principais objetivos da sua gestão no comando da Defensoria Pública do Rio de Janeiro?
Paulo Vinícius Abrahão — A Defensoria Pública do Rio tem 70 anos, é a maior do país, tem uma capilaridade rara no país. O Rio de Janeiro tem 81 comarcas e 92 municípios. A Defensoria do Rio está presente não apenas nas 81 comarcas, mas nos 92 municípios. Mesmo onde não tem fórum, há um posto da Defensoria. Só que isso gera um desgaste físico e econômico enorme para a instituição. Afinal, a estrutura da Defensoria é muito menor do que a do Tribunal de Justiça, é menor do que a do Ministério Público. A Defensoria tem de estar onde eles estão, mas eles têm mais recursos para isso. Para a Defensoria se igualar a essas instituições, precisa otimizar o seu serviço. O meu primeiro objetivo é ampliar e otimizar o atendimento individual. Investindo um pouco em otimização e inteligência artificial, é possível fazer muito mais com muito menos.
O objetivo dois é otimizar a tutela coletiva. Isso quer dizer judicializar menos. A Defensoria pode firmar um acordo para um município fornecer determinado medicamento e, com isso, evitar milhares de ações.
O terceiro ponto é investir na estrutura física. A Defensoria tem 178 postos de atendimento, nos 92 municípios do estado do Rio. Ao investir em estrutura, melhora-se o atendimento e o trabalho dos defensores.
O eixo quatro tem muito a ver com o pós-pandemia. A Defensoria tem um grande problema de saúde coletiva. Há um índice inédito de defensores e servidores afastados por licença médica, em muitos casos por burnout. Estamos criando uma política de preservação da saúde dos defensores e servidores, com atendimento prévio, atendimento psicológico. O objetivo é entender as questões das pessoas e melhorar a saúde delas.
ConJur — A Defensoria Pública do Rio obteve um aumento em seu orçamento para 2025. Como pretende usar esses valores adicionais?
Paulo Vinícius Abrahão — O aumento que a Defensoria conseguiu foi em custeio e investimento, que é um aumento de verbas para o funcionamento do órgão. Isso permitirá investirmos em inteligência artificial. Nós temos algumas metas, como zerar a fila de ação de alimentos. Com ferramentas tecnológicas, será possível zerar essa fila. Outro objetivo é usar esse dinheiro na melhoria dos postos de atendimento, para elevar a qualidade do atendimento à população.
ConJur — Como pretende usar a tecnologia e a inteligência artificial na Defensoria? É possível que petições venham a ser totalmente elaboradas por ferramentas de inteligência artificial?
Paulo Vinícius Abrahão — Não, o ser humano nunca vai ser 100% substituível. Mas algumas ações que hoje são manuais podem ser feitas de forma automatizada. Nós estamos investindo em três linhas de uso de inteligência artificial. A primeira visa criar um canal único de atendimento para facilitar o contato com os assistidos. Eles vão poder entrar em contato por e-mail, WhatsApp, pelo aplicativo da Defensoria e vão cair em um só canal de atendimento, que será mais ágil. E haverá um chatbot para direcionar o atendimento e agendar sessões com defensores.
Dentro da atividade-fim da Defensoria, há duas linhas de uso de inteligência artificial. Uma é usá-la para criação de petição inicial. Ela não cria a petição inicial inteira, mas consegue alavancar a peça e deixá-la semi-pronta para o defensor, que irá a revisar e finalizar. A segunda linha da atividade-fim é a parte de atendimento dentro do processo. Vamos usar a inteligência artificial para sintetizar as informações dos processos. Há processos antigos com cinco mil, dez mil, 15 mil páginas. A inteligência artificial pode agilizar bastante a análise desses casos. Se combinarmos essa ferramenta com o nosso banco de precedentes, podemos obter enormes ganhos em escala e produtividade.
ConJur — As audiências virtuais e por videoconferência trouxeram prejuízos ao contraditório e à ampla defesa? Ou podem ajudar em certos casos?
Paulo Vinícius Abrahão — É preciso avaliar caso a caso. Em um caso em que uma testemunha mora longe, a audiência por videoconferência é positiva. Há dois problemas nas audiências por videoconferência, especialmente nos processos criminais. O primeiro é a sensibilidade da presença física. Quando a audiência é presencial, o juiz pode ver melhor o réu, suas expressões faciais, sua expressão corporal. Isso ajuda o juiz a decidir melhor, a ter uma melhor compreensão do que é a verdade do caso. O segundo ponto são as audiências em que o réu está custodiado. Muitas vezes, há audiências em que o juiz, o promotor e o defensor estão na sala de audiência, mas o réu está em um presídio. É preciso ter um defensor no presídio, para garantir que o réu tenha liberdade de falar o que ele quer, de falar a verdade. Mas nem sempre temos condições de ter dois defensores à disposição, um na sala de audiência e um no presídio.
A Defensoria não é contra audiências por videoconferência, mas isso tem que ser analisado sob a ótica do melhor interesse do réu. Se no caso for melhor para ele que a audiência seja presencial, deve ser feita uma audiência presencial. Se for melhor uma audiência por videoconferência, que seja feita uma audiência por videoconferência.
Outro problema da virtualização das audiências é a tentativa de limitar as sustentações orais. Isso não pode ocorrer, porque a sustentação oral é o momento em que se faz a defesa dos direitos dos assistidos. Sempre que for solicitada que seja feita uma sustentação oral, ela tem que ser possibilitada. A tecnologia não pode impedir a ampla defesa.
ConJur — Como avalia o impacto da ADPF 635 na segurança pública do Rio de Janeiro?
Paulo Vinícius Abrahão — A ADPF 635 surgiu de um problema estrutural do Rio de Janeiro, que são os altos índices de violência. A Defensoria ingressou na ADPF depois de ela ser proposta. Como uma instituição de Estado, a Defensoria sempre luta para que a população vulnerável tenha os mesmos direitos que a população mais abastada. Então a Defensoria nunca será contra nenhuma atuação em prol da segurança pública, pelo contrário. Tudo o que queremos é que quem mora em uma comunidade tenha a mesma segurança que quem mora no asfalto, que não é tão grande assim, na realidade. Essa premissa é importante para afirmar que a Defensoria não é e nunca será contra uma operação policial.
O problema é quando há uma operação policial não planejada ou mal planejada. Essas operações às vezes saem do controle e causam uma letalidade muito grande. E, normalmente, essa letalidade recai em quem não tem nada a ver com a história, que é a população que está na comunidade sob jugo não apenas do tráfico, da milícia, mas também da operação policial.
E os números de letalidade policial são muito impactantes, foram até citados no voto do ministro Edson Fachin, relator do caso. Por exemplo, em 2019 — quando foi proposta a ação —, foram registradas 1.814 mortes decorrentes de intervenção policial no estado do Rio. Já em 2024, o número caiu para 699, uma redução de 61% (segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública). É claro que há uma série de componentes para a letalidade policial. Tem a diminuição da atividade durante a pandemia, as câmeras corporais ajudaram muito, mas os números são impactantes. Penso que o Supremo vai encontrar um ponto de equilíbrio, permitindo as operações policiais, mas evitando abusos.
Agora, a segurança pública do Rio de Janeiro não vai ser resolvida no Judiciário ou no Legislativo. As pessoas às vezes clamam pelo aumento de penas, mas está provado que isso não resolve a questão da violência. O problema da violência, no Rio de Janeiro e em outras cidades, exige uma ação integrada de todos os atores. E essa ação tem que ser comandada pelo Executivo. Mas não é a ADPF que vai resolver esse problema, nem a lei, aumentando penas.
Muito menos o problema do Rio de Janeiro é, como às vezes tentam colocar, a audiência de custódia. Pelo contrário, diversos estudos mostram que a audiência de custódia é um case de sucesso. A cada quatro pessoas presas submetidas a audiência de custódia, três são mantidas presas, e só uma é liberada. De cada quatro pessoas que são levadas para custódia, três são primárias. Então não é verdade que pessoas reincidentes estão sendo soltas.
ConJur — As grandes operações policiais no Rio são quase sempre dirigidas contra o tráfico de drogas. A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal pode ajudar a reduzir a criminalidade e a violência policial? E uma eventual descriminalização ou até legalização de todas as drogas?
Paulo Vinícius Abrahão — A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal não vai diminuir as áreas que estão conflagradas. O que vai diminuir é a injustiça de qualificar um usuário de traficante, o que ocorria com frequência. Essa descriminalização veio muito mais para corrigir um desvio que existia na Justiça Criminal do que para reduzir a criminalidade.
Agora, descriminalizar as drogas em geral tiraria um braço financeiro importante do tráfico, sem dúvida. Há experiências em outros países que provam isso. Mas o Rio de Janeiro tem uma situação absolutamente sui generis, que só vai ser resolvida com a união de diversos atores. Não é a lei, não é a descriminalização. Se descriminalizar amanhã, resolve a situação da segurança pública do Rio de Janeiro? Não resolve. Porque vão arrumar outro jeito para ganhar dinheiro com o domínio do território. O domínio do território hoje dá muito dinheiro para essas organizações.
ConJur — Como avalia a proposta de criação da Força de Segurança Municipal do Rio de Janeiro?
Paulo Vinícius Abrahão — Eu não sou contra a Força de Segurança Municipal do Rio de Janeiro. Mas é importante entender quais são os limites dessa força e o treinamento desses agentes. O guarda municipal sempre foi muito mais um guarda patrimonial do que um agente de segurança pública, um policial. É uma mudança conceitual, e toda mudança conceitual requer que se treine com novos conceitos. Então não basta simplesmente mudar o nome da corporação e do cargo, dizendo “agora você é policial”, e não treinar essa pessoa. Se for assim, veremos abusos por parte dessa força municipal. Não por mal, mas porque o agente não teve o treinamento adequado para exercer a função.
ConJur — A Defensoria do Rio vem sendo muito atuante em casos de reconhecimento fotográfico. Como tornar o procedimento menos sujeito a injustiças, especialmente em virtude do racismo?
Paulo Vinícius Abrahão — Isso não é simples. A Defensoria teve um caso de um rapaz que perdeu um documento com a foto dele. Por isso, ele registrou ocorrência, e a foto dele foi parar em um álbum de suspeitos de uma delegacia. E ele foi acusado em mais de 30 casos de furto, roubo e outros crimes. É um sujeito negro, jovem, com seus 20 e poucos anos, características que fazem com que muitas vítimas o apontem erroneamente como autor do crime. O policial abria o álbum, apontava para a foto dele e perguntava: “Foi esse?”. A vítima respondia: “Acho que foi”. Ele era indiciado, depois virava réu e era preso.
Por causa dessas injustiças que a Defensoria luta tanto por essa questão, para extirpar esse tipo de reconhecimento. Tivemos vitórias no Superior Tribunal de Justiça (com decisões exigindo que o reconhecimento siga o procedimento estabelecido no artigo 226 do Código de Processo Penal). Hoje a jurisprudência estabelece que uma prisão ou condenação não pode ser baseada apenas no reconhecimento fotográfico.
Mas o racismo estrutural está muito presente na sociedade e na Justiça, o que ainda gera uma série de equívocos. A Defensoria luta para reduzir esses erros.
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